quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

O Desafio




Não vale recorrer a pessoas pré-existentes nem a situações conhecidas, disse o professor da oficina de texto, logo acrescentando que os personagens deveriam ser enquadrados em cenas absurdas e bizarras, mas sem perder a verossimilhança. Nem vale também chamar o escrito de literatura fantástica, advertiu o professor, chamando sua proposta de "O desafio".

Então, todos os laptops foram desembainhados, numa disposição só encontrada em jovens escritores. Não houve, porém, o aperto de teclas. Só naquela momento o desafio se apresentou de fato, pois  eles não tinham o que escrever nesse espaço tão  estreito. Exceto um, uma, a mais jovem, cuja redação foi dedicada ao ato de escrever e escreveu à mão sobre como escraviza-se às letras, aos seus pensamentos medonhos, às dores resolvidas por remédios, ao modo de vida que não vive; apenas pensa e não avança à pratica. Faz outro movimento: transfere aquilo para outros, todos fictícios.

Seu mundo interno não é redondo nem quadrado, quase não geométrico, quase uma loucura fora do espaço, embora seja formalmente simétrico, sem experimentações, como gostam os demais naquele ambiente. Não é uma perdição num mundo sem Deus; só o relato de um personagem que envia cartas e cartões de Natal carregados de desespero e pessimismo e, numa aparente contradição, seu modelo para o Desafio é um homem que se compraz numa arte em que nada vale a pena, nem mesmo a arte. 

Segundo ela, em seu pequeno conto, a mensagem de fim de ano sempre vem pelo correio, como antigamente, e não traz felicitações e desejos de boas festas, mas a pisada  lamúria do homem velho sobre a existência, sempre de um jeito inconveniente para  o período natalino e agora ele reclama da luta contra o tempo, a que tudo se resume, e diz que a partir dos cinqüenta anos a luta transcorre em maior velocidade e quando notamos a correria das horas a vida já passou. O velho tem setenta anos e tornou-se um existencialista tardio num mundo cercado de cuidados com  coisas compradas e vendidas. Pelo menos é o que ele e ela acham.

É uma brincadeira, talvez sem graça, e às vezes preocupa o espírito de algum destinatário, pois chega o velho com a lembrança da finitude justamente quando as pessoas estão renovando votos e fazendo planos e enchendo os shoppings até as dez da noite. Ela, também personagem, já está acostumada com o infeliz missivista e sua dificuldade em lidar com a velhice. Num dos parágrafos, ele escreve que tenta arriscar-se no mundo das sutilezas naturais, para o tempo escorrer devagar, mas a brisa prazerosa lhe dá gripe e o mar vazio, agradável a princípio,  logo se transforma numa fonte de melancolia. Só ela lhe responde às cartas e sugere pílulas para regular o humor, como as que toma, ou aceitar as coisas como são, deixa isso pra lá, pois quem fica pensando nessa história termina louco ou suicida. O velho parece se animar apenas com a escrita das cartas e cartões natalinos e certa feita mandou um enorme tratado sobre seu estado d ’alma, tocando de leve na questão de tirar a vida, mas explicando que não quer dar trabalho a outros de forma tão intencional. 

Com o tempo, a correspondência do velho foi ficando banal, da mesma forma que hoje parece banal qualquer discussão a respeito do sentido da vida, porque não é com isso que estamos ocupados, especialmente no fim do ano. Estamos destinados a louvar o senhor que agora nasceu, morreu para nos salvar e depois subiu aos céus, conforme diz a Bíblia e conforme nossa boa vontade em aceitar essa relato. Na verdade, o velho não acredita em Jesus nem em Deus e acima de tudo detesta a idéia de morrer um dia. 

Pode ser que não tenha cumprido seu o intento, "O Desafio", mas o professor da oficina de texto concluiu que ela chegou perto, pelo menos em relação aos outros, que nem saíram do canto. O homem velho poderia ser ele mesmo, o professor, e não vale usar pessoas pré-existentes.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

O velho submerso



Era meio dia quando chegamos à cidadezinha calorenta. Ninguém na rua, portas fechadas para o almoço, latidos esparsos. Mais uma volta pelo centro e o mesmo cenário se apresentava, sem sons humanos; apenas a batida de asas de pássaro. Adiante, ao lado da prefeitura, havia um pequeno terreno baldio com máquinas de terraplenagem tomadas por ferrugem e mato. O trator lembrava um navio naufragado no seco; no lugar dos peixes, lagartixas.

