quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Artista de rua


A escultura é amoldada por dentro, na hora, diante dos assistentes. O homem entra no monte de argila, empurra os braços argilosos para fora do futuro dorso e sai alisando com esperteza e prática todas as partes do corpo – seu próprio corpo e o outro se formando por cima –, e daí vai surgindo a obra, com certa rapidez. Em cima é mais fácil. Logo ele tem um quase rosto e tronco, inclusive com umbigo, e as partes genitais, que esfrega com mais demora, às vezes até a erupção súbita do jato branco, espalhando na barriga a nova cor, como se dispusesse um pouco de chantilly num bolo. Depois senta para compor as pernas e pés e o resto e volta-se a deitar para um último retoque na cara, cuja aparência é a dele mesmo ou a de outro qualquer. Ele respira por um canudinho na boca, mas há outro, em que podemos colocar um cigarro ou despejar golinhos de cerveja.

Low profile

Vendi-me por m bom preço, considerando que na época eu não valia nada, em todos os sentidos, moral e financeiro, inclusive. Corruptível, mas incompetente; preguiçoso, ruim de serviço. Só lambia botas subalternas, pessoas sem muito acesso a algum. Faltava-me também um pouco de maldade – acredito piamente em promessas e vivi em falsas oportunidades. Um candidato a um mundo de tantos traquejos precisa de mais esperteza e ousadia. Eu não tinha. Mas o importante é que, ainda assim, ou talvez melhor assim, consegui me colocar sem chamar muita atenção. Vivo bem e saudável desde os primórdios do Império.

Entretenimento


Não tenho muito tempo. Ninguém tem muito tempo. Sem filosofia, por favor. Direto ao assunto. Conta logo a história. Se for boa, eu compro; se não for, o próximo. Não precisa de arte. O negócio é comércio, diversão, concisão, marca e produto. Nem literatura nem cinema de autor. Não quero coitados, pobres, mulheres mal vestidas, viados, causas sociais, essas merdas. Só me servem tiro certeiro no cérebro, mensagem rasa e precisa, potencial de viralização. A partir de agora é assim. Nós ganhamos e será deste jeito.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Pequeno sentido da vida



Nunca vira um espaço tão pequeno e sujo. Quarto e sala. A cozinha na sala, banheirinho espremido, a cama ocupando quase todo o quarto. Um armário bege, descascado, um chão que passou por muitos estágios; já foi sinteco, cerâmica e por último um carpete cor de gema de ovo, peludo e desgastado. Nas paredes, camadas e camadas de tinta numa luta perdida contra a infiltração. O resto da mobília: mesa, duas cadeiras e uma geladeira com a porta pouco aderente. O último inquilino a mantinha fechada com fita crepe e não a abria com frequência. Lá dentro, havia algo em transformação, talvez um repolho, azul violáceo, igual a essas coisas que se veem nos filmes. Um repolho em vias de entrar em outra situação bioquímica.

O corretor procurou mostrar as vantagens do imóvel, bem localizado, perto do ponto do ônibus e da padaria. Foi sincero quando ao elevador, há meses desativado, e também quanto à necessidade de uma boa faxina. Aí, sim, emergiria um lar aconchegante, ideal para uma pessoa sozinha e sem muito dinheiro. Bastava esperar uns três dias para baixar o cheiro do desinfetante e fazer a mudança. Perguntei se havia outro apartamento em melhores condições e ele respondeu que, por aquele preço, seria difícil encontrar.

Não era preciso percorrer o apartamento. De um ponto via-se tudo, a desolação diante do poente calorento de janeiro. Mas andei, no entanto, e dei conta de objetos deixados ao longo dos anos: correspondência para diversos destinatários, tampas de cerveja, tufos de cabelo, restos de salgadinhos que lembravam cascas de ferida, uma edição de Notícias Populares – jornal fechado em 2001 – e duas camisinhas usadas. Uma boa faxina resolveria tudo, repetiu o corretor, enquanto ouvíamos o barulho ininterrupto do vaivém dos carros e do arrulho dos pombos.

Alugado.

Eu estava no meu novo apartamento depois de morar, durante quase a vida inteira, numa cobertura com vista para o parque, dormitório com suíte, duas vagas na garagem, área de lazer com academia de ginástica, salão de festa e piscina. O desemprego veio para mudar tudo. Fim do emprego, fim da regularidade casa-trabalho e fim das amizades profissionais. A partir daquele dia seria ali porque a miséria enfim se apresentava em forma de uma quitinete no centro. São coisas que acontecem. O que me interessa é o efeito, não a causa. Tento lidar com o que aparece de um jeito positivo; fudeu, fudeu, agora é assim e pronto.

A limpeza foi razoável, mas o carpete ficou como um cachorro molhado e a geladeira continuava sem fechar direito. Meus lençóis cobriram a cama, mas as manchas do colchão ainda apareciam sob o branco; dois lençóis, um sobre o outro, apagaram o problema. Não vi, não existe. A infiltração ficou escondida atrás da estante, trazida na mudança. O aroma meio pinho meio formol ainda empestava o ambiente. Seria um lugar provisório, pensei, e existem milhões de casas piores no mundo, muitas longe do ponto de ônibus e da padaria.

Não foi um lugar provisório. Há anos estou lá, na quitinete do centro, esquecido de como era ampla a sala do antigo apartamento e como a vida mudou desde então. A vida mudou do dia para a noite e assim foi ficando, quase só noite, pouca luz do sol, quando descobri as vantagens de passar dormindo das sete às dezoito horas. À noite, o ap é mais acolhedor. Somem os defeitos, a luz neon de um puteiro vizinho, no sétimo andar, invade suavemente os poucos metros quadrados, como se trouxesse outra dimensão à sala, tornando-a maior, mais aprazível e misteriosa, embora eu desconfie  da instabilidade e estranheza desse pequeno universo. O problema é que ele combina comigo.  Posso ser um organismo enganado, mas sinto-me bem quando os polos são invertidos - noite é dia, dia é noite - e só assim consigo viver comigo nos últimos dez anos nesta quitinete do centro. Até o carpete cor de gema de ovo, quando anoitece, transmuta-se em outras cores e seus pelos viram pequenas fontes luminosas.  É um espetáculo diário, ou melhor, noturno. 

À noite, vejo filmes na TV com uma vizinha que é poeta e bipolar, Vera, tão interessante nas fases de depressão quanto nas de euforia. Tem uma história enorme, que me conta aos poucos, e escrevo sobre ela há muito tempo, dos primeiros meses aqui. Vou à padaria, que tem umas cadeiras na calçada e serve sanduiche de pernil. Calculo que já comi mais de mais de mil sanduíches de pernil, muitos deles com minha vizinha, cujos versos foram publicados nesta semana em um blog mais ou menos conhecido. Comemoramos no bar, junto com Adeildo, um amigo da Paraíba, também conhecido como Ninguém Dorme, e Marina, uma quarentona arquiteta que trabalha com projetos da Lei de Incentivo à cultura. No final dessa noite fomos para o meu apartamento, olhar o espetáculo, pois eles também apreciam. Costumamos fitar o movimento da rua pela janela, fumando uns baseados e falando besteiras sobre o universo e os segredos guardados em cada uma daquelas luzes acessas nos prédios da vizinhança.  Olhamos para dentro pensando enxergar fótons transitando entre a sala e o quarto, formando alegorias na parede, e viajamos nos reflexos da pintura irregular, como se uma nova decoração ali se dispusesse a cada segundo, dependendo da vibração do neon.  

