domingo, 31 de julho de 2011

Gente

Maria José tinha uma péssima mania: organizar festas e jantares para convidados que não se davam uns com os outros. Alguns eram inimigos ferozes entre si. Desde criança gostava de provocar constrangimentos e quando virou adulta tornou-se quase uma promoter de eventos com essa característica. O mal-estar geral era sua principal fonte de prazer, talvez o único, mas os convivas também tinham culpa no cartório, especialmente aqueles que repetiam a dose. Anteviam saias justas, cumprimentos falsos, olhares de desprezo e até barracos. Mas iam sempre.

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Adriano não dorme há três anos. Andou em médicos e nenhum soube explicar o que aconteceu com ele, naquele sábado, quando se deitou e não conseguiu pegar no sono. A partir de então são 1.095 dias de insônia. Tomou os mais potentes soníferos e ansiolíticos, mas continua acordado, pesquisando sobre a provável doença. Talvez seja má-formação de Chiari, uma coisa rara, mas ninguém tem certeza. Passa as madrugadas escrevendo versões de seu último sonho, com diversos desfechos. Muda os personagens.

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Rita também tem uma doença rara. Dez anos de seu passado foram apagados. Nenhuma lembrança. Nada. Mas não lhes fazem falta. Está mais jovem e agora não precisa carregar o peso daquela década pelo resto da vida. Foi um tempo difícil.

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Quando tinha 12 anos Roberto resolveu ser crítico de cinema. Enquanto os garotos de sua idade sonhavam com profissões habituais – jogador de futebol e astronauta -, ele lia Cahiers du Cinema. Hoje é gerente de uma concessionária de automóveis. Gosta de filmes de ações. No DVD.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Malvadezas

Clique aqui para ler o o texto "A Revolta dos Personagens", no Malvadezas.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Viver não é assim

O cheiro de morte chegou antes da morte. Algumas partes do corpo já exalavam o trailer do desfecho. Contas vencidas na porta, não recolhidas, era outro sinal. No meio da sala, deitado e nu, perdia peso e líquidos, embora a mente continuasse ativa, para não deixar o rito final despedido de alguma substância literária. Imaginava pequenos contos, cada vez mais delirantes, enquanto o cérebro se separava do corpo dormente. Não sentia nada abaixo do pescoço, mas os pensamentos fluíam com certa qualidade e estilo e personagens complexos. Ele próprio, naquele estado, já era um deles. Havia ainda o ar pesado dentro de casa, já formando gases, criando uma atmosfera bioquímica lúgubre e fedorenta, ideal para o momento. Deu tempo para imaginar a presença do poeta Augusto dos Anjos, sentado num cantinho, anotando tudo. Deu tempo de dar várias voltas e retornar ao mesmo lugar quando a porta foi arrombada.

O cortiço paulistano foi enfim exposto à visitação pública: dois PMS, três vizinhos e depois a ambulância. A sobrevivência não estava nos planos porque o nojo de si, de repente, veio à tona. Não queria dar ao espetáculo o grau de tentativa de suicídio. Ele estava ali esperando qualquer coisa, menos a realidade. Enfim, não queria ser mais um a observar a cena. Mas foi.

Vinte dias no hospital público – um suplício bem maior do que sua sala infectada vermes. Sim, os vermes chegaram para completar o serviço. Viscosos e dispostos, não contavam com a intervenção de terceiros. A enfermaria coletiva era pior e o fato de estar ali, diante de doentes comuns, era constrangedor. Caso tivesse morrido as pessoas seriam mais compassivas. Sentiriam asco, claro, mas não sentiriam tanta pena. A morte encerraria o processo, o local seria limpo e vida – a dos outros – seguiria normalmente.

