Não se iluda; nada é real. Hoje, cidades
projetadas são assim – uma miragem. Projeta-se de um ponto bidimensional e aqui
está ela, em três dimensões, ou quatro, incluindo o tempo. Não podemos pegar na
cidade, sentir seu cheiro e ouvir seus gritos. Não podemos tocar em seus muros
porque a mão atravessa a falsa matéria como se atravessasse o vácuo. Não é
palpável, mas funciona.
O trânsito flui perfeitamente e, em caso de
um raro engarrafamento, novas ruas e avenidas surgem no final do expediente.
A cidade é invisível, como aquelas de Ítalo,
e ainda dá para ter uma casa, projetada de longe, feita de luz, quase
incandescente, e um chuveiro cuja água não molha e, mesmo assim, lava o corpo.
Eventualmente, lava a alma.
Falsa Sereia
Falsa Sereia era o nome de uma balsa que
levava os moradores de um lado ao outro do rio, e em dias chuvosos a embarcação
se perdia entre os pingos, esfumaçando-se sob o vapor da água, por assim dizer.
Mas ninguém nas pequenas cidades das margens se espantava com o sumiço da Falsa
Sereia e o povo tratava aquilo sem apreensão. O que emergia era um sentimento
melancólico causado por chuvas fora de época e pelo isolamento no meio daquelas
montanhas. Na hora da balsa, nos dias de chuva, as pessoas se davam a pensar
sobre a inexistência da cidade do outro lado e como seria a vida caso a Falsa
Sereia não voltasse nunca mais.
Para sentir de forma mais densa o rastro
dessa tristeza peculiar era preciso ter estado em duas situações: olhando a
balsa sumir lentamente, até mesmo do quintal de casa, e estar dentro dela, na
mancha escura que se instalava quando a chuva caía com tudo. Todos passaram por
isso e dentro da vagarosa Falsa Sereia iam as criaturas que, nesses dias de
chuva, experimentavam a mais pura sensação de não existir nada além do rio.
Os recolhidos
Aos poucos, enquanto surgem novas levas de
gente, os já gastos se recolhem, quase se escondem da luz, porque a natureza é
assim, sempre foi injusta, sempre tira de ação as idades avançadas e mata antes
da morte. Mas debaixo do cobertor, sob recordações nem tão antigas, comparadas
com os anos das coisas, eu me insurjo contra o criador ou mesmo contra o nada,
pois nem mesmo nesse espaço do tempo nos é dado o direito à verdade. Ninguém
diz com certeza a razão de certas ocorrências serem do jeito que são. Há um
silêncio enorme aqui dentro e lá fora tudo continua a girar como antes, sem a
mínima participação do meu corpo. Eu apenas penso e de nada adianta pensar.
Por sorte encontrei Mileva, vinda de tão
longe, também uma recolhida. Nas nossas conversas ela só quer saber se Deus
existe. Nada de sexo, pois nos perdíamos em modelos matemáticos, especulações,
filosofias. Mileza queria uma resposta rápida, antes de partir, uma vez que
estava a ponto disto, doente, embora animada, certa de que tínhamos uma pista,
um raio de luz ou uma barreira, seja como for, uma solução.
Remédios
Nada de sustos, ouça uma música calma,
aconselhou a médica, e eu expliquei que música calma me emociona e perco a
calma, e termino com palpitações, e ela, é só você ouvir música que não
emocione, então; então eu prefiro não ouvir nada, eu disse e ela: eu sei, eu sei
e logo adiante pediu para esquecer essa história de musica e receitou repouso.
Só que não quero ficar parado, expliquei, pois sou muito ansioso, e ela
acrescentou que tinha pílulas para ansiedade, amostras grátis, veja só, basta
tomar uma na hora de dormir. Só que não quero dormir, eu respondi, enquanto ela
ia ficando mais impaciente, mais nervosa, mais parecida comigo.
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