Quando acordo e estou só, desço para comer na padaria. A cidade já fez e desfez o dia, houve mudanças no trânsito e na política, pessoas voltam cansadas para casa, choveu e estiou, e para mim está apenas começando. Estou novo em folha numa batalha já transcorrida, naquele momento em que o cenário urbano é preparado para outras situações, menos tensas, mais fora das regras. Nessa hora, outros personagens se encaixam e até os mesmos que suportaram o dia ganham uma substância diferente. Não há filas, gerentes de banco, corrida pelas liquidações, multidões atravessando a rua, horário de almoço nos restaurantes a quilo nem pregações evangélicas. Ou seja, a vida melhorou muito desde que vim morar aqui. Pode parecer que os motivos são bobos, ou que deliro para compensar a falta do antigo apartamento, mas é justamente o que eu procurava e nunca me perguntei por quê.

Trabalho em casa, nas madrugadas, escrevendo umas besteiras para empresas e às vezes para mim mesmo, caso das histórias de Vera, cuja revisão cabe à própria, sempre pronta a dar sugestão, às vezes para tornar ainda mais dramática sua vida com a doença. Não é sobre isso que estou interessado; estou interessado em Vera, em todos os seus sentidos, estejam exacerbados ou encolhidos, e presto mais atenção aos seus cachos de molinha do que às suas bruscas mudança de humor.

Vera não critica apenas a parte sobre ela, que é a maior, mas, sobretudo a minha mania de mudar de assunto no correr do texto e de dizer uma coisa lá em cima quando seria lá embaixo. Então Vera se encarrega também de colocar parágrafos na ordem que acredita ser a certa, mesmo que às vezes eu discorde e use aquela setinha do computador para voltar ao que era antes. Isso causa uma pequena discussão sobre o que é certo ou errado até o ponto de concordamos que seria melhor escrever outro parágrafo. É o método dela de ganhar sempre.

Visto de longe parecemos dois egos no desfiladeiro das Termópilas, mas não é assim, não tão assim. Trata-se principalmente de um jogo que diverte e pode durar muito tempo, até com seus momentos demais reflexivos, como, por exemplo: pensamos muito sobre como é absurdo chegar a este ponto por causa de um parágrafo. As vantagens são imensas, nesse gamezinho fútil, e por mais fútil que pareça, o resultado é uma satisfação fora do comum, e às vezes suficiente.

A quitinete nos une porque é pequena demais para não nos esfregarmos de vez em quando. A cena se repete enquanto discutimos. Não gostamos ficar parados e há pouco espaço para andar. Aproveito e beijo Vera e o jogo chega à sua melhor parte, ali mesmo, no chão, sobre o carpete cor de gema de ovo, e depois ela se levanta, sempre se levanta primeiro, e continuamos a revisar o texto, como se nada tivesse acontecido. Não existe um clima de paixão e desejo selvagem e não formamos um casal; apenas cumprimos aquele ritual sem contrapesos morais e culpas. Nem conversamos sobre isso. É bom e basta.

Com Marina o mundo é mais prático. Ela ajeita nossas vidas, põe as coisas nos lugares, as ideias de acordo com os assuntos, evitando nossa rescisão definitiva com o mundo que gira em volta da quitinete ou um embarque sem volta na imaginação. Mesmo com tais cuidados, participa sem censuras de nosso jeito de viver, das previsões sem base na realidade e do exagero nos vícios. No momento certo, porém, tem um jeito muito especial e carinhoso de colocar a situação nos eixos; fornece matéria ao nosso universo quando ele é só energia.

Adeildo sempre me diz que é bom não ter muitas expectativas sobre a vida. O que vier é lucro. Assim ele vai levando; eu não. Espero muita coisa desse estranho mundo, todos os dias. Nada demais para quem está fora dele, mas está ótimo para mim,  nem que seja apenas a repetição de ontem, se for o caso, em que nos juntamos aqui, olhando o céu, ou com Vera, escrevendo e lendo trechos de sua biografia e seus poemas. Ou então sozinho, sentindo o neon entrar pela janela, eriçando os pelos do carpete cor de gema de ovo.

domingo, 29 de novembro de 2015

A breve eternidade


Doutor Carneiro informou ao paciente que ele tinha seis meses para escrever suas memórias. Médico e literato, doutor Carneiro lamentaria a grande perda, o fim da vida de um sábio de sua intensa predileção, além de bom amigo. Mas não havia o que fazer. A não ser, claro, a precária substituição da vida por boas histórias, memórias póstumas, conforme indicavam os exames. Nessas horas, há certa solenidade, uma procura por palavras exatas, a oferta de uma contrapartida. Você vai morrer, mas... O caso é que não havia entre eles uma alternativa ao evento da morte nas mãos de Deus. Só que o sábio recebeu a notícia com tranquilidade, um aborrecimento a ser levado em conta, porém sem a dramatização esperada. Ele queria mesmo escrever e tratou a sugestão como substituto da eternidade. Já tinha escrito dez livros.

Fosse começar o texto naquele momento – seria até aconselhável, dado o avanço da doença - o escritor talvez embarcasse numa viagem ao passado, em busca de si próprio sadio e jovem, ou iniciasse pelo fim, período que lhe transmite fortes ruminações sobre a vida e a morte. O problema, portanto, não era este. O livro teria que marcar sua existência, esticá-la à posteridade, pois ele não havia escrito até então uma obra-prima, aliás, nenhuma obra que merecesse o elogio da crítica – sequer uma resenha na imprensa. Só o doutor Carneiro parecia reconhecer o gênio. Se havia duas coisas que reconhecia num primeiro olhar eram um bom texto e um câncer. O sábio possuía ambos.

- A doença veio para emperrar ou empurrar o sábio à sua última tarefa? – refletia o médico, enquanto o sábio, em seu leito de hospital, já ardia em estruturas narrativas, conceitos e personagens da nova e definitiva obra. Poderia ser um livro de memórias, talvez memória romanceada, se achasse, naquelas condições, algumas lembranças válidas. Pensou num esquema de Nietzsche, baseado em aforismos, pílulas de sabedoria ou mesmo de desespero. O sábio, porém, não estava desesperado.

Como médico, doutor Carneiro tinha praticamente encerrado o serviço. Mas havia uma nova tarefa.

- Carneiro, vou escrever – prometeu, dias depois, o sábio - Faça uma leitura caprichada e se achar que não deu certo, suspenda a edição. Faça o mesmo que você com a quimioterapia.
 

Seis meses depois, como previsto, o sábio morreu. Entupido de morfina, não deve ter sentido muitas dores. Ao lado da cama, deixou os originais do livro. Doutor Carneiro passou uma semana em cima do texto, lendo, relendo, anotando, cortando aqui e acolá exageros retóricos comuns a moribundos, segundo ele achava. No final, a obra estava pronta. Poucas páginas, justificadas pela situação, mas suficientes para manter em pé um livrinho interessante, cheio de impressões tragicômicas sobre a morte e alguma saudade da vida. O sábio não teve lugar na posteridade, não se tornou um nome da literatura nacional, mas ganhou uma pequena sobrevida além dos poderes da medicina.  Finalmente algumas notas nos jornais, lançamento, coquetel, palavras elogiosas e notinhas no Facebook. Depois disso, o sábio nos deixou para sempre. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Globo


No espaço curvo onde me encontro as perguntas não têm respostas. Não basta a falta de um canto para encostar e estirar as pernas, não basta o desconforto de estar arqueado no oco, não basta o tempo passado num lugar sem referências, e ainda me vêm com indagações sobre meu próprio estado e o que devo fazer para sair dele, se for o caso. Há uma voz dentro do globo, ou fora dele, permanentemente empenhada em lembrar que estou trancado num ambiente sem portas e aqui devo ficar até encontrar a saída. A geometria é inadequada para meu corpo e tem sido assim desde que nasci, há não sei quantos anos. Conjecturo que é um universo particular e um local de castigo. Sigo os ensinamentos que a voz também passa, em horas alternadas, sobre outras dimensões, espaços externos bem mais amplos, onde as pessoas circulam de outra forma, sem necessidade de contorcionismos, e conseguem percorrer longas distâncias, encontrar uma às outras, levar uma vida sem conhecimento deste globo. 