Alternativa provisória: estado de coma. Talvez aqueles pensamentos prosseguissem e poderia ser uma delícia desfrutar os momentos em que a imaginação se separa do corpo, sem nenhuma conotação religiosa, apenas uma ocorrência neurológica. Outra vantagem, também momentânea de estar inteiramente alheio, noutra: a saída. Sentiria medo, vergonha e preguiça. Depois da alta hospitalar teria que correr dos credores, procurar uma casa, tentar um emprego. Foi ai que os sintomas do velho Transtorno Explosivo Intermitente, o TEI, voltaram com força total.


- Continua no próximo capítulo?
- Acho que não, né? O cara começou a andar em círculos. A história está num impasse.
- Só que não pode terminar assim...
- Ah, pode. Vai fazer o que? Ele morre? Não. Se dá bem na vida? De jeito nenhum. A volta à sala seria óbvia, mais circular ainda. Além disso, a sala já está limpa, lembra?
- Meio manjado, também acho.
- Tem mais: saídas absurdas nem pensar.
- Deixa assim, então?
- Deixa. Vê se esquematiza melhor nas próximas histórias...
- O diálogo também é meio fraco.
- Que diálogo.
- Este nosso, aqui, agora.



Lula Falcão

segunda-feira, 25 de julho de 2011

TEI

Vai funcionar assim. À moda dos seriados. No capítulo anterior ele estava deitado na sala imunda, nu, sem saída para a falta de dinheiro. Não conseguiu vender o rim. O desespero virou calma absoluta. Tinha que tomar uma decisão, tomou: entregar os pontos. Permaneceria ali, inerte, até fundir-se com a sujeira da casa. Os vizinhos iriam notar, um dia, pelo cheiro de cadáver e de restos de pizza. A vigilância sanitária e o serviço funerário cuidariam da cena. Para isso servem os impostos.

No escuro da luz cortada, ainda assim fechou os olhos, deslocando o pensamento para outras paisagens. As pedras lisas de sua pequena cidade, noites de chuva, velhos amigos sumidos. O último emprego apareceu num canto da mente, pois fora demitido – desse e de outros – por uma doença, ainda pouca estudada, que deixa as pessoas com o pavio curto, briguentas, os nervos a flor da pele por qualquer coisinha. O nome é TEI (Transtorno Explosivo Intermitente). Disso, agora, ele estava curado. O pavio apagou. A bomba interna foi se concentrando num ponto até sumir. Big Crunch.

No trabalho, anos antes, era assim. A simples existência de um chefe soava inadmissível para ele. Chamado ao aquário do escritório, para ouvir algum tipo de reclamação, tentava seguir as instruções do médico. Contar até dez para não explodir. Não funcionava sempre. Quando conseguia, descia as escadas até a garagem do prédio, engolia dois ansiolíticos e subiu para ouvir novas broncas quase em estado de catatonia em sua fase passiva. O jeito nervoso não passou despercebido e, pior ainda, em se tratando de um escritório, o uso de remédios logo ficou muito na cara.

Em casa, a mesma coisa. Morava só, mas tinha vizinhos, e eles faziam os barulhos de sempre. Numa escala de 1 a 10, estavam no topo de sua irritação móveis arrastados, barulho talheres no prato, aspirador de pó e, ocupando o primeiro lugar, música. Os vizinhos repisavam o senso comum das FMs até seu cérebro começar a zunir. A solução era a rua, também barulhenta, mas se estivesse no campo, como esteve algumas vezes, a estridulação dos grilos igualmente mexiam no limite de sua paciência. (continua – ou não)

Lula Falcão

sábado, 16 de julho de 2011

A Lacraia

Tinha tudo nas mãos: boa história, personagens densos e um narrador de primeira. Ele mesmo. Faltava, no entanto, uma fonte de renda que não exigisse expediente tão puxado. Lembrava sempre que Machado e Drummond tinham merecidos empregos públicos. No seu caso, ao contrário, tratava-se de uma empresa de alta tecnologia, cheia de exigências, gráficos, planilhas, atualizações permanentes, estudos de mercado e outras aperreações que tomam o dia e a vida do sujeito. Havia ainda chefes. O dele, então, era quase o site da empresa, com sua missão e portfólio, nomes dos clientes, característica de cada um deles, produtos, serviços, vendas e vendas. Nada além disso. Um paletó e gravata.