Cidades pequenas têm esses silêncios do meio dia, mas ali o silêncio era maior. Quase todos já haviam abandonado o município, deixando para trás alguns renitentes. A delegacia fora desativada e em breve não haveria nem água nem luz à noite. Na verdade, não haveria mais nada.

Batemos numa dessas portas. Palmas e "ô de casa", como diziam por lá. Sem resposta. Na segunda, um velho chegou arrastando suas sandálias num corredor enorme e escuro, decorado com fotos colorizadas, azuladas, da família. Chegou com cara de sono e nos olhou sem surpresa. Informamos que era o último aviso: a cidade seria inundada para a construção de uma barragem. Lá na frente, a jusante da represa, o novo vilarejo estava pronto para receber os munícipes. Casas novas, posto de saúde e mercadinho. O homem baixou a cabeça, tomou fôlego e disse que ficaria com os mortos. Dissemos que os corpos do cemitério não estavam mais lá. Ele disse que alguma coisa ficou; umas partículas, pelo menos.

O velho tinha um senso estranho. Explicou que a cidade a ser submersa era sua última parada porque não iria parar onde não viveu, onde sua mãe viveu, onde não viveram seus mortos. A vida no novo povoado já seria o fim da vida e  portanto não estava disposto ao sacrifício de um  movimento inútil.

Daí uma questão técnica transformou-se numa questão mais complicada, pois o velho não via sentido em sair, não arredaria pé nem que fosse a pulso. Eu paro de respirar, que é o mesmo que morrer afogado, ameaçou o velho. Sei parar de respirar e sei morrer, reforçou o velho, mastigando um palito de fósforos com  muita calma. Eu mesmo pensei um pouco, só um pouquinho, nas razões deste último resistente, enquanto ele continuava me olhando, desta vez mais terno, e assegurou que não queria atrapalhar a obra, entendia meu ofício etc; só queria o direito de ficar.

Seguiu o velho com um monte de histórias antigas, a família nas calçadas, a construção do Instituto Histórico e Geográfico, os tempos da escola primaria, os trovões de madrugada, as moças do Curso Normal e o cometa que atravessou a cidade, meu Deus, nunca vou esquecer do rabo de luz estirado no céu, lembrou o velho, meio emocionado.
 
Velho inverossímil, seu rosto anguloso inverossímil, não parava de falar e daí passei a anotar para o relatório, sabendo que certas partes não eram do interesse da construtora, e talvez até pensassem que fosse invenção minha, caso desse destaque a tais alegações do velho, que não parava de falar, bem sereno, daqui não saio nem morto, disse o velho, quero ficar no fundo, em cima de torre da igreja, borbulhando um pouco diante do grupo escolar até me deitar no cemitério, debaixo d'água. Vou morrer de qualquer jeito, se ficar ou mudar, então quero morrer assim, afogado onde nasci, de volta para o líquido da minha mãe. 






quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Esperando Adélia ou não




Tanta ansiedade nesses dias de sua ausência, Adélia, nem você imagina. Aliás, imagina. Basta pensar em minha agonia elevada a uma potência cósmica, andando de lá e para cá dentro de casa, cada vez mais rápido, tentando encurtar o tempo que resta para sua volta. Pensei que faltava uma semana; faltam duas. Pensei que iria suportar; está difícil. Às vezes ouço sua voz, mas é a TV. Às vezes ouço seus passos na sala; é a imaginação ansiosa e transtornada.

Os remédios para dormir não fazem mais efeito e quando fazem, só um pouco, desfazem o sono quando estiro a mão para o lado esquerdo da cama e você não está comigo. Sempre fui assim, qualquer espera me consome, você sabe, mas agora estou tomado por movimentos involuntários. Enquanto penso em você, o corpo realiza operações desnecessárias e obsessivas. Outro dia me descobri na esquina sem notar que tinha saído de casa.  Tento reduzir o tamanho dos dias. Só que eles parecem mais longos.

Sua primeira viagem a negócios. Bom para você, péssimo para mim. Mas não quero atrapalhar, embora não consiga deixar de pensar em você em todos os momentos, num sentimento indeterminado entre saudade e desespero. Falar nisso estive duas vezes no hospital, emergência, pensei que ia morrer. Perdi o mundo de vista, me vi encaixotado e depois apaguei. Os médicos passaram mais remédios para reduzir a ansiedade e o pânico.

