sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

O mundo das revistas



Pouca coisa. Um cachorro lerdo na rua, a venda aberta, mulheres com trouxas de roupa na cabeça e uma delas gritava “ei, menino!”, enquanto eu lia uma edição atrasada da Revista dos Sports, na varanda de casa, esperando a hora de ir para a escola. Naquela época esse intervalo parecia uma eternidade, ou quase, talvez o equivalente a um ano de hoje, porque dava tempo de pensar em todas as coisas da vida e dava tempo de sonhar em conhecer o mundo, sair do meu fim de mundo, embora eu gostasse de morar aqui.

Neste mesmo tempo esticado da infância, no mesmo período de esperar a escola, eu comecei a ler outras revistas, empilhadas por meu pai no canto da varanda, e numa delas havia uma foto de uma modelo mais ou menos famosa da época, de biquíni, sob a paisagem do Rio de Janeiro; foto meio esmaecida, mas ficou na minha memória. Gostei da moça e de seu olhar estrábico e reluzente. Gostei mais ainda da cidade ao fundo e jurei de mim para mim que iria morar no Rio.

Os anos se arrastavam e eram bons. Eu me divertia com qualquer coisa: uma linha de seiva saindo da árvore, besouros com cara de mongóis atravessando o lago Baikal e tropas reunidas de tampinhas de refrigerante, Grapete contra Crush, em guerra na Criméia. Eu sabia dessas histórias por causa das revistas e por causa da Enciclopédia Barsa, comprada de um vendedor de livros que esteve na cidade no tempo do meu avô. Ele ficou com a Barsa e um exemplar de Mobydick. Meu avô era analfabeto e estranhamente informado sobre livros.

Comparando com a vida das pessoas na revista, a minha vida na cidadezinha não era muito. Mas eu tinha tempo e o tempo fluía a conta gotas. Parecia não haver passado nem no futuro; eu estava num presente estendido, descobrindo a paisagem, achando graça em tudo. Mas as coisas mudam quando a gente vai crescendo. As histórias perdem o mistério e um exemplo era a lenda sobre o crescimento de cabelo em tetos de algumas casas. O tema rendia horas de discussão e um dia resolvemos tirar a limpo. Dos tetos inspecionados por nosso pequeno grupo pré-adolescente, nenhum tinha cabelos. Também contavam a respeito da chegada de uma estação de trem que nunca chegava e nunca chegou.

Esses assuntos deixaram de interessar quando passei a conhecer ainda mais o mundo trazido pelas revistas. Quanto mais eu conhecia os prédios e as moças, os cantores do rádio e os jogos no Maracanã, menos eu dava importância às histórias da minha cidade e das minhas brincadeiras, mesmo as mais excitantes, como colocar saúvas presas numa caixa de fósforos e ficar ouvindo o barulho delas, com a caixa colocada no ouvido, como se fosse um rádio de pilha. Enfim, o meu mundo perdia valor para o mundo das revistas.
Nesse tempo eu via Garricha em muitas fotos e na minha cidade só havia um pequeno time com camisas desgastadas pelas lavagens no rio. O meu tio era centroavante porque era forte, mas não tinha domínio de bola, ninguém tinha, ninguém sabia driblar feito Garrincha, mesmo que tentasse, e tentava sempre, mas não conseguia. O pessoal do time bebia muito depois do jogo num lugar que era sorveteria e bar ao mesmo tempo. Quando o time perdia eles bebiam mais; bebiam e penduravam a conta para pagar no fim do mês. Ninguém era jogador de verdade. Meu tio era vaqueiro e a defesa inteira trabalhava na construção de uma barragem. Eu ficava ouvindo as conversas até que um dia, já adolescente, comecei a achar aquilo realmente muito chato e passei uma fase enfurnado no quarto, lendo ainda mais revistas e livros e às vezes tomado pelo tédio.

Foi quando resolvi ir embora, seguindo a pé, em linha reta, na direção da rodovia e, mais adiante, sentei na calçada de um posto de gasolina. Choveu e eu fiquei lá, molhado, esperando não-sei-o-quê, e aí um motorista de caminhão perguntou se eu podia ajudá-lo a descarregar umas caixas de leite em pó e Maisena num município vizinho. As caixas são leves, ele disse, e logo eu estava na boleia, vendo a caatinga passar a noventa quilômetros por hora. Nem sinal do Rio de Janeiro. Conforme descobri depois, estava indo em sentido contrário e descobri porque vi uma placa: Juazeiro a 230 quilômetros. Também aprendi isso na Barsa, na parte dos mapas, e numa reportagem de O Cruzeiro sobre Padre Cícero.

A viagem não deu certo porque meu pai chegou num carro alugado na praça, depois de rodar pelo mato e por vários distritos e municípios. Quando me viu, correu desesperado em minha direção e fiquei com medo de levar uma surra, mas ele não estava com raiva; estava aliviado. Deu um abraço daqueles que a gente dá em pessoas que não vê há muitos anos e me levou para tomar sorvete, enquanto ele bebia um copo de cachaça, de um gole só, para tirar o nervosismo.


Dai em diante nunca mais tentei fugir para o Rio de Janeiro. Na verdade, até hoje não conheço o Rio de Janeiro. Fiquei aqui, acostumado, tangendo o gado, voltado de novo para as coisas pequenas, sem revistas e com um monte de filhos para cuidar. Simplesmente perdi a vontade de sair do canto. Às vezes fico pensando como seria minha vida entre as moças da capa, meu apartamento na cimeira do prédio, clássicos no Maracanã; outras situações, bem diferentes do que as daqui, embora eu saiba que não é mais assim. Hoje eu vejo tudo pela Internet, a mesma paisagem e outro tipo de gente, umas pessoas cansadas em direção ao ônibus, pois há uma tira de ônibus em Copacabana, e pessoas alegres da TV, inclusive as cantoras. Gosto de ver. Mas quando eu canso de ver eu abro a porta, olho o mato e é um alívio. 

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