Boa desculpa para não escrever o que tinha em mente porque as horas fora da empresa eram gastas com a mulher dos seus sonhos, uma lacraia inculta, consumidora voraz de seu tempo e dinheiro. Mulher que para em vitrine, pergunta “não é lindo, esse?”, depois entra na loja, experimenta vários e finalmente dá uma patada de respeito no saldo bancário do casal. E ele, nada, pagando, ouvindo detalhes sobre tamanhos e cores, concordando que o preço foi muito bom em se tratando de uma calça com aquelas qualidades e marca.

Seus poucos momentos para a escrita ficavam restrito ao banheiro, nas madrugadas. Ali rascunhava num caderninho as idéias sobre o romance e sobre ela, a selvagem na cama, a mulher que parecia ser parte de seu corpo, como um pulmão, mas que roubava seu sonho de tornar-se escritor. A dama do segundo expediente.

A lacraia – designação íntima dele – possuía alguma coisa que não podia ser perdida: o corpo, o olhar, o cheiro e a aguda inteligência para perceber o que poderia deixá-lo de quatro a qualquer momento. Talvez algo mais sutil. De resto, ela ouvia com desdém seus comentários sobre literatura, embora nunca se esquecesse de perguntar como foi no trabalho. Ele: “o de sempre”.

A vontade era largar tudo. O emprego e a mulher. Raciocinava que se abandonasse o trabalho também perderia a lacraia. Não seria necessário tomar as duas providências ao mesmo tempo. Deixaria que o conflito se armasse sozinho, ancorado na falta de dinheiro e no fervor consumista da amante. Foi o que fez.

Ao voltar para casa, numa sexta-feira, anunciou o pedido de demissão. O chefe havia recebido a notícia com a frieza de sempre. Ela, inesperadamente calma, só quis saber a razão. “Enchi o saco de tudo”, disse. “O que vamos fazer?”, perguntou a lacraia, já menos lacraia e com jeitinho de personagem de filme francês. Ele: “vou escrever o livro”, informou, cabisbaixo. Esperava que a ex-lacraia dissesse que “dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, meu bem”. Não. Ela parecia procurar uma solução no ar, mas sem desespero, sem engolir a seco, sem esboçar qualquer desses gestos que ele costumava usar em seus diálogos manuscritos no banheiro quando se referia à lacraia do livro que um dia iria escrever. Não ficou pasma. Apenas disse: “a gente dá um jeito”.

Com aposentadoriazinha privada, o tempo passou sem maiores sustos. Só que, aos poucos, ele começou a sentir falta da mulher consumista de antes, da perua de antes, das lojas, dos sapatos, das sacolas, do rosto contente da mulher ao entrar no shopping; do jeito sensual dela ao retirar o cartão de crédito da bolsa. A mulher mudou, adaptou-se à nova vida do casal, passou a ler como nunca, tomou gosto por livrarias e até esteve com ele na Flip. E o livro não saiu.

Não saiu o dele. Saiu o dela. Um belo romance sobre os conflitos de um casal, elogiadíssimo pela crítica – e dedicado ao marido.


@_lulafalcao

quinta-feira, 14 de julho de 2011

No recesso do lar

Andava nu pela casa, olhava o lixo ao redor, recolhia-se ao que restava da cama. De novo em pé, nova perambulação pela sala, uma conta surge por baixo da porta, uma barata passeia sobre a caixa redonda de pizza podre. Ele vai até a cozinha, uma montanha de pratos para lavar, panos de chão fedorentos, jornais velhos por todo canto, telefone mudo, computador quebrado, sem cigarros, os sons da rua – os mesmos que ouvia na infância, durante gripes-sarampo-catapora. Tinha uma roupa no armário ainda em condições de uso. Saiu com ela para uma volta no quarteirão, pensando o tempo todo, falando um pouco sozinho, esboçando planos pela metade, como sair dessa? Encontrou uma solução precária: vender um rim.

