terça-feira, 8 de novembro de 2016

Memórias do centenário




Os cochilos dados lá fora me encheram de cansaço; durmo e acordo mal. Dores pelo corpo. Mesmo assim é bom. Desde início do século passado observo o tempo passando e luzes apagadas no começo da manhã, barulhos da cidade, o Sol sob a névoa nos primeiros passos do dia. Só isso é muito melhor do que nada. Ainda tem o almoço e os analgésicos; mais tarde o tempo vai mudar. A chuva diverte mais do que o cinema.

Não sei o que estou procurando, mas sei o que não quero. Não quero ir. Hora após hora e logo um ano, mais outro, uma década, duas, três, quatro e já são dez. Passei da idade em que naturalmente se morre para tornar-me motivo de curiosidade. Muitos se foram antes de mim, quase todos. O importante agora é puxar pela memória e dar-me alguma nostalgia. Não sou um homem deste século, mas observo-o de longe, do meu mundo sumindo; mudanças épicas e talvez inúteis. Ainda gosto de novidades e das pessoas, mesmo à distância. Quão animadas ficam; ou confusas e espantadas. Mas, enfim, sentem-se dentro do mundo, movendo-se como o mundo. Não é o meu caso. Estou dando uma olhada, quem sabe a última.

Festejo mais a faculdade de olhar do que o objeto olhado. Poucas pessoas aparecem, mais perto, mesmo assim é bom. Na minha idade ninguém consegue ver muita coisa. Às vezes nem lembrar-se. A memória de um único amigo, morto há dez anos, sumiu de repente e ficamos sem assunto. Eu ia visitá-lo nos primeiros meses, mas ele deixou de ser ele. Perdeu a capacidade de guardar o passado, mesmo um passado de dois minutos. Foi ficando estranho e despedi-me de vez, só por desencargo de consciência. O pequeno animal careca ficou para trás, babando, tristonho sem saber por que.

Até o ano passado eu saia às ruas, vagaroso, vestido à antiga. Restaram duas janelas, uma para o pátio interno, outra para a rua. Fico na cadeira, olhando pequenos acontecimentos: a vida da vizinha, sempre ocupada, andando pelo apartamento de ponta a ponta, recolhendo brinquedos de crianças, espanando moveis e quando para diante da TV é só por segundos; desliga desinteressada, e volta ao vaivém doméstico. Ou então, o mundo menor, formigas em linha até o buraco no canto da varanda, talvez meio milhão de formigas, cumprindo a mesma sina de ir, vir e morrer o tempo todo sem que a fila se desfaça.


Penso muito. Já não me preocupo com a qualidade moral dos meus pensamentos. Eis a vantagem imensa de estar vivo e só. Posso alinhar o mundo de acordo com minha vontade, passar por cima das regras, ensimesmar-me sem medidas. São vaidades sem valia no mundo real, mas importa muito nessa idade, mesmo na despedida, enquanto se pode. Mais tarde haverá um mundo sem janelas. 

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