Para você preocupar-se é mais uma preocupação, tudo parece OK. Desculpe-me, então, por insistir nesses termos, mas é uma maneira de passar o tempo até a sua volta. Ando confuso e por isso confiro esse mal-estar à sua ausência e pode não ser isso. Vivo em pensamentos tolos, remoendo coisas antigos, como por exemplo o dia em que me vi sem Deus e perguntei e agora, o que será de mim?

Eu sei, nada disso perturba seu jeito de encarar o mundo, sem dramas, sem os fantasmas inexistentes que enfrento dia e noite, numa guerra constante em que já perdi a maioria das batalhas. É o que mais admiro em você - ser diferente de mim em quase todos os aspectos. 

Como estou escrevendo agora, sujeito a mudanças de opinião, deixo aqui também uma dúvida: caso você seja a causa do meu desespero por que devo esperá-la com tanta ganância? Não seria melhor esquece-la? Você é a causa ou conseqüência do meu drama? Enfim, posso estar apenas doente, sendo a paixão  um sintoma, que pode combatido com medicamentos e álcool. O problema é o que provoca tudo isso. Talvez não seja você,  e caso seja não seria aconselhável trazer para perto alguém cuja ausência detona tanto desordenamento. 


Pensando bem, Adélia, acho melhor você não voltar

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cinema do futuro



“Olha para a câmera, meu bem ”, disse a assistente à atriz, quase em tom de deboche. De vez em quando era ela quem gritava “ação”, pois o diretor nem sempre estava no set, quase nunca, para falar a verdade. Estava em outro país, supervisionando as filmagens da franquia. Até em suas férias, o mundo do cinema girava e a imensa rede do diretor mantinha o ritmo de cem filmes por ano. Todos assinados por ele.

Na verdade, quem estava em cena era uma das nossas divas, uma Fernanda Montenegro desta quadra do tempo, levando esporro de uma estagiária e segurando o choro e a saudade da TV. Tudo é possível depois que o cinema virou uma indústria de verdade, sem preocupações estéticas, cheio de ações Dow Jones. O mundo voltou a ter seis artes.

Os filmes de agora contam basicamente a mesma história, mas há lotes com algumas variações, de acordo com a cultura do lugar. A Vingança 17, por exemplo, se passa no Brasil, com personagens locais. Não há mais filmes brasileiros. O mercado mundial está dominado pelo diretor e seu concorrente, apesar das denúncias de formação de cartel.

Alguns ainda lamentam o fim do cinema de autor e recorrem aos dois cineclubes do Pais. Enquanto isso, as sessões de Vingança 17 – Brazil estão lotadas. Máquinas velozes e ferozes correndo pela Avenida Vieira Souto, embicando em Foz do Iguaçu e surgindo no Pelourinho, onde toca o Olodum . Troca de tiros e explosões no sambódromo. Eis o máximo que temos no campo da regionalização.

O diretor-produtor-empresário também canibaliza o que o velho cinema produziu, embora não leve em conta os diálogos, especialmente os de filmes europeus, e acima de tudo se repete, e repete a fórmula que traz público: coisas correndo, coisas atirando, coisas explodindo e gente morrendo. Os cinéfilos são raros. O público que está no cinema poderia estar numa montanha russa. O que se procura é emoção em estado bruto, descargas de adrenalina. Nas partes mais animadas do filme, a platéia ensaia uma ola.

O homem deu tudo para ter seus filmes no topo das bilheterias, inclusive cheiro de pólvora nas salas de cinema e cadeiras que sacolejam de acordo com a cena. Gritinhos, sustos, sensação de estar saltando no espaço  substituem com vantagens qualquer René Clair ou qualquer outro diretor do passado, todos desconhecidos nesta simulação de futuro.

domingo, 23 de novembro de 2014

Mal-entendido




Todos exultaram com o ocorrido, embora desconhecessem detalhes e embora alguns nem soubessem do que se tratava. Basicamente, sabia-se que uma coisa muito boa iria mudar a vida das pessoas para sempre e entraria em vigor em dez dias, conforme determinação de um órgão governamental, cujo nome não conseguiram ouvir direito. Notícia boa também se espalha e em sua propagação cidade afora esta ganhou enredo, razões e até textura; histórias que soavam como a vinda do Messias ou da Era da Prosperidade, dependendo se o beneficiado era religioso ou não. O certo é que uns também acreditavam saber demais e espalhavam pormenores pelos meios de comunicação e até análises, gráficos e previsões sobre possibilidades; nunca sobre um fato em si.  A maioria, no entanto, nem chegou perto dos argumentos, muito menos checou sua veracidade, e saiu para comemorar.