Só que não dá para negociar um órgão do corpo sem o mínimo de organização, capital inicial, logística e informação sobre o mercado. A primeira tarefa seria arrumar a casa. Mas não há material de limpeza e a água foi cortada. Todos os bolsos foram revirados a procura de centavos. Nada. Poderia vender um único bem valioso – “Aves Canoras do Brasil”. Livro esmerado, capa dura, 300 páginas, 1989. Ficaria bem numa residência com o mínimo de pendor ornitológico. As avezinhas são bonitas, o sebo pode querer, por dez reais, no mínimo.

O grande objetivo era comprar sacos pretos de lixo, dos grandes, sumir com tudo aquilo. Depois: molhar um pano com água, em qualquer água por ai, e dar uma passada geral no chão. Falta uma vassoura. Como foi feita a primeira vassoura? Leu em algum lugar que poderia improvisá-la. Os índios já conheciam o instrumento antes da chegada dos portugueses. Eram feitas com Malváceas, Sida acuta, Burm, escrofulariáceas e Rubiáceas. Melhor esquecer. Improvisaria uma vassoura com tiras de jornais velhos e um cabo de guarda-chuva.

O maior investimento, no entanto, seria em Internet. Lan House. Três reais a hora. Naquele período poderia obter informações suficientes sobre nefrologia, transplantes e, finalmente, venda e compra de rins no mercado negro. Com cinco reais no bolso, resultado da venda de “Aves Canoras do Brasil”, desistiu da limpeza da casa e foi direto ao ponto, a Internet. Num site, o professor Ninos P. Malek, da San Jose State University, afirma: “Se o governo federal quer realmente amenizar a atual crise de escassez de órgãos, deveria, então, remover as barreiras à compra e venda organizada”. Só que ele queria vender no mercado nacional, as duas partes sairiam ganhando: “alguém quer um rim; eu quero dinheiro”.

Uma idéia: ante-salas de sessões de hemodiálises. Foi. Não poderia simplesmente chegar e anunciar seu produto. “Vendo rim”. Tentou puxar conversa transversa com candidatos a transplantes, mas não chegava ao nó da questão, ao negócio. Tinha medo, vergonha e era ruim de comércio.

Voltou para casa. Uma hora depois estava deitado na sala imunda. Nu. À espera.

@_lulafalcao

terça-feira, 12 de julho de 2011

O falsificador

Em seu país, ele inventou uma maneira de fazer dinheiro. Não era um negócio que gerava lucro, uma empresa ou investimentos na bolsa. Seu ofício era fabricar cédulas – um trabalho perfeito, verossímil demais, uma arte. Chamar as notas de falsas seria um insulto. O dinheiro era integralmente igual ao da Casa da Moeda. Nos aspectos mais microscópicos.

Marca d’água, marca tátil, microimpressões, numeração, fibras coloridas e luminescentes. Tudo perfeito. O desenho impresso em um lado se ajustava com precisão ao desenho que está no outro das notas postas em circulação pelos meios institucionais. Ele trabalhava, sabe-se lá como, num mundo de manipulação da matéria em escala atômica e molecular. Por uma caixa postal, chegou a enviar algumas notas para um desses institutos especializados em análises físico-químicas. Controle de qualidade. O diagnóstico, no entanto, era sempre o mesmo: dinheiro de verdade.

Mas ela produzia apenas seu salário. Grana de subsistência. Não queria ficar rico. Estabeleceu um rendimento para si e, todo o mês, emitia três mil. Se precisasse de algo extra, como uma nova geladeira, fazia um auto-empréstimo: deduzia nos lotes seguintes as prestações, fazendo menos dinheiro. Só lamentava não poder declarar seus ganhos ao Imposto de Renda. No fundo, era um legalista.


