sábado, 19 de março de 2016

Mal-agradecidos


Saído das nuvens, o Deus Todo Poderoso estava enfim visível, mostrando sua cara do tamanho do sol, cheio de energia – 3,83 x 1033 ergs/s de ergs/s - e bem humorado. Não era esperada uma figura assim, tão descontraída, pois antes dela reinava em nossas mentes a ira do senhor, uma imagem severa anunciando o fim dos tempos e amparando os seus. Não. Deus veio só dar uma olhada e pôr fim à descrença geral. Só faltou dizer “vejam aqui, eu existo, mas nem foi preciso. Contudo, a sensação de júbilo, aos pés da Providência, não durou muito.

Não O víamos direito por causa da luz, mas Ele falou. Todos prestaram atenção quando Deus falou em vida eterna, depois da morte, ou antes dela, sabe-se lá. Nessa hora as pessoas ficaram confusas, sem saber se acabariam na terra ou teriam uma existência infinita. Deus falou por parábolas e não houve rodada de perguntas.

Mas Ele não perdeu a elegância e a humildade. Estava lá, bilênios depois do início de tudo, cuidadoso para não interromper nosso cotidiano, escolhendo as palavras para não ofender ninguém, embora estivesse se dirigindo a todos. O curioso é que nenhum de seus filhos aqui na Terra foi citado. Preferiu conversar sobre física e futebol. Ele disse também que não tinha controle sobre nossas vidas. Uns acharam bom; outros, ruim. Muito mais gente achou ruim.

Apesar da indescritível aparição, assim, sem mais, as pessoas passaram em seguida, questão de minutos, depois do susto, a questionar a utilidade daquela magnificência. Se o negócio da vida eterna continuou no ar e se Deus não conduz nossas vidas, para que, afinal, Ele serve? Ou, por outra, o que ele veio fazer aqui?

Impressionante como as coisas perdem valor neste planeta. Um acontecimento daquela grandiloquência logo é tratado como inferior às expectativas, e houve aqueles que deram as costas para o show, foram embora. Um anticlímax para a maioria. Todos pretendiam um Deus mais centralizador, ciente de todos os atos de cada um, um por um, e ainda responsável pelo que se passa no universo, no meio das estrelas e no coração da matéria. Deus, no entanto, disse que era apenas um estudioso do assunto. Dai a decepção.

Enquanto Deus mantinha a custo uma pequena plateia atenta, a maior parte entediou-se com a apresentação e depois veio um sentimento mais complicado, de abandono, uma vez que o Todo Poderoso não era tão poderoso assim; mesmo com sua potência equivalente a 10 bilhões de grandes hidrelétricas. Poderia ter usado esse arsenal contra nós, e faria ali um Armagedon, caso quisesse, mas Deus, ao contrário do que pensam, não tem planos. Tem bom senso. Mostrou que jamais faria uma maldade daquela com a gente.

O essencial, porém, virou detalhe. Não perceberam a verdadeira bondade, quase inconsciente, daquela criatura em resplendor. Eu fiquei e via homens, mulheres e crianças desdenharam o ato, apesar do ineditismo, alguns com considerações intelectuais, sentindo-se superiores. Todos esses tinham uma opinião.  

Para o ateu a presença de Deus era ao mesmo tempo a negação de sua existência. Sem perder o estilo, Deus explicou que possui algumas funções esperadas, e citou como exemplo sua capacidade de estar em vários lugares ao mesmo tempo. Não adiantou.  Argumentaram que um elétron, bem menor do que Ele, faz a mesma coisa. Os crentes adotaram outra versão: o verdadeiro estava por vir e aquilo era só um sinal.

A atmosfera incendiada de cores e a boa dicção do Criador, ou mero observador privilegiado, seja como for; nem isso, nem a queda de tarde com a suma surpresa; nada, nada prendeu os espectadores até o último ato. Além da demora, o inconveniente dos olhos ardidos de tanta claridade. O principal é que esperavam mais do Supremo.

Deus tentou de tudo, a meu ver; tentou fazer piada com a situação – e nisso foi sutilíssimo –, tentou prender a atenção com alguns truques, mas o grosso da plateia já se dissipava. Ficaram aqueles realmente pios, os que não queriam constranger o visitante e uns vagabundos. O show foi perdendo plateia, ora aos poucos, ora em turbilhão, e chegou a um ponto em que restamos nós, bem poucos, em se tratando do que se tratou.