Deus 1, Deus 2


No primeiro instante do universo, quando o Deus 1 disse "faça-se a luz", uma voz surgida do nada, como tudo naquele momento, reclamou em forma de estrondo: "epa, essa ideia é minha". No debate autoral que se seguiu, Deus 1, também vindo do nada, a princípio entrou em luta com seu oponente, Deus 2, jogando partículas em sua cara, mas esses senhores recém-chegados ao processo de expansão do Cosmo viram que a coisa continuava sem a participação deles e resolveram chegar a um acordo.  O universo já estava lá adiante, cheio de gás, quando os dois deuses decidiram que um cuidaria do espaço e o outro do tempo. Mas logo viram que eram a mesma coisa, espaço-tempo, e o debate continuou até o surgimento da Terra, em que resolveram aportar por causa da boa localização e do clima relativamente ameno. "Eu vou ficar por aqui", contou o Deus 1. O outro foi embora, para ver onde aquilo ia dar. 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Atlas



Quando eu era criança, pedi a meu pai para comprar um atlas pelo correio. Demorou quase um mês para chegar porque nos anos sessenta tudo demorava a chegar. Quando vi o carteiro pela janela do quarto, corri apressado para pegar a encomenda e abri o pacote antes de dizer qualquer coisa - nem disse bom dia nem oi - e abri o atlas na página do Brasil. Em seguida, já estava no meu pequeno estado, mas caí na mais profunda tristeza ao descobrir que a cidade onde nasci não estava no mapa. Aquilo resumia minha infância a nada.

Não estamos no mapa, disse à minha mãe, que preparava o almoço. Ela não deu a devida importância e respondeu apenas que um dia a cidade estaria no mapa, era só uma questão de tempo, bastava aumentar a população, e talvez o novo prefeito tivesse influência suficiente para corrigir aquela pequena injustiça. À noite, quase não dormi, pensando como é melancólico e solitário morar num lugar em que nem o atlas sabe onde fica e muito menos as outras pessoas do mundo. Eu era uma criança bairrista.

Pelos livros, sabia que alguns lugares sumiram do mapa, destruídos ou abandonados por seus moradores, cidades reais e imaginárias, mas nunca ter estado no mapa era um baque maior, como se alguém dissesse, com toda a certeza: você não existe nem existiu. Nem sua família nem a agência dos correios nem o grupo escolar nem a sorveteria de Dona Nazinha. No dia seguinte à chegada do atlas, olhei para as ruas vazias, perdidas no sertão, cercadas de mato, e comecei a chorar.

Desde então tudo perdeu importância, até a escola, pois quando a professora começava falar sobre as datas mais importantes do município, eu ficava pensando se adiantava ter história se não tínhamos geografia. Clarinha, a menina mais bonita da escola, pelo menos a mais engraçada, também não estava no mapa, como não estava no mapa a fábrica de gelo do avô.

Lembro-me do calor de quarenta graus lá fora e os dedos gelados de tanto esfregar as mãos nas barras geladas, encomendas da sorveteria e do açougue. Era o melhor lugar da cidade e eu ficava por lá nas horas vagas, que eram quase todas.

O certo é que a cidade era pequena em proporção ao tamanho da fábrica de gelo do meu avô e gerava muita curiosidade no município porque as pessoas estavam naturalmente intrigadas sobre o surgimento de tanta coisa fria numa terra tão quente. Faz muito tempo, mas naquela época não entrava na cabeça de ninguém o fato de que um motor a diesel, um negócio mais abrasador do que a cidade, servisse para esfriar fosse o que fosse. Mas esfriava e muito.

Enquanto a rua pegava fogo lá fora, meio dia o dia inteiro, a fábrica mantinha-se num clima austríaco, conforme escreveu o único jornalista da cidade, José Onofre, editor, diretor e distribuidor do semanário A Razão. Ou seja, mesmo os espíritos mais abertos a novidades estavam perplexos e buscavam explicações. No entanto, apesar de seu motor e o gelo, mesmo com o jeitinho engraçado de Clarinha, mesmo assim, a cidade não estava no mapa.

Quando completei dezoito anos fui embora estudar na capital e depois segui para São Paulo, transferido pela firma. Com o passar dos anos, a cidade, que já não estava no mapa, foi se apagando da minha memória. Morreram todos – avós, tias e os homens que faziam gelo. Morreu Zé Onofre e Razão deixou de circular. Morreu dona Nazinha da sorveteria e morreram o prefeito e seu sucessor, que não moveu uma palha para colocar a cidade no Atlas.

Há uns dias, décadas e décadas depois, olhei por curiosidade o mapa do Google e minha cidade estava lá. Não só o nome, em letras grandes, mas as casas e ruas, becos e a igreja, e o velho prédio do grupo escolar, ampliados, quase realidade, e as ruínas da fábrica de gelo e a sorveteria de Nazinha, que virou minimercado, e a casa onde morou Clarinha, agora um salão de beleza. Mas aí não importava mais. Eu queria ter visto no Atlas.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Looping com link



Todo mundo preocupado com o dia de amanhã e Amélia preocupada com o passado. Quer outra utilidade para o que já se foi, além de servir apenas à memória; quer sentir as mesmas sensações de um único ano, 1979, nem que seja para reviver em looping seus melhores momentos, mesmo como simulacro de vida em repetição infinita ou até cansar. Fosse possível, ela toparia, em troca deste agora insatisfatório e oco, uma viagem circular à mais feliz temporada de sua existência. Eis o problema que estraga o presente e o futuro de Amélia e perturba sua carreira de escritora de livros de autoajuda.

Ninguém sabe o que decorre na cabeça dessa mulher, cuja foto às vezes surge numa livraria de aeroporto.  Crê, pelo que escreve, que a imaginam prospera e resolvida, independente e digna de todos os amores do mundo. Vende a seus leitores a beleza do pensamento positivo, o siga em frente, a força da vontade, enquanto fora do papel impresso é um case de pessimismo. Todos desconhecem, por exemplo, o desprezo de Amélia por seu ofício, o horror primordial pelos livros de que escreve.

Não se sabe ainda do que deriva a aparente falta de lógica em seu estranho desejo de percorrer 1979, de forma incessante, rodando em cenas passadas, abraçando pessoas antigas, algumas já mortas, perdidas em estações da lembrança. Tirou essas idéias em coisas que leu, em livros obscuros e científicos, pois ler ainda a diverte e abre espaços para imaginar fendas ou buracos onde possa entrar e sair rodopiando em 1979, para revisitar cenas de seu agrado. Não quer mudar a história; só experimentá-la de novo.

