Pouca coisa. Um cachorro lerdo na rua, a
venda aberta, mulheres com trouxas de roupa na cabeça e uma delas gritava “ei,
menino!”, enquanto eu lia uma edição atrasada da Revista dos Sports, na varanda
de casa, esperando a hora de ir para a escola. Naquela época esse intervalo
parecia uma eternidade, ou quase, talvez o equivalente a um ano de hoje, porque
dava tempo de pensar em todas as coisas da vida e dava tempo de sonhar em
conhecer o mundo, sair do meu fim de mundo, embora eu gostasse de morar aqui.
Neste mesmo tempo esticado da infância, no
mesmo período de esperar a escola, eu comecei a ler outras revistas, empilhadas
por meu pai no canto da varanda, e numa delas havia uma foto de uma modelo mais
ou menos famosa da época, de biquíni, sob a paisagem do Rio de Janeiro; foto
meio esmaecida, mas ficou na minha memória. Gostei da moça e de seu olhar estrábico
e reluzente. Gostei mais ainda da cidade ao fundo e jurei de mim para mim que iria
morar no Rio.
Os anos se arrastavam e eram bons. Eu me
divertia com qualquer coisa: uma linha de seiva saindo da árvore, besouros com
cara de mongóis atravessando o lago Baikal e tropas reunidas de tampinhas de
refrigerante, Grapete contra Crush, em guerra na Criméia. Eu sabia dessas
histórias por causa das revistas e por causa da Enciclopédia Barsa, comprada de
um vendedor de livros que esteve na cidade no tempo do meu avô. Ele ficou com a
Barsa e um exemplar de Mobydick. Meu avô era analfabeto e estranhamente informado
sobre livros.
Comparando com a vida das pessoas na
revista, a minha vida na cidadezinha não era muito. Mas eu tinha tempo e o
tempo fluía a conta gotas. Parecia não haver passado nem no futuro; eu estava
num presente estendido, descobrindo a paisagem, achando graça em tudo. Mas as
coisas mudam quando a gente vai crescendo. As histórias perdem o mistério e um
exemplo era a lenda sobre o crescimento de cabelo em tetos de algumas casas. O
tema rendia horas de discussão e um dia resolvemos tirar a limpo. Dos tetos
inspecionados por nosso pequeno grupo pré-adolescente, nenhum tinha cabelos. Também
contavam a respeito da chegada de uma estação de trem que nunca chegava e nunca
chegou.
Esses assuntos deixaram de interessar
quando passei a conhecer ainda mais o mundo trazido pelas revistas. Quanto mais
eu conhecia os prédios e as moças, os cantores do rádio e os jogos no Maracanã,
menos eu dava importância às histórias da minha cidade e das minhas
brincadeiras, mesmo as mais excitantes, como colocar saúvas presas numa caixa
de fósforos e ficar ouvindo o barulho delas, com a caixa colocada no ouvido,
como se fosse um rádio de pilha. Enfim, o meu mundo perdia valor para o mundo
das revistas.
Nesse tempo eu via Garricha em muitas fotos
e na minha cidade só havia um pequeno time com camisas desgastadas pelas
lavagens no rio. O meu tio era centroavante porque era forte, mas não tinha
domínio de bola, ninguém tinha, ninguém sabia driblar feito Garrincha, mesmo
que tentasse, e tentava sempre, mas não conseguia. O pessoal do time bebia
muito depois do jogo num lugar que era sorveteria e bar ao mesmo tempo. Quando
o time perdia eles bebiam mais; bebiam e penduravam a conta para pagar no fim
do mês. Ninguém era jogador de verdade. Meu tio era vaqueiro e a defesa inteira
trabalhava na construção de uma barragem. Eu ficava ouvindo as conversas até
que um dia, já adolescente, comecei a achar aquilo realmente muito chato e
passei uma fase enfurnado no quarto, lendo ainda mais revistas e livros e às
vezes tomado pelo tédio.
Foi quando resolvi ir embora, seguindo a
pé, em linha reta, na direção da rodovia e, mais adiante, sentei na calçada de
um posto de gasolina. Choveu e eu fiquei lá, molhado, esperando não-sei-o-quê,
e aí um motorista de caminhão perguntou se eu podia ajudá-lo a descarregar umas
caixas de leite em pó e Maisena num município vizinho. As caixas são leves, ele
disse, e logo eu estava na boleia, vendo a caatinga passar a noventa
quilômetros por hora. Nem sinal do Rio de Janeiro. Conforme descobri depois,
estava indo em sentido contrário e descobri porque vi uma placa: Juazeiro a 230
quilômetros. Também aprendi isso na Barsa, na parte dos mapas, e numa
reportagem de O Cruzeiro sobre Padre Cícero.
A viagem não deu certo porque meu pai
chegou num carro alugado na praça, depois de rodar pelo mato e por vários
distritos e municípios. Quando me viu, correu desesperado em minha direção e
fiquei com medo de levar uma surra, mas ele não estava com raiva; estava
aliviado. Deu um abraço daqueles que a gente dá em pessoas que não vê há muitos
anos e me levou para tomar sorvete, enquanto ele bebia um copo de cachaça, de
um gole só, para tirar o nervosismo.
Dai em diante nunca mais tentei fugir para
o Rio de Janeiro. Na verdade, até hoje não conheço o Rio de Janeiro. Fiquei
aqui, acostumado, tangendo o gado, voltado de novo para as coisas pequenas, sem
revistas e com um monte de filhos para cuidar. Simplesmente perdi a vontade de
sair do canto. Às vezes fico pensando como seria minha vida entre as moças da
capa, meu apartamento na cimeira do prédio, clássicos no Maracanã; outras
situações, bem diferentes do que as daqui, embora eu saiba que não é mais
assim. Hoje eu vejo tudo pela Internet, a mesma paisagem e outro tipo de gente,
umas pessoas cansadas em direção ao ônibus, pois há uma tira de ônibus em
Copacabana, e pessoas alegres da TV, inclusive as cantoras. Gosto de ver. Mas quando
eu canso de ver eu abro a porta, olho o mato e é um alívio.
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