@_lulafalcao

sábado, 9 de julho de 2011

Woody Allen na Caatinga

Um professor de Harvard entediado sai do conforto de Cambridge (Massachusetts) para uma temporada na caatinga. Busca o sentido da vida no semi-árido. Encontra Graciliano Ramos escrevendo à mão, sentado numa pedra (emprestada por João Cabral), e segue sua jornada, sob o sol escaldante, em companhia do escritor. Tira o escritor. A idéia já foi usada em Paris. Corta ou chama o Cláudio Assis.

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Woody Allen, no papel de Woody Allen, desembarca no Recife porque o avião teve que fazer um pouso de emergência. Vinha de Buenos Aires, onde o cineasta procurava locações para um musical com tangos deprimidos. No voo, ele conhece Patrícia Amaral, que apesar do sobrenome nasceu no Estado de Utah de uma família de imigrantes brasileiros ilegais. Trabalhou como modelo em Salt Lake City e depois virou cuteleira (para não confundir: cuteleira faz facas, adagas, punhais etc). Priscila não é mórmon, como muita gente em sua cidade natal. É atéia. Foi ela, sentada na poltrona ao lado, que segurou na mão de Allen, quando os passageiros se viram diante da morte. Ficam amigos. Os dois resolvem não embarcar no próximo voo – ele com medo de avião; ela à procura de aventuras – e rumam para o alto sertão. Os motivos da decisão e a escolha do destino ficam a cargo do roteirista. Na viagem, o cineasta presencia fatos que irão mudar o futuro de sua cinematografia. Com algum atraso, adere ao Cinema Novo. Rascunha um argumento. Sugere Benício Del Toro para o papel de Glauber Rocha. Sinopse recusada.

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Ainda sob os efeitos de Meia Noite em Paris - mas pensando em Marshall McLuhan em Annie Hall -, Woody Allen encontra Dom Sebastião numa sertaneja madrugada estrelada. O personagem mítico aparece na história, assim sem muita explicação, apenas para destacar a cenografia armorial, supervisionada por Ariano Suassuna. Na sequência, bodes saltitantes, uma liderança do PMDB local, aquele bispo que faz greve de fome, motos-táxis e um cego que recita Walt Whitman. O desafio é transformar tudo isso numa comédia romântica. Allen volta à Nova York e consulta um psicanalista judeu do Brooklyn. Projeto arquivado por recomendação médica.

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Allen, encarnando um turista acidental, resolve filmar um roteiro que não é de sua autoria, mas de um cineasta brasileiro. Um Road-movie, uma viagem no sertão profundo. Graças às cenas sobre eletrificação rural, a Chesf entra como patrocinadora. No filme, o cineasta percorre trilhas desérticas enquanto fala sobre sua obra. É meio documentário, meio ficção. As falas são aproveitadas, em off, mas a paisagem é substituída pelas planícies costeiras do Connecticut. A Chesf retira o patrocínio.

@_lulafalcao

quinta-feira, 7 de julho de 2011

O velho sem literatura

Depois de determinada idade, a literatura passa a ter mais importância do que a vida. Derrida já disse coisa parecida, sem entrar na questão etária. Mas são os mais velhos, com certeza, que se apegam a essa perspectiva. Os mais velhos que gostam de ler, obviamente. E aqueles que não gostam ou não tiveram oportunidade de aprender a gostar? Como é o mundo deles, desprovido de histórias que compensam a falta de movimentos do corpo. O velho simples, aquele da esquina, cada dia mais ensimesmado, absorto, olhando o tempo passar quase literalmente. Sem se dar conta das coisas escritas, sem apegar-se a nenhuma história que não seja a sua própria. Às vezes, tenho mais curiosidade em saber o que se passa em sua cabeça do que teria em relação ao senhor que é rato de livraria, devorador de Proust e que sabe de cor quem estará na próxima Flip.