Permanece, no entanto, em suas predições e conselhos, faça isso e aquilo, o mundo pode ser melhor desse ou daquele jeito, assim ou assado, mas em seu interior reina um vazio, um nada consta de pouco interesse para seu publico ávido por bem-estar e segurança no dia a dia e na empresa, nos relacionamentos e, em alguns casos, na paz do senhor. Enfim, tudo se conforta em sua fatia de mercado, enquanto ela esta cada vez pior e mais absolutamente infeliz com seu ganha pão e a vida em geral, especialmente com o fato de não pode rebrotar boas horas da vida já vividas antes de começar a mentir por escrito, no comecinho de 1980.

Para variar um pouco, poderia não voltar aos mesmos lugares daquele ano, mas só a situações, reprisadas com cenários e materiais de hoje, em que ela pudesse sentir, do modo que sentia na juventude, a mesma ânsia de viver e o mesmo vigor para o que desse e viesse. Ela própria seria uma estupenda criatura atual, de pernas rijas, mente processando novidades, sensações girando no volume maximo e desejos correspondidos. Hoje é quase nada. Vende o que não tem: esperança e sucesso.

Pessoas que leem aquilo atentamente e ficam ricas e satisfeitas, segundo diz a orelha de seu último livro, mas não há referência às que caem em profunda desgraça neste mundo movido a probabilidades. Ou seja. tudo continua como sempre foi e ela vive disso, escrevendo justamente o contrário de sua existência.

De modo que alguém também lê um livro de Amélia com um olhar também oposto ao da autora. Paga para acreditar. Ninguém compraria um livro se não houvesse a promessa inconsciente de se levar em conta o seu conteúdo como lenitivo para a vida, quando não um vade mecum para inúmeras ocasiões. Assim acreditam seus seguidores. Não veem a Bíblia? o livro mais discutido no mundo cristão não apenas passa informação a seus leitores; de algum jeito também os pega pelas tripas e nessa agonia deixa de ser livro e torna-se um lugar aonde milhões de pessoas entram sem pestanejar – algumas, desgraçadamente, para o resto da vida.

São coisas que passam pela cabeça de Amélia e que um dia ela pretende contar, e isto, sim, lhe causa duvida porque ao revelar os bastidores de sua alma perderia a maior parte de seus leitores. Uns poucos, porém, adentrariam no mundo sombrio da autora e ficariam contentes, pelo menos aliviados, em não estarem mais sendo enganados.

De alguma forma, Amélia vai terminar no mergulhar em emoções extemporâneas, talvez vetadas pelas leis da ciência, e talvez a vontade de trazer 1979 de volta, às vezes com nova embalagem, seja apenas exercício literário apartado de sua produção de autoajuda. Um jeito de ressurreição ou de loucura. Tanto faz. Fosse possível, seria um grande presente que daria a si e aos leitores que lhe restassem. Caso restasse algum. 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

Maria morre não morre



É inevitável, minha querida, disse o marido; não tem jeito, se conforme, é assim mesmo, repetiram outros familiares, pois era realmente um caso perdido, não adiantava espernear, reagir e usar todas as forças porque as forças já eram poucas e, nessas horas, são últimas e cada vez menores, e então Maria percebeu que iria, é o destino de todos, embora ela não concordasse com isso, a moribunda, e gostaria mesmo era de estar sozinha, na floresta, urrando contra a morte, feito um bicho. Pelo menos poderia morrer a seu jeito, sem gente do lado para designar um rito, como quem diz é dessa forma que se morre direito.

Mas estava também morta de vergonha, mais uma morte, o escândalo que estava fazendo diante de todos, muitos torcendo pelo fim da agonia, mais para se livrar da cena, porque Maria não queria ir embora, apesar dos oitenta e cinco anos, muitos bem vividos, e talvez por isso mesmo preferisse esticar ao máximo sua permanência, mesmo entre aquele estranho grupo de parentes e amigos, cuja desculpa de abreviar seu sofrimento acabava por causar-lhe imensa decepção. Eles só faltavam fazer uma contagem regressiva e pareciam torcer freneticamente pelo desfecho, enquanto ela sentia-se traída pelo tempo, e lamentava a desvantagem em relação aos que ficavam vivos, a desinformação permanente que a morte provoca, sem contar o principal, o apagão, o pluft, a passagem pela porteira que dá acesso a coisa nenhuma.

Os outros seguiam ali por bons instintos, a crença na ida desta para uma melhor e algum sentimento religioso que ajuda muita nesses momentos, mas em termos práticos pode ser nulo, no mínimo sem garantia, e caso existisse outra coisa do outro lado, trata-se de uma mudança e tanto de ambiente, além do fato de ter que começar do zero num lugar desconhecido. O principal, no entanto, é que Maria não acreditava em tal possibilidade e por isso seu escândalo começava a incomodar.

Então, numa tomada de um fôlego espetacular, capaz de queimar monitores de frequência cardíaca e respiratória, causando ainda um estrondo no quarto do hospital, Maria saltou da cama como uma atleta, desligou-se dos fios em seus braços e encheu a plateia de impropérios, provocando também espanto nos médicos e enfermeiras, incapazes de explicar tal ocorrência sob a ótica da medicina.


Maria ainda viveu mais dez anos e morreu dormindo, sozinha como queria.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Teoria da dependência



Voltei, depois de muitos anos, para continuar o jogo.  Adélia banca meu final de vida, deixa trocados em cima da mesa, compra os remédios, passa o cartão de crédito no supermercado. Há um preço alto. Diante de todos, ela revela minha situação de pobre coitado, não tem onde cair morto, diz, com risinho de vingança. Os outros ficam sérios por fora, mas riem por dentro. Não sei por que a vingança, se não fiz nada. Talvez seja apenas a necessidade de Adélia em ter alguém por perto para suster e esmagar, morder e assoprar – e mesmo longe, estive por perto, levando sermões pelo telefone. Sempre saía reduzido a nada, como ocorre agora, todos os dias, desde a minha volta.

Não sou de todo inútil. Sirvo para escrever e-mails em inglês. O destinatário é o soldado desconhecido, um cara que Adélia conheceu em Nova York e que deu uns tiros no Afeganistão. Quando voltou da guerra, virou teatrólogo. Um gênio, segundo ela. Nunca o vi, nem em fotos, mas tenho ciúmes e raiva dele. Li sua última peça; é uma bosta. Melhor se continuasse matando afegãos. Mas escrevo, como um castigo, e reescrevo, quando ela pede mais sentimento e tensão. Sou um escravo de sua mente perversa, conforme já me disseram. Você faz tudo que ela manda? Faço até mais. Não por necessidade de algum dinheiro nem pela própria sobrevivência. Faço por vício.

Se ganhasse milhões, de repente, voltaria do mesmo jeito. As compensações estão escondidas em algum lugar, num ponto infinitesimal da cabeça de Adélia, em algum sentimento que não aparece, mas pode ser detectado, como uma partícula. Não sei o que é, mas existe. Talvez seja o momento em que me faço de vítima e entrego inteiramente os pontos; e aí ela chega, com tudo, todas as forças, a Cruz vermelha, a Cavalaria, o pronto socorro, o jantar no restaurante mais caro. O melhor é quando desliza a mão sobre meus cabelos – o máximo que pode fazer em termos de carinho. Desliza a mão suave de cremes importados, e embora diga você não tenho jeito, acalma minha tragédia, reduz meus dias de fracasso a um único instante sem ensaio de desespero.