Ao final de um longo e penoso dia, Deus partiu.


segunda-feira, 7 de março de 2016

Personagens desnecessários XI


Elói

Algumas pessoas fracassadas têm forte autoestima e assim levam a vida, minimizando aqui e ali, como fazia o artista da pequena cidade onde eu nasci. Artista autodenominado, pois todos o conheciam apenas por ser Elói, o coitado, um cara sem emprego. Elói era um homem de diversas artes – da capoeira à literatura -, mas nenhuma delas nunca lhe deu um tostão durante a vida. Tinha muitos planos não realizados – continuam de pé, sempre dizia – e pequenas mentiras incorporadas à verdade no decorrer dos anos. Caso de uma viagem a Paris, nunca feita. Por trás de dele, no entanto, todos lamentavam perversamente sua falta de talento.

Mas as pequenas cidades são generosas, no final das contas.  Hoje existe um busto de Elói diante do paço municipal.

O parto

Os gêmeos nasceram disputando espaço, desde o útero, um tentando deixar o outro para trás na hora do parto, cabeça contra cabeça, uma competição selvagem, batalha de vida ou morte no líquido amniótico. Suspensa as vias naturais, dada a violência da briga, a cesariana tornou-se um espetáculo pavoroso, nunca visto na obstetrícia, pois os bebês se engalfinhavam e quando tinham chance erguiam a mão, em busca de resgate, num choro que parecia grito. Saíram dois estranhos ofegantes, e o primeiro a ser puxado esboçou uma cara de desdém para o segundo, que exibia revolta e estava vermelho de raiva. Como Ares e Hefesto, filhos de Zeus, e Caim e Abel, filhos de Adão, os gêmeos estariam destinados a uma vida de conflito permanente. O médico, no entanto, tranquilizou os pais: “a concorrência é saudável em nossa economia de mercado”.

Claustro


Não havia nada a ver pelo buraco da fechadura. Só uma claridade branca, estourada, equivalente ao escuro em termos de observação de movimentos. Ou pior, pois não se podia lançar uma luz naquele ambiente, uma vez que a luz já estava lá com toda sua força.  O que restava era a casa, a porta, e só era possível olhar para trás, onde estavam os móveis e não havia janelas.

quinta-feira, 3 de março de 2016

Graciliano



Basta olhar. Um matagal sem gente quase de ponta a ponta da propriedade, pouca área de pasto, nenhum gado, dinheiro curto para comprar animais de qualquer espécie. Então suponho que tal herança não será de grande valia. Uns dizem para investir; outros para vender. Enquanto isso, gasto o que tenho com a manutenção da casa. Não é grande coisa, embora confortável. Três quartos e uma varanda em forma de U, abarcando quase toda a paisagem. Salários para morador e empregada. Não sei quantos hectares em volta sem nada plantado. Tem mais: não entendo de agricultura nem sei imitar Paulo Honório.

Invisível

Apenas vim apreciar o espetáculo. Há muito tempo é assim. Olho e não participo, pois a diversão alheia me parece suficiente, enquanto o interesse por mim mesmo – eu sozinho, eu com outros – a cada dia torna-se mais rarefeito e sem graça. O que faço é planejar a visão seguinte, de gente e de coisas, desde o casario colorido à saia levantada pelo vento. Mesmo as ruas vazias, os insetos em busca de abrigo, a noite silenciosa e o barulho do trânsito são mais atraentes do que meu pensamento, minha visão do mundo e minhas sensações físicas. Só almejo a invisibilidade.

Um cão

Tudo começou quando matei o cachorro dela com o cinto de segurança. Foi sem querer. Ao desatar o cinto, o cinto agiu como um estilingue na cabeça do cão, acertando-o com a parte mais dura, a do encaixe. O animal deu um grunhido, um só, e o coração parou de bater. A reação dela foi além do que se espera em face da morte de um bicho, mesmo de estimação. Ela deu um uivo de horror dentro do carro e olhou para minha cara com o ódio de inimiga. Abraçada com o morto, culpou-me aos gritos pelo assassinato de Astor, um poodle, e embora tenha sido culposo não houve atenuantes. Assassino, ela me disse, enquanto os olhos se reviraram de desespero.

Mãe

Uma correria na cozinha, enquanto o forno queima os bolinhos, enquanto a mãe mexe a panela com chocolate, cuidando para não desandar, criar bolhas, pois dessa forma a cobertura não estará de acordo com sua fama de doceira, tão difundida na família, mas apenas por agrado, ou compensação. Os bolos da padaria são bem melhores e se fossem feitos por mães, seriam mesmo notáveis. Só que a mãe vive dessa fantasia, real para ela, e todos cuidam para não desfazer a única coisa que a mantém assim, sempre disposta e empenhada em manter a família unida, pelo menos diante de seus olhos.

Viagem


Soube que ele foi embora. Embalou as coisas, fechou a porta, entregou a casa. Não comunicou o destino. Por enquanto só temos deduções, pois havia no lixo um prospecto sobre o Laos e um livro rasgado sobre Saturno.