O velho sem livros passa suas manhãs sentando numa cadeira, certamente pensando em alguma coisa que já ocorreu há muito tempo e que agora lhe vem, subitamente, como um filme sem legendas.

A velhice, já tratada por um monte de escritores, especialmente os de idade avançada, pode ser mesmo o período da vida em que só a literatura tem condições de fornecer algum consolo diante da fragilidade física, do desejo sexual dissimulado, das dores da alma. Mas o velho da esquina não tem essa compensação. Só o olhar perdido.

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Durante algum tempo as companhias aéreas chamava as pessoas da “melhor idade” para ocupar os primeiros lugares da fila. Acho que pararam com essa besteira. Não era politicamente correto, não era eufemismo. Era um escárnio. Certamente o povinho do marketing não leu Philip Roth: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”.

@_lulafalcao

terça-feira, 5 de julho de 2011

Anotações subjetivas sobre a escrita

Com duas ou três páginas já dá para descobrir se o que você está escrevendo caminha para mais um texto pretensioso e, nesses casos, na melhor das hipóteses, desigual. Você faz então o que parece mais adequado: puxa freio, tenta a leveza, procura tirar dos personagens aquela falsa densidade. Não dá mais. Depois desses dois acontecimentos conjuminados tudo está definitivamente perdido. Melhor começar por outra coisa – ou outra coisa.

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Situação muito comum. Ali pela sexta página o autor se dá conta que está sendo excessivamente autobiográfico. Revela pensamentos íntimos que às vezes dá até medo de pensá-los. Ronda-lhe também o temor de ser percebido, de estar usando momentos de terceiros, e trava. Neste caso, nem tudo está perdido. Melhor parar, deixar a decisão para depois. Os fatos da sua vida têm uma fantasia circundante ou intrínseca que vale a pena prosseguir? Há muitos senões sobre o discurso de fatos vividos misturados com o irreal. Mas o texto, sempre ele, dirá se é negócio ir em frente.

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Um olho na crítica, outro no público. Melhor, não. Siga a história como um solitário. Nenhum desses entes está observando você nesta hora. O texto e o diabo no corpo pertencem só a você.

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Às vezes o fato de tudo parecer sob controle pode ser equivalente a não haver controle algum. Se a história segue seu percurso quase no piloto automático, toda arrumadinha para a festa final, é sintoma que vem coisa sem graça por ai. Não é uma regra, claro, mas texto sem sofrimento é quase sempre um texto sem alma. Não precisa ser literatura. Pode ser jornalismo mesmo. Um dos grandes chefes de redação da minha terra gostava de ver repórteres colocando e tirando papel da máquina, envolvidos em cenas de quase desespero. Dizia sempre: “esse ai tem futuro”.

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Na maioria dos casos, escrever não é um meio de vida. Cuidado com as contas no final do mês. O desespero pode levá-lo a textos interessantes, mas também ao SPC.

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O que está acima é muito subjetivo. Talvez desnecessário. Importante: não é conselho. São impressões

@_lulafalcao

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Páginas Amareladas: Emanuel Malindre, o escritor, troca a ficção pela Auto-ajuda