Então eu durmo, acordo e a batalha recomeça. Já pensei em encerrar essa história ou fugir, mas nessas horas minha alma subalterna à sua se recolhe e decai. Como algo que deve ser assim e assim será, eternamente. Às vezes, quando estamos sozinhos, é ainda mais severa e cruel. Adélia se empenha dia e noite em aniquilar minhas vontades, planos e ideias. Quanto ao desejo, deixa correr, até provoca, mas não o sacia.  Portanto não faz aquelas cenas de dominação só para a plateia. É também algo íntimo, uma necessidade e um estilo. Quem sabe um estilo de loucura que, em essência é o mesmo, o meu e o dela, e sem o qual não haveria como seguirmos em frente.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Miniminimalista


Tudo pronto para quase nada. Espetáculo Infinitesimal em dois atos. No primeiro, escuro completo; no segundo, silêncio total. Não há cadeiras na plateia e o público não é visto a olho nu. Só existe teoricamente nesta nova montagem de Hamlet. A questão, no entanto, está posta: ser ou não ser? Os críticos se dividem. Um deles, neologista, chamou a peça de miniminimalista, assim, sem hífen. Outros consultaram físicos de partículas. Em todo caso, houve uma profusão de elogios à linguagem enxuta e concisa, pois tudo foi comprimido à pergunta essencial, sequer pronunciada, mas sugerida de forma sutilíssima por um ator que sequer estava em cena.

A vaga e célebre montagem veio para mudar nossa acomodada noção de diversão e arte. Agora, dizem, não é mais nada daquilo que conhecíamos como teatro, embora a fórmula já tenha sido tentada, no século passado, numa peça sobre o Gênesis, onde também não havia atores. O big-bang bíblico teve alguns inconvenientes. Quando Deus disse “haja luz”, não houve, por questões técnicas com a iluminação. Mesmo assim, o Todo Poderoso seguiu adiante, clamando pela expansão no meio das águas e aí, de fato, peixinhos de papel crepom circularam ao redor da arena, amarrados em fios de nylon, bem perto da arquibancada, quase diante dos nossos olhos. Arrancou surpresas e aplausos. Mas foi só.

O que vemos no recente Hamlet é a efusiva presença da ausência, o conceito no lugar de coisas e pessoas, o fim definitivo da penosa produção teatral - carpintaria, artilharia e outras dificuldades logísticas. Uma entrevista coletiva, muito bem dada, substitui tudo. Um ensaio ali, outro acolá, contornam o que o que Kant chamaria de  "pseudoproblema" e os astrofísicos de “singularidade”. Trata-se, enfim, do instante zero da dramaturgia nacional.  "O resto é silêncio".

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Urubus na sala


Não havia plano B e o A era fraquinho. A ideia: comprar guarda-chuvas e vendê-los na Avenida Paulista em dias de temporal, na saída do metrô. Comprei. Investi o que restava na mercadoria e desde então não choveu. Todo dia eu olhava a previsão do tempo. Nada. 0 mm. Em casa, o estoque de comida estava no fim e numa tarde, antes de cortarem a luz, vi na TV que o Estado enfrentaria uma seca, talvez a maior de todos os tempos, consequência do El Niño, ventos alísios soprando no sentido oeste, através do Oceano Pacífico tropical, com imensa repercussão em minha vida. Tudo ocorre por acaso, mas o acaso beneficia mais uns do que outros, aleatoriamente, sem sentindo, e é isso que chamam de azar - as repetições desastrosas em uma lista de repetições infinitas, como se a roleta só parasse no 1, eternamente, porque também é uma possibilidade.

Nessa época conheci Adélia, num ponto de ônibus. Contei minha situação. Ela tinha uma história parecida. Em pouco tempo ficamos amigos. Adélia pagava minha passagem com vale-transporte. Eu levava dois ou três guarda-chuvas. Esperava um erro da meteorologia. Só que a meteorologia já não errava mais. Virou uma coisa sagrada, como a Bíblia;  está escrito, assim será.  Existem onze mil estações meteorológicas no mundo, sem contar os satélites geoestacionários e os de órbita polar. Nas fotos, a Terra era azul, só azul, sem manchas de nuvens.

Outro problema é que os guarda-chuvas estavam ficando velhos, jogados pela casa – uma casa desarrumada, cheia de guarda-chuvas; uns abertos e outros fechados, formando um conjunto estranho, como uma instalação da Bienal. À noite, no escuro, eu tropeçava naquela coleção assombrosa. Adélia visitou-me pela primeira em janeiro e conheceu meus urubus esquálidos e inertes, no meio da sala, alguns com hastes quebradas. No quarto, deitou-se no colchão sem colcha ou lençóis, desnecessários no calor, e não mostrou espanto com nada. Estava cansada. Também vivia sua comédia de erros. Tentava vender cosméticos que ninguém comprava. Falta de tino para os negócios e uma cara sofrida que não combinava com cosméticos.

Tínhamos trabalho fixo no passado. Adélia chegou a ser dona de uma loja de antiguidades, mas o estoque acabou. Vendeu tudo, gastou o dinheiro, entregou o ponto. O mercado de antiguidades tem esse problema: as coisas precisavam ficar velhas e isso demanda tempo, e quem compra às vezes não vende; emperra o mercado. Eu escrevia numa revista sobre esoterismo, mas a revista faliu. A vantagem foi livrar-me dos textos absurdos sobre fantasmas quânticos, Deus da quinta dimensão e o poder das pirâmides. Nunca acreditei nessas coisas. Tratava como ficção. Enfim, depois dessas atividades, ficamos jogados por aí. Lembro que Juntando nosso capital não dava para uma semana, mesmo com a dieta à base de macarrão e sardinhas em lata. Ela foi ficando comigo, na escuridão, e depois sem água.  Pelo menos fechou os guarda-chuvas e espanou a poeira.

- Você sabe qual é o coletivo de guarda-chuvas – perguntou?

- Acho que não existe – respondi. A gente conversava pouco. No escuro, as palavras vão escasseando, como a água das torneiras e da chuva. Quando amanhecia era um alívio. Ela saía para tentar vender seus cosméticos e voltava para tatear comigo dentro da casa. Caíamos na cama para longos silêncios. Ninguém pensava em sexo, embora fosse uma opção naquela escassez, sem nada para fazer. Além disso, tomávamos poucos banhos, com água do vizinho, um lastimoso aposentado com problemas renais. Ele me informava sobre a previsão do tempo.

- Alguma notícia de chuva?

- Nada – dizia o vizinho – O problema é no País inteiro, quem sabe no mundo inteiro.

Nenhuma frente fria a caminho, enquanto a poeira já cobria o céu da cidade, junto com a fuligem da poluição, enquanto o sol caia avermelhado nos lados da Cantareira, enquanto Adélia continuava sem vender cosméticos. Ela costumava a culpar a falta de sorte – não pronunciava a palavra azar – e eu achava que alguma coisa deveria acontecer antes de ter que vender a casinha a rumar para outro lugar, um lugar que chovesse. Vendi um computador velho e a TV – sem energia e sem internet só faziam ocupar espaço.  Nem pensava em outro trabalho. Os guarda-chuvas se tornaram uma obsessão. Primeiro apenas minha, depois de Adélia.

- Guarda-chuvas podem ter outra utilidade – ela dizia, como se estivesse a ponto de lançar uma boa ideia. Não tinha. Talvez para proteger as pessoas do sol, eu pensei, mas isso passou, desde o império nem têm essa utilidade, e antes, há 3400 anos, na Mesopotâmia, um negócio parecido com guarda-chuva – aliás, guarda-sol - era levado por escravos para livrar os reis da insolação. Agora, as pessoas preferem protetores solares.

De certa forma estávamos presos aos guarda-chuvas ou à ideia de que guarda-chuvas, naquela crise imensa, do clima e das finanças, pudesse ser a chave-mestra para uma saída. Porém não chovia, repetia-se o número 1, dormíamos no escuro, Adélia saía para não vender cosméticos pela manhã e o vizinho informava que não iria chover.

