segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Em movimento


Sem informes públicos, eles chegaram de manhã e levaram as coisas que restavam. As minhas e as de outros. Colchões de palha, garrafas PET, papéis velhos, três pães de ontem e um rádio; nada de valor.  Fiquei sem sabonete, que guardava para um dia especial, e uma caixa de papelão com os documentos.  Não queríamos sair e eles vão nos deixar sem nada. Já derramaram um copo d’água quando o mais velho ia beber. Não juntem porcarias, eles avisaram, e disseram que iam voltar.

Tem sido assim há muito tempo. Quase todo mundo vagando por ai porque ninguém pode ficar parado num lugar. Eles chegam, confiscam os pertences, separam o grupo, soltam as pessoas em lugares ermos, mas elas terminam se encontrando de novo e tudo recomeça. Não há raiva aparente nos homens da brigada; cumprem expediente. Não fosse a gente estariam desempregados, como a maioria da população.  Por isso, são calmos, levam as coisas, mas não se irritam quando alguém esperneia. Só fazem o que mandaram. Mandaram circular.

Dinheiro é proibido. Levam também. Drogas estão sob severa vigilância porque podem causar indolência e indolentes não se movem, não circulam. Mesmo assim nos encontramos. Queremos rever amigos, discutir a presente situação, dar um jeito de negociar com a brigada. Não sabemos mais quem está no comando. Ocorreu um grande problema sem solução à vista e do qual muitos já esqueceram. Critérios deles lá, nem sei mais de onde se extraem essas ordens.

Incomoda mais a fome e a dor nas pernas. Há dias sem parar num canto mais discreto, longe da brigada, e quando resolvi acampar naquele ajuntamento eles vieram em dois dias. Não deu tempo de descansar nem arrumar comida, que vinha nas caçambas de restos.  Há uma semana não passam por lá.


O último informe público mostra que eles querem distância da gente, embora sejamos muitos. Tudo é dito de forma muito técnica, termos de limpeza urbana, tecnocracias variadas - “uma nova adequação social”, baseada em “avaliações minuciosas”.  Entendi que em médio prazo não estaremos mais aqui e a questão enfim se resolve para os que ficarem. Enquanto isso, circulamos. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Memórias do centenário




Os cochilos dados lá fora me encheram de cansaço; durmo e acordo mal. Dores pelo corpo. Mesmo assim é bom. Desde início do século passado observo o tempo passando e luzes apagadas no começo da manhã, barulhos da cidade, o Sol sob a névoa nos primeiros passos do dia. Só isso é muito melhor do que nada. Ainda tem o almoço e os analgésicos; mais tarde o tempo vai mudar. A chuva diverte mais do que o cinema.

Não sei o que estou procurando, mas sei o que não quero. Não quero ir. Hora após hora e logo um ano, mais outro, uma década, duas, três, quatro e já são dez. Passei da idade em que naturalmente se morre para tornar-me motivo de curiosidade. Muitos se foram antes de mim, quase todos. O importante agora é puxar pela memória e dar-me alguma nostalgia. Não sou um homem deste século, mas observo-o de longe, do meu mundo sumindo; mudanças épicas e talvez inúteis. Ainda gosto de novidades e das pessoas, mesmo à distância. Quão animadas ficam; ou confusas e espantadas. Mas, enfim, sentem-se dentro do mundo, movendo-se como o mundo. Não é o meu caso. Estou dando uma olhada, quem sabe a última.

Festejo mais a faculdade de olhar do que o objeto olhado. Poucas pessoas aparecem, mais perto, mesmo assim é bom. Na minha idade ninguém consegue ver muita coisa. Às vezes nem lembrar-se. A memória de um único amigo, morto há dez anos, sumiu de repente e ficamos sem assunto. Eu ia visitá-lo nos primeiros meses, mas ele deixou de ser ele. Perdeu a capacidade de guardar o passado, mesmo um passado de dois minutos. Foi ficando estranho e despedi-me de vez, só por desencargo de consciência. O pequeno animal careca ficou para trás, babando, tristonho sem saber por que.

Até o ano passado eu saia às ruas, vagaroso, vestido à antiga. Restaram duas janelas, uma para o pátio interno, outra para a rua. Fico na cadeira, olhando pequenos acontecimentos: a vida da vizinha, sempre ocupada, andando pelo apartamento de ponta a ponta, recolhendo brinquedos de crianças, espanando moveis e quando para diante da TV é só por segundos; desliga desinteressada, e volta ao vaivém doméstico. Ou então, o mundo menor, formigas em linha até o buraco no canto da varanda, talvez meio milhão de formigas, cumprindo a mesma sina de ir, vir e morrer o tempo todo sem que a fila se desfaça.


Penso muito. Já não me preocupo com a qualidade moral dos meus pensamentos. Eis a vantagem imensa de estar vivo e só. Posso alinhar o mundo de acordo com minha vontade, passar por cima das regras, ensimesmar-me sem medidas. São vaidades sem valia no mundo real, mas importa muito nessa idade, mesmo na despedida, enquanto se pode. Mais tarde haverá um mundo sem janelas. 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Cinema secreto


No tempo do serviço secreto adorava quando me mandavam abortar a operação. Com muito gosto eu voltava ao hotel, arrumava a mala e tirava as balas da minha Walther PPK. Para alguns colegas, senão todos, eu era um fracasso. Nunca pensei desse lado. Acho que uma boa operação não precisa ser posta em prática, pode até ser guardada para outros fins, o cinema, por exemplo. Na agência, todos sabiam que eu levava uma rotina de operações abortadas, mas não sabiam dos meus lucros no mercado negro, vendendo planos secretos para Hollywood.

Muitos eram abortados porque já estavam vendidos. Eu dizia que recebi sinais sobre um vazamento em nosso escritório central e o coronel determinava o fim da operação. Uma dessas foi sucesso de bilheteria e rendeu-me um apartamento em Los Angeles. Não sou tão contraditório. Amo meu país e, se às vezes pratico a traição, é apenas para vivê-lo mais intensamente. Coisas são vendidas e preciso comprá-las.

O principal, no entanto, é que nunca considerei a possibilidade de morrer, mesmo num trabalho dessa natureza, cheio de intrigas e tiroteios. Mantive distância disso, deixei prá lá, nunca fiquei imaginando como seria se o plano fosse executado. Sempre vejo como filmes e o coronel não liga, pois se aborto a operação, outros farão o serviço, de outro modo, e o coronel aparece a seus chefes como sujeito cauteloso porque viu o risco à sua frente e só atacou na hora certa.

Carmen

Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Na maioria das vezes estão. Minha prima Carmem só traduzia para “verifique se tem alguma coisa aí porque se não tiver é um buraco”.  Tinha essa mania, já conhecida do prédio; implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral. Reclamava, por exemplo: por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Não é mais prático dar o cobertor conforme o frio?  Carmen levava tudo ao pé da letra. Mas eu sempre me convencia de que ela estava certa.


Éramos muito amigos numa época em que parecia estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada, mesmo que fosse uma prima. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de aberrações aceitas pela maioria.    Quem dá aos pobres empresta a Deus, pense nisso, ela disse, enquanto emendava certa indignação pelo Fato de o Todo poderoso aceitar negócios com um agiota. Deus chegou ao ponto de pedir dinheiro? Eu repetia: calma, é só uma maneira de dizer.