Os mais ou menos informados se envolveram nessa  contaminação de otimismo nunca vista em tempos de guerra e paz, mas ao contrario dos menos informados queriam saber em que medida a nova ordem, ou seja lá o que fosse, traria ganhos financeiro e talvez mais felicidade. Mesmo assim, entraram de cheio na festa. Desconhecidos se abraçavam sem entender por que estavam tão felizes, mas o importante é que estavam, e ainda soltavam fogos, soavam buzinas nas ruas, gritavam dos apartamentos. Era natural a expectativa com o noticiário da noite, capaz de esclarecer alguns  pontos, senão todos, e era natural tentar descobrir que poderoso motivo levou à tanta exclamação e delírio. Só que não foi assim, pois a notícia perdeu a força no meio jornalístico e agora havia dúvida se o fato era verdadeiro ou um boato intrincado, desses que recebem inúmeras versões até se subdividir em outros, todos igualmente confusos, apesar de atribuídos a fontes seguras.

Não adiantou o desmentido das autoridades, tão vago quanto as versões em contrário, e o assunto, deixado de lado pela imprensa, passou às redes sociais com uma força insana, como se houvesse um sentimento coletivo de acreditar a todo custo. Enquanto na TV o assunto já era outro, a notícia provavelmente falsa continuava correndo cada vez mais veloz porque a própria inquietação do outro parecia sinal suficiente para seguir-lhe na mesma toada de entusiasmo.

Passou-se um bom tempo até o boato minguar, mas não de completo, e vez por outra aparecia uma nota, um comentário, uma conversa dando conta de que, enfim, um novo mundo estava a caminho, cheio de  recompensas e bonificações, e capaz de nos tirar de uma vida de sacrifícios e dor, faltando apenas sabermos o que era e por quê.







segunda-feira, 27 de outubro de 2014

TOC literário



O vagão tem vinte e oito assentos, ou trinta, sempre esqueço quando volto a viajar, no dia seguinte, de manhã até o fim da madrugada, percorrendo estações e gastando tempo em idas e vindas contínuas no metrô. Embarco às 04h10 e só paro uma da manhã; aí durmo sonhando com um monte de passageiros. Alguns se repetem e outros somem. Nunca mais vi o homem de terno xadrez. Pode ter morrido, não anda mais de metrô, mudou-se de cidade - um lista enorme de alternativas. Minha memória é melhor para as pessoas que sumiram.

Perguntam  por que eu faço isso, diariamente, há anos, e por que conto isso agora, tentando me curar das viagens de metrô. Perguntam se sou sadio e a resposta é "não sei". Tomo remédios por causa da repetição, mas não acredito em transtorno. É muito mais uma busca. Os passageiros são meus personagens como para outros são personagens os habitantes de uma ilha ou os franceses do século XVII. A desvantagem é que os meus não me dão falas, a não ser "com licença", de vez em quando, principalmente na hora de descer do trem. Em compensação, deixam aberto  o espaço para tudo, caso do homem de terno xadrez, já usado em tentativas de construir muitos personagens. O mais presente é o empresário de um trio que fez sucesso na TV dos anos oitenta.

Muitos dos passageiros são calados e outra parte é descartada justamente porque falou. Gente que não casa com a história escolhida ou se remete demais a assuntos de trabalho, entediantes, fluxos de caixas, lotes recebidos, relatórios de desempenho. Acho, só isso, que a grande aventura humana pertence ao silencioso, ao de olhar inteiramente perdido, ao que está pensando em outra coisa além do fato de estar ali, no vagão.

O homem de terno xadrez, solteirão e inseguro, ou nem tanto, talvez tenha certa experiência de vida - e é longa sua história de expressivo nome do show business até passar o tempo dos trios de cantor e de duas dançarinas de saínha. Esse mundo movimentou muito dinheiro e de repente não movimentava mais um centavo, pelo fato de que as coisas entram e saem da moda, especialmente no mundo volátil em que estavam os trios e as moças de saias curtas; muita curtas mesmo, quase nada. Quando tudo terminou, inclusive o dinheiro, o homem de terno xadrez iniciou uma vida na multidão, sem carro, todo dia no metrô, ainda tentando bater em velhas portas para vender shows baratos de mágicos, animadores de festas infantis e conferencistas motivacionais. De vez em quando se encontrava com os ex-integrantes do trio, tão envelhecidos quanto ele, metidos em outros negócios: uma das dançarinas tornou-se dona de uma pequena loja de mercadoria chinesa; a outra agencia acompanhantes para uma restrita carteira de clientes.

