quinta-feira, 3 de março de 2016

Graciliano



Basta olhar. Um matagal sem gente quase de ponta a ponta da propriedade, pouca área de pasto, nenhum gado, dinheiro curto para comprar animais de qualquer espécie. Então suponho que tal herança não será de grande valia. Uns dizem para investir; outros para vender. Enquanto isso, gasto o que tenho com a manutenção da casa. Não é grande coisa, embora confortável. Três quartos e uma varanda em forma de U, abarcando quase toda a paisagem. Salários para morador e empregada. Não sei quantos hectares em volta sem nada plantado. Tem mais: não entendo de agricultura nem sei imitar Paulo Honório.

Invisível

Apenas vim apreciar o espetáculo. Há muito tempo é assim. Olho e não participo, pois a diversão alheia me parece suficiente, enquanto o interesse por mim mesmo – eu sozinho, eu com outros – a cada dia torna-se mais rarefeito e sem graça. O que faço é planejar a visão seguinte, de gente e de coisas, desde o casario colorido à saia levantada pelo vento. Mesmo as ruas vazias, os insetos em busca de abrigo, a noite silenciosa e o barulho do trânsito são mais atraentes do que meu pensamento, minha visão do mundo e minhas sensações físicas. Só almejo a invisibilidade.

Um cão

Tudo começou quando matei o cachorro dela com o cinto de segurança. Foi sem querer. Ao desatar o cinto, o cinto agiu como um estilingue na cabeça do cão, acertando-o com a parte mais dura, a do encaixe. O animal deu um grunhido, um só, e o coração parou de bater. A reação dela foi além do que se espera em face da morte de um bicho, mesmo de estimação. Ela deu um uivo de horror dentro do carro e olhou para minha cara com o ódio de inimiga. Abraçada com o morto, culpou-me aos gritos pelo assassinato de Astor, um poodle, e embora tenha sido culposo não houve atenuantes. Assassino, ela me disse, enquanto os olhos se reviraram de desespero.

Mãe

Uma correria na cozinha, enquanto o forno queima os bolinhos, enquanto a mãe mexe a panela com chocolate, cuidando para não desandar, criar bolhas, pois dessa forma a cobertura não estará de acordo com sua fama de doceira, tão difundida na família, mas apenas por agrado, ou compensação. Os bolos da padaria são bem melhores e se fossem feitos por mães, seriam mesmo notáveis. Só que a mãe vive dessa fantasia, real para ela, e todos cuidam para não desfazer a única coisa que a mantém assim, sempre disposta e empenhada em manter a família unida, pelo menos diante de seus olhos.

Viagem


Soube que ele foi embora. Embalou as coisas, fechou a porta, entregou a casa. Não comunicou o destino. Por enquanto só temos deduções, pois havia no lixo um prospecto sobre o Laos e um livro rasgado sobre Saturno.  

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