- Por que não jogamos os guarda-chuvas no lixo? – sugeriu Adélia

– Porque pode chover assim que a gente fizer isso – eu respondi, olhando para o céu sem nuvens.

No dia em que o vizinho morreu de sua doença renal, caíram alguns pingos, e achei que chegara a hora de partir para o cemitério levando meu estoque, e parecia que finalmente chegara o momento, pois caíram uns pingos e depois ouvimos um trovão, e seguimos no carro funerário junto com os guarda-chuvas e o cadáver, olhando como a chuvinha ganhava força de tempestade. A água já escorria pelo meio fio e o trânsito começava a parar. À beira da cova, poderíamos proteger os parentes e amigos do morto, cobrando cinco reais para protegê-los do aguaceiro e já seria o começo do negócio no ramo de guarda-chuvas. Mas quando chegou o momento de todos se juntarem ao redor da cova, como nos enterros de filmes, o céu clareou de repente, mais uma vez o número 1, e voltamos para casa, eu e Adélia, abraçados e silenciosos, para deitar no escuro, como sempre, e esperar o dia seguinte, por uma nova chuva, a venda de algum cosmético ou qualquer ocorrência singular.

Duas semanas depois, jogamos os guarda-chuvas no lixo e não choveu. Não havia mais o vizinho para informar a previsão do tempo, Adélia foi embora, com seus prospectos de cosméticos, e fiquei na casa vazia, esperando o dia amanhecer, inteiramente liberto da minha obsessão, ainda sem plano B, mas achando que a saída de cena de alguns elementos – Adélia, o vizinho e o os guarda-chuvas – poderia significar uma nova disposição para os fatos, embora isso fosse apenas uma possibilidade, como a eterna repetição do número 1. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Nunca mais


Já tentei algumas vezes, mas achei complicado, ela disse, sobre morrer. Nenhuma tentativa foi muito séria, mais um ensaio, quase sempre comprimidos. Uma cartela. Vomitou. Ficou zonza e arrependida. Também se perguntou o que acontece depois. Analisou com calma as vantagens e as desvantagens do nada, a possibilidade de um escuro permanente, alguém do outro lado. Não gosto dessa conversa, eu disse, por que não espera a hora? Todo mundo se vai, um dia, aí você resolve seu problema. Qual é mesmo o problema? O de sempre: tédio.

Não fiquei com cara de reprovação; só curioso. Cada um põe e dispõe. Só avisei que só vemos a morte pelo lado de fora, o sucumbido teso parado inerte, mas como um pêndulo também se mexe, mesmo parado, como ponto final no escuro. Coisinhas fazem um rebuliço fabril por dentro, e ninguém vê – alma ou átomo, tanto faz. Bichinhos sem vida, de malas prontas, infinitesimais, todos discutindo em língua pisca-pisca, luminescentes, ou em ondas de luz. Veja em que confusão você irá se meter.

Os pedacinhos do mais ínfimo pedacinho vão embora, como se vai embora do emprego. Não têm mais o que fazer. O corpo fica; o corpo não sabe disso, pois desmaia para sempre. O que eu falei era suposição, para distraí-la, e pela primeira vez notei que prestava atenção. Mais atenção ainda quando criei que os miudinhos não carregam nossas informações, não sabem quem são – são quase coisa nenhuma. Apenas ocupam espaço, fazem número; com eles não existem copos meio vazios ou meio cheios, pois lotam tudo. Perambulam por anos a fio, até encontrarem outra hospedagem. Vi num livro. Você tem uns que já foram de Shakespeare ou de Gengis Khan.  Então é uma reencarnação efêmera. O futuro afeta o presente e até o passado. Você pode estar lá na frente com os mesmos problemas. Passado, presente e futuro estão moldados, em fatias pré-existentes. Essa equação já existe. Por isso pode ser inútil matar-se, eu disse, porque depois pode ser pior. O tédio pode ser pior. Tudo pode ser pior do que agora.

Dei-lhe o que podia: um enredo sem pé nem cabeça. Ela prometeu não tentar mais - nunca mais. 


Às vezes basta explicar que não há explicação.  

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Voo no escuro



Quando o piloto anunciou o pouso de emergência, seguimos as instruções de praxe, dobrando a cabeça contra os joelhos. Havia uma estranha calma a bordo, como se o aviso fosse banal, algo como abrir a mesinha à sua frente para serviço da refeição. Nenhum sinal de medo, exceto o meu, um pavor não expressado para não destoar dos demais. O 733 mergulhou de bico, como uma seta num rio, mas um rio fundo, talvez sem fundo, porque passamos muito tempo naquela posição e, enfim, quase horas depois, a velocidade começou a ser reduzida – primeiro aos poucos, depois quase parando, até chegar a um ponto em que era possível sentir uma sensação de conforto, embora estivéssemos ainda na vertical.

Com a voz serena, o piloto pediu que todos voltassem à posição normal, mas achei complicado, pois estava olhando para as cadeiras da frente e elas estavam em cima. Mesmo assim, a comissária veio em minha direção, andando normalmente, contra a gravidade, e perguntou se eu queria alguma coisa, um copo de água, uma Fanta, um uísque.

- Quero uma explicação – eu disse -. Quero saber o que aconteceu. Por que estamos assim, como um obelisco enfiando no chão, de ponta cabeça?. A aeromoça riu, trouxe um uísque, e ninguém se espantou por ela estar andando pelas laterais do avião, às vezes no teto, igualzinho a Fred Astaire em Núpcias Reais. Só não havia a música, apenas o som contínuo do ar condicionado.

- Onde estamos? – perguntei -. Ela respondeu: chegamos.
- Chegamos onde? – insisti.

Ela deu com os ombros, enquanto os outros passageiros já retiravam suas bolsas e casacos do compartimento de bagagens. Vi perfeitamente quando um homem de uns sessenta anos, também com os pés colados no teto, perguntou as horas. Eu ainda estava com o cinto de segurança e só iria soltá-lo em caso de uma explicação convincente, mas a aeromoça foi clara: o senhor precisa sair. De repente, sem o cinto, também passei a andar pelo teto e a situação bizarra não impediu que prevalecesse meu lado de consumidor mal tratado. Incrivelmente a sensação de conforto me incomodava. Não gosto de ficar sem respostas.

- Vou fazer uma reclamação assim que chegarmos ao aeroporto -. Ela informou que não havia aeroporto, e, portanto não havia guichês da companhia aérea nem serviços de táxis nem uma cidade propriamente dita.

- Na verdade não há nada – acrescentou a comissária, de lenço vermelho no pescoço. Só sei que chegamos e temos que sair. São normas da empresa. Eu embarcara num voo para a Cidade do México e agora estava de cabeça para baixo, enquanto outros estavam de cabeça para cima, enquanto um grupo de crianças se divertia com aquilo.

A aeromoça acrescentou mais dados às minhas dúvidas. Disse que houve mudanças, mudanças bruscas, no decorrer da nossa viagem. Os outros sabiam disso, menos eu.

- Por que vamos descer se não há nada lá fora? Cadê a cidade do México?

- O senhor pegou o voo errado, mas não dava mais para retornar ao aeroporto de origem. Vamos tomar as providências necessárias – falou a comissária, do jeito que as comissárias falam – risonha e impessoal.