Durante alguns meses tentei extrair mais alguma coisa do pensamento do homem e me fixava em seus poucos movimentos para uma descrição mais  verossímel do personagem, na qual não faltariam os tradiconais nariz adunco e o rosto macilento. Era isso, de fato, pois o homem de terno xadrez parecia doente, empenhando suas últimas forças naquelas viagens de metrô, quase sempre em pé.

Mais na frente, ele e seus jeitos inventados por mim, a tendência de minimizar os males, estou bem, tudo certo, era apenas um jeito de não preocupar os amigos, mesmo no último dia, no metrô, após uma dor, dorzinha, segundo sussurrou, e ali mesmo caiu duro, entre as cadeiras do trem. Pode ser assim e pode ser de qualquer outra maneira, como se atirar nos trilhos, numa cena manjada, mas antecedida de certo conteúdo, cujo final, a morte do homem de terno xadrez, torna-se apenas parte de uma história que escorre devagar até se dissolver sem estardalhaço.

De todos os personagens do metrô o homem de terno xadrez é o mais presente porque senti em seus poucos movimentos certo rito – ou, como queiram, mania; um padrão na contração dos olhos, forçando as pálpebras atrás de uma escuridão capaz de apagar pensamentos. Ou talvez fosse apenas um homem de poucos amigos, que prefere que assim seja, não lhes fazem falta, pois quer mesmo é solidão, distante ou perto, conforme lhe convenha.  O homem também inspirava esse modelo ao suspirar, mas logo caindo em si e logo retornando à sua viagem interior.

Ele esteve no ponto para dizer o que pensa,  ou penso que esteve,  e nessas horas eu siguia em frente, dentro da cabeça do homem de terno xadrez, inteiramente voltada para as áreas de escape, entre boas recordações da vaidade, quando ela ardia, no tempo dos  shows lotados. Havia ainda uma imaginação ainda mais fora da realidade,  nem no passado nem no futuro, o velho paraíso de cada um. O dele tinha mulheres, infância e uma sinfonia alpina. Pai, mãe e uma casa; a casa perdida num negócio mal feito. A essência do pensamento do homem de terno cinza era, ou é, o que não existe mais.

Há ainda o homem de terno xadez metódico milimétrico, capaz de saber quantos minutos foram gastos em atos cotidianos, em tanto tempo lavo a barba em tanto tempo fumo um cigarro, dessa espécie de pessoa sem abstração, apenas de atos  uns atrás de outros. Não consegue, por isso,  divagar sobre  amor, ódio e culpa. Este conta,  de si para si, o número de cadeiras do trem, o número de pessoas de óculos e às vezes o número de estações em que se desce pela direita. Um personagem descartado por se aproximar do diagnóstico dado a mim pelo médico.

Aos poucos eu mesmo me torno personagem do trem, encenado com passageiros de variados formatos, de universos diferentes,  de outras línguas,  um romance rico em diversidade, mas de condensação difícil, conforme ficou claro na última leitura. Faltava quase tudo ao ator principal, de harmonia a profundidade. De repente, o empresário do trio torna-se discursivo em demasia, numa imitação sem sucesso de O Idiota.  De repente, o homem de terno xadrez eram tantos e diversos, e ainda são, a ponto de não haver mais controle sobre seus movimentos.

Homens de terno xadrez à disposição de qualquer história,  um  exército em condições de encher todos os vagões, cada um diferente  do outro e mais numerosos do que todos os outros juntos. O honesto submete sua consciência a longos interrogatórios - quer ver se falhou em algum momento -, enquanto o homem de terno xadrez desonesto só pratica pequenos delitos,  em nome da sobrevivência. Vai a bocas livres, rouba sachês de açúcar nas padarias,  atrasa o aluguel.