Até há pouco tempo, Emanuel Melindre era um escritor independente. Tinha um círculo de admiradores, restrito ao grupo de amigos, também escritores ao seu estilo, e os elogios dos pares parecia suficiente. Não para sobreviver com a literatura, claro, mas para sustentar o ego em condições razoáveis. Dava ainda para justificar sua eterna falta de dinheiro, suas roupas puídas e a cabeça erguida. Pelo menos até o ponto em que se via premido ao dinheiro emprestado e a outros favores de natureza prática. O trabalho tinha qualidade, foi citado algumas vezes em blogs do ramo, vez por outro participava de pequenos saraus e debates e namorava uma estudante de Letras fanática por suas sacadas sobre a perdição humana e a falta de sentido de vida. No início do ano, no entanto, Emanuel deu uma guinada em sua vida: migrou para o mundo da auto-ajuda. Seu livro mais recente, Problema não é problema, está no topo das listas dos mais vendidos há mais seis semanas e já tem traduções anunciadas em inglês, francês e búlgaro. Ele já comprou um apartamento, viajou pela primeira vez à Europa e percorre o país em concorridas noites de autógrafos. Nesta entrevista, feita no escritório de seu agente, na Alameda Itu, em São Paulo, Emanuel conta como ocorreu a transmutação, fala da perda dos antigos camaradas de letras e da conquista de um novo universo. “A vida é curta demais para vivê-la sem grana”, justifica-se. “Sei que o dinheiro não compra tudo, mas na minha condição anterior eu não comprava nada”.

P - Alguns de seus amigos se assustaram com a mudança. Afinal, aquelas aliterações, os parágrafos curtos e as mensagens certeiras - tão destacadas em sua obra anterior - pareciam indicar que um grande escritor estava a caminho.


Emanuel - Agora é tarde. Por que vocês não disseram isso antes? Não deram uma linha sobre meus três livros. E pense bem: O cara faz um produto de qualidade, mas as editoras trabalham com escala, como toda empresa capitalista, e vendem o que a maioria quer comprar. No meu caso, era mais grave. Nem editora eu tinha. Aliás, nem livraria. Eu era um marginal, que não cumpria a lei. Agora não. Se existe uma lei que cumprirei ao pé da letra é aquela da oferta e da procura.


P- O Sr. acha que auto-ajuda ajuda?


E – A quem lê, tenho minhas dúvidas. Minha preocupação era saber se ajuda a quem escreve. Neste particular, não tenho reclamações.

P- O Sr. Tenho algum dilema moral por ter, digamos, mudado de lado?

E – No principio experimentei certa inquietação, mas só durou até o adiantamento da editora para um segundo livro de auto-ajuda. Hoje, acredito que dilema moral não tem mais lugar em um mundo globalizado. Essa coisa é um atraso de vida, faz mal à saúde, atrapalha os negócios das empresas e das pessoas.

P- Os críticos têm reclamado que o Sr. trocou frases bem construídas e reflexões profundas sobre a civilização Ocidental por lugares-comuns. O que tem a dizer sobre isso?

E- Eu estava muito preocupado com a civilização ocidental, mas aos poucos descobri que a civilização ocidental não estava nem ai pra mim. Só fiz me fuder com esse negócio de ficção. Cadê a revista Piauí, cadê o Prosa @ Verso, o Sabático? Ninguém apareceu. Hoje é diferente. Minha foto está quase toda semana na Caras. Antes, o máximo que eu recebia em troca por meu trabalho era um “curti” no Facebook. Você acha que eu estaria aqui dando esta entrevista se continuasse a escrever aquelas bobagens pessimistas.

P- O Sr não acha que, agora, há uma perda da vaidade intelectual?

E – A auto-ajuda deixa o escritor mais despojado. Você se livra de subjetividades – e isso é uma libertação.


P – Que conselho o Sr.daria aos novos escritores?

E- Parem de reclamar da vida. Ninguém agüenta mais personagem que sofre da primeira a última página. O leitor que alegria, mensagens otimistas, coisas úteis para o seu dia a dia. Se isso resolve alguma coisa, não importa. O que interessa é que vende e estou precisando fazer um pé de meia. Um dos meus melhores amigos ficou chocado com isso tudo, mas no início do ano pedi R$ 100 emprestados e ele disse não. Em parte, posso dizer que naquele momento eu resolvi pular fora.

P – Há alguma coisa em sua obra anterior que pode ser usada na atual?


E- Acho que sim. Tem uma equipe cuidando disso.

P- Qual o saldo dessa mudança tão radical?


E – Ainda não consultei minha conta hoje, mas ontem era de R$ 1,5 milhão.


@_lulafalcao