Quando as portas se abriram só havia escuro. Um escuro espesso, gelatinoso, sem cheiro de nada. Dava para pegar no escuro, moldar alguns pedaços nas mãos, e por isso acendi um isqueiro para ver mais adiante. A luz do isqueiro não fez efeito. O próprio fogo também era maleável e frio, pegajoso como gel. Pensei em mau tempo, mas a comparação não era boa. Uma escuridão palpável como aquela poderia ser tudo, mesmo um fenômeno natural.

Quando descemos as escadas, abrindo caminho na escuridão espessa, os outros passageiros sumiram e procurei seguir em linha reta e assim, em linha reta, continuei andando até hoje, ainda atrás de sinais de vida, ainda atrás de uma conclusão para uma história absurda, ou num golpe de sorte, de um balcão de informações.

...


Resultado: desisti de continuar aquela sinopse. Desliguei o computador e saí por aí, certo de que não terminaria meu primeiro projeto de filme de mistério. Tudo era muito manjado, tirado de outras obras de ficção, e o pior é que eu não sabia como explicar as cenas que criei. Faltava lógica, base científica, personagens consistentes. Além disso, aquela massa escura era uma parede que impedia o prosseguimento do filme. Deu um branco – um preto, para ser mais claro.


Foi assim que abandonei o cinema e voltei à minha cidade, no sertão, para retomar a vidinha de funcionário e escritor regionalista. Para contar histórias do meu avô, dos meninos da fazenda e do gado magro da seca. A crítica não gosta mais dessas coisas, mas no céu escuro havia milhões de estrelas e os andarilhos andavam com os pés no chão.

sábado, 5 de setembro de 2015

Comida


Enquanto viveu, o Diabo amassava uns pãezinhos deliciosos. Em seu auge, Lúcifer, em pessoa, servia ciabatas e brioches fumegantes, saídos do forno-inferno, e ainda tinha manteiga, derretida sobre a crosta crocante, Cream crackers, Krathong-thong estalantes nos dentes, untando-se no palato ao ponto, massa perfeita; e outros com lavas de mel, os pães doces, variados, internacionais, como kringel da Estónia, sem contar os recheados com figo. O Diabo nos servia até mesmo comidas desconhecidas naquele tempo.

Jesus também entrou no ramo alimentício com igual disposição, transformando cinco pães de cevada e dois peixinhos no primeiro bandejão da história, suficiente para alimentar uma multidão, conforme nos contam os quatro evangelhos canônicos, com informações gastronômicas de Mateus, Marcos, Lucas e João. Cinco mil pessoas saíram satisfeitas com a refeição. Houve outra experiência-milagre para um público menor, quatro mil comensais, mas a farra culinária foi interrompida até a Santa Ceia, cujo cardápio variado e farto ainda hoje nos dá água na boca. Tinha peixe com molho agridoce, pão ázimo, carne de cordeiro, guisado de Esaú, salada de aipo, ervas amargas e, na sobremesa, compota de frutas com mel. Nada mais justo para um último repasto.


Desde então não existe mais almoço grátis.

sábado, 29 de agosto de 2015

Sermão



Bem-vindos à Igreja da Dúvida. Divagaremos em nome de Deus, ou de outros nomes, pois nosso sagrado templo nasceu da incerteza e do acaso, perdeu-se no tiroteio cósmico, mas achou-se entre pessoas de boa vontade e espírito aberto, caso haja espírito. Não sabemos muito e do pouco que sabemos ainda nos restam imprecisões e ambiguidades. Por isso, nossas preces são em forma de perguntas, e embora nenhuma delas tenha sido respondida até agora, contamos com cenários possíveis e alinhamos histórias conciliáveis, teorias e suposições. Por isso, perguntamos, em cada culto, se Deus existe e como Ele opera. Ou se não existe. De qualquer forma, depois da revelação – seja ela qual,  for -, fecharemos a igreja.  

Gari

Depois da coleta, costumo tomar um banho demorado. Aos poucos, vai clareando, uma saída aponta, me sinto lindo e cheiroso, mas logo é hora de deitar e dormir para mais lixo no dia seguinte. Na nova jornada, o uniforme limpo vai ganhando de novo seu cheiro de verdura podre e suor, enquanto corro atrás do caminhão, com sacos pretos nas costas; enquanto troco algumas ideias sobre futebol e a vida.

Cruzeiros

De navio, não. Bossa nova em ritmo de bolero, o bufê com o mesmo gosto, pessoas cheias de cordão de ouro, falando as merdas que os desconhecidos falam. Sem contar que o mar é chato quando só tem mar o tempo todo, pelo menos eu acho, nem precisa concordar comigo; só sei que não vou, ela disse e era definitivo. Não iria. Nunca esteve num cruzeiro marítimo, mas tinha uma ideia de como são. Só pensa naquele pequeno necrotério do porão, onde guardam os marinheiros de última viagem - os velhinhos; eles e suas cadeiras estiradas no convés, quase todos pensando em suas vidas de maneira estatística e melancólica.

Mar da Tranquilidade


Nua, olhando a lua. Marina estava deitada com seus pelos apontados para o Mar da tranquilidade, lá em cima, com sua visão telescópica de fêmea sadia, enquanto caía uma chuva fraca na praia, em 1978, o ano-base de nossas vidas. Sem 1978 não seríamos o que somos, os filhos não teriam nascido, o mundo não teria graça, quase não existiríamos. Aquele foi um dia de sorte, uma confluência de acasos, entre infinitas possibilidade, e aquela era a nossa, no meio de trilhões. Sua beleza inebriante não era tudo. O jeito como ela falava, no entanto, era. Achamo-nos no romantismo tardio, mas depois veio a realidade, naturalista, a mão afagando o pau-pedra, intumescimentos, necessidades, desambiguação, Et Cetera. Tudo conforme o vaivém das ondas, numa coordenação perfeita, apesar da areia atritando rugas internas e o território circunciso.

sábado, 22 de agosto de 2015

O livro de Ateneo



Quando contei que estava escrevendo um romance sobre 1979, ele simplesmente mudou de assunto. Sua aparente falta de curiosidade escondia uma coisa grave, pois já sei como o animal se comporta nessas horas. O assunto puxado por ele era irrelevante e apareceu assim, numa tomada de fôlego, apenas para substituir o anterior, mostrando como Ateneo se assustara com minha revelação. Pensei: volto ou não volto ao meu livro? Estou pronto para uma avaliação de quarenta anos de amizade?

A princípio, a preguiça contou mais. Seria uma conversa dolorida, cheia de reclamações, e isso termina até afetando sua relação consigo mesmo. Mas Ateneo parecia tão desconcertado, sem saber o que dizer; ele estava pálido. Então resolvi enfrentar o animal, como enfrentei outras vezes, na infância e adolescência, quando passamos a nos chamar um a outro de animal.

O negócio foi se esclarecendo. Ateneo tinha pensado o mesmo livro, que nasceu de nossas conversas em 1979 sobre o universo das partículas e as histórias bizarras da física quântica - como o fato de um nêutron estar em vários lugares ao mesmo tempo. O enredo se mesclava com pessoas que conhecemos na época e cada uma delas fazia parte do Modelo Padrão – teoria quântica de campos desenvolvida entre 1970 e 1973. Nós, os personagens, éramos as partículas fundamentais da matéria.

Estudante de Física, ele se achava dono de mais de cinquenta por cento dessas conversas, emitia mais informações, e, portanto eu não poderia começar a escrever um livro sobre o assunto à sua revelia. Mais: ele se achava o coautor natural de um romance que estava nas primeiras linhas. Quanto ao seu próprio romance, Ateneo garantiu que estava amadurecendo a ideia e quando esta amadurecesse me chamaria para um trabalho a quatro mãos.