Contei ao médico sobre a invasão de homens de terno xadrez, inclusive ele, o médico, era um deles,  porque,  além de não ser normal, a profusão desses tipos de aparência igual estava atrapalhando minha história, pois homens de terno xadrez já subiam pelas paredes, riam na TV, desciam pelas torneiros.. Embora conhecesse o personagem,  de tanto que falei nele, o médico resolveu aumentar a dose do remédio. Aceitei porque pretendo me concentrar em apenas em um homem de terno xadrez – apagar tudo, começar de novo e trazer o homem de terno xadrez de volta ao trem. Em pé, diante da porta, nariz adunco, rosto macilento.



terça-feira, 7 de outubro de 2014

O poço




Eu repetia vamos em frente, avante, essas coisas motivadoras, frases de cunho político, mãos cerradas para o exército de homens arrastando o peso  enorme  do fundo até a borda, numa distância já transatlântica, caso o cansaço fosse  medido  em quilômetros. Todos estavam no limite de suas resistências, mas reagiam à minha liderança, empenhando mais esforço, mais energia, numa jornada sem rumo. Enquanto eu pedia coragem, prumo, paciência, palavras de ordem com ponto de exclamação, o suor  do primeiro escorria no segundo e assim por diante, até chegar aos últimos da fila vertical, lá embaixo,  em forma de chuva de janeiro.

O pensamento desses homens moía o tempo  em lembranças tiradas a pulso, numa situação em que difícil pensar e se não pensassem não sairiam do canto, num quase paradoxo a ser resolvido com  valentia, pois ali estavam os últimos de nós, escalando o imenso buraco em que fomos nos meter. Gente de toda espécie, alguns conjecturando, em lampejos, sobre assuntos diversos para não se atar apenas à tarefa a ser cumprida, uma questão de vida ou morte, aliás.  A situação era extrema, o tempo todo, pois as paredes do poço eram gosmentas e  escorregadias,


Eu era o da frente, levando o peso da autoridade e mais não sei quantos corpos exaustos da subida, sem contar os que os que caíram pelo caminho e de tão fundo o poço muitos ainda estão caindo até hoje. Durante o percurso tentei contar histórias aos gritos, além das minhas possibilidades, para manter a tropa entretida e atenta e sem perder tempo com saudade ou pena dos que ficaram. Então eu contava a história do condenado a repetir a mesma empreitada de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, mas quando ele chegava ao topo a pedra rolava  e a tarefa teria de ser repetida, mesmo sendo um desperdício. Os homens ouviam o Mito de Sísifo e perguntavam se em nosso caso seria igual - rolaríamos abaixo como a pedra antes de ver a luz do dia no fim do poço. Eu dizia: não; nosso enredo é diferente, talvez encontrássemos a explicação, embora não soubesse nem mesmo se aquilo iria terminar um dia, como  de fato não terminou ainda.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Inícios




A velhice vai afunilando meus espaços de vida, externos e internos, porque não posso ficar muito tempo em pé nem muito tempo deitado nem muito tempo sentado. De todo jeito surge uma dor, ou incômodo,  transformando o mergulho na memória também em suplício, pois só existem pedaços de lembranças. Quando retorno ao mundo de agora, outra vez o desconforto; nenhuma posição serve nenhum pensamento serve. 




Aprendi a almoçar aos quinze anos, pois antes disso ainda rastejava atrás de farelos e restos de pizza,  quase escorrendo pelas ruas, sem pai nem mãe, sem ver a cor de dinheiro, sem nada. Ninguém notava minha presença ou notava como se nota um bicho; nunca liguei. Não conhecia o outro lado, só o meu espaço, e achava que era isso mesmo - vamos levando até onde der.  O almoço foi um grande transtorno. Perdi a noção por uns dias, meses, enquanto me adaptava ao Lar dos Órfãos sem Nome, enquanto me transformava do que era no que sou agora.

Eu era um pequeno réptil, mas com enorme capacidade de aprendizado, e mesmo na fase do rastejamento da pobreza absoluta catava umas histórias aqui e acolá, aprendi a ler, escrevi e escrevo neste momento, bem depois daquele almoço.  Porque não foi só comer em prato, com faca e garfo; foi o começo de verdade, como se antes eu não tivesse nascido. 





Ali,  só me rendeu em termos literários, pois o sofrimento foi grande. Mas quase não tive  tempo de sofrer de verdade; preferi escrever sobre os oito meses embaixo de mesmo teto de Adélia Pereira, uma prima distante, reencontrada na cidade grande, agora mulher de inabaláveis certezas, dessas radicais da preservação do meio ambiente, feminista e adepta da macrobiótica. Com tais predicados, no entanto não era uma pessoa chata. Pelo contrário. Só