A partir daí nos deixamos de falar.

Mais tarde, fiquei sabendo que Ateneo também tinha escrito o livro, enquanto fiquei só no início, travado com nossa última conversa. Eu, na verdade, era o enganado, e entendi finalmente sua reação naquele dia. Ateneo não se sentia traído, ou, pelo contrário, não sentia culpa.  Seu desespero e sua fúria eram apenas pelo risco de não ser mais inédito. 
Resultado: Ateneo editou o livro, com seus próprios recursos, porque nenhuma editora se interessou. Depois disso, só silêncio da crítica e desprezo do público. Ele terminou seus dias cercado de exemplares encalhados.


Tantos anos sem vê-lo, a raiva havia cedido. Recebi o desfecho com imensa tristeza, não apenas por ele, mas por todos nós, personagens do livro sobre 1979. O nosso modelo padrão havia desabado na teoria e na prática. Era só uma ideia pretenciosa e perdemos muito com isso.

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Turismo Paralelo



Chegamos às 6h30, como previsto, mas a hora pouco importava porque não havia mais tempo nem espaço. Quer dizer, mais ou menos, pois cada viajante pode criar horário e ambiente de acordo com sua preferência e imaginação. Portanto, para quem gosta de destinos exóticos eis o melhor de todos. Literalmente no meio do nada e regido por regras desconhecidas - ou regra nenhuma –, o novo paraíso turístico, com sua poderosa gravidade, tem atraído tudo que passa por perto e às vezes por longe também. A maioria chega sem precisar sair e some do jeito que apareceu, num piscar de olhos ou menos.

Tudo pode acontecer por aqui, inclusive coisa nenhuma, mas neste caso a possibilidade é muito pequena, mais ou menos uma em mil trilhões. Antes do embarque o cara da agência de viagens nos preveniu que não estávamos indo para um lugar. Estávamos indo para uma situação. Até há pouco tempo, isso só existia em teoria, numa equação, e agora estamos aqui, junto com um grupo de turistas, em busca de diversão e respostas.

Diário

Não trouxemos malas, nem precisamos delas. Guardamos tudo na memória. Falar nisso, por uma singularidade ou coisa que o valha, malas de todas as cores, aos bilhões, entraram numa certa órbita, como uma interferência ou demonstração de hospitalidade. Só não conseguimos pegar uma das malas – são bilhões – porque elas não têm massa. As malas não estavam na equação – vai ver que é isso.

Acordei – ou algo parecido em minha precária simulação de tempo – e não senti as pernas. Não só as pernas. Minhas mãos não tocavam qualquer textura, em mim ou fora de mim, embora eu fosse capaz de enxergar coisas muito pequenas, teóricas, que podem estar em muitos lugares ao mesmo tempo, assim como Deus e o elétron.

Difícil é reunir o grupo. Um dos nossos tornou-se uma figura insubstancial, quase um fantasma, e só dá as caras quando bate numa dobra do espaço-tempo. Então ele explode, mas no segundo adiante está recomposto, em teoria, conforme os cálculos do funcionário da agência, cuja existência foi comprovada precisamente pelo rastro de seus cálculos. Nunca foi visto em pessoa; é uma função de onda ou coisa parecida.

Relacionamentos sociais são muito fluídos, escorrem, acendem e somem. Festas confusas. O mesmo homem passa pela mesma porta, como num loping, e ninguém liga. Não é esnobismo; o sujeito sempre esteve ali, naquele número, e desde quando nem ele sabe. Sem contar o pessoal que vai embora antes de chegar.

Aqui, pelo menos em tese, qualquer um pode encontrar-se consigo mesmo. O segredo é tratar o outro você como um desconhecido. Ele fará o mesmo e pode até passar através de seu corpo sem causar um único arrepio. Não sei quem combinou essa história, mas funciona.

Talvez existam, mas não detectei a presença de pele, gosto e cheiro. Nem pensar em carne, sangue e suor. As pessoas daqui são muito discretas.  

domingo, 26 de julho de 2015

A cópia



As coisas não funcionaram dentro do previsto e por isso estou de volta e por isso trouxe comigo a minha mulher doente, esta com o rosto escondido. Vamos ficar aqui, num cantinho qualquer, caso não seja incômodo, e prometo procurar emprego, todos os dias, mesmo que não haja emprego para um homem de sessenta anos. Além disso, tenho uma longa história para contar e espero sua paciência e compaixão, se não é pedir muito.

Minha vinda para sua casa tem um motivo. Por enquanto, enquanto me ajeito aqui, quero sua atenção para o fato de que seu ex-marido morreu há muitos anos e eu sou apenas uma cópia dele, feita às pressas, instruída para procurá-la e mais do que isso – vim por vontade. Não pergunte por quê; é assim. Não tenho maiores pormenores; seu marido esforçou-se para dar mais detalhes, mas só disse “vá”. Fechou os olhinhos e seguiu em outra direção. Cumpro minha palavra e minha natureza e estou em sua casa com minha mulher doente, aliás, mulher dele, deixada viúva, quase não fala.

É uma situação complicada e um pouco destoante do senso comum. Talvez destoante demais. Além disso, não sei explicar-me direito, como cópia, porque sou igual ao que ele era e desse modo sou ele. Eu entendo a sua cara de espanto e até agradeço. Prova de que ouve minha história de cópia de seu ex-marido, um homem que você não vê há uns vinte anos. Então, deve se perguntar: por que eu (ele) voltaria depois de tanto tempo? Que palhaçada é essa de cópia?

Fosse só isso, eu sei, dava para levar dentro do seu arsenal de palavras e vivências, mas agora tem um dado bem além, pois embora eu tenha os mesmos jeitos e gestos de seu marido, um processo qualquer deu errado – ou certo, depende – e detectei em mim uns pedaços que não são dele, eu sinto, e esses pedaços, meus, exclusivos, pensam outras coisas.  Sou seu ex-marido até certo ponto – gostou do cheiro? -, mas sinto outro tipo de intimidade com você, a minha, a da cópia, não a dele, o original.

Minha mulher doente tem cara de doente. Tudo o que se imaginar em literatura está em seu rosto mortiço, pele macilenta, maçãs do rosto afundadas. Tosse e tem delírios. Ela não sabe o que se passa, pois não viu a morte do marido e acha que tudo é produto da doença. Basta ela tirar esse xale em que ela se esconde de medo.

Também é importante deixar claro que voltei para ficar. Estou aqui a partir de agora, sem dinheiro, e ainda por cima trazendo comigo uma mulher doente. Lembro-me dela antes, saudável, sentada numa varanda, olhando o tempo passar, numa recordação minha; não dele.  A vinda aqui é de entendimento, portanto. Se você pensa que sei mais desse acorrido, com seus resultados bizarros, está enganada. Uma cópia só sabe que é cópia e um pouco mais, talvez o bastante. Não sabe por quê. Tenho registro para vir aqui e cá estou; mas não é apenas isso. Ainda tenho restos de memórias sobre outra vida, em que talvez eu não fosse cópia, e em que você está sentada, numa varanda, olhando o tempo passar.  


A razão principal da minha volta, no entanto, é outra. Voltei porque você também é cópia. Cópia dela, da minha mulher doente, da mulher dele doente, e quero continuar com você, pelo resto da vida, porque ela, agora mostrando o rosto, está indo embora daqui pouco, deixando partes em sua vida, e pelo jeito é assim que funciona. Só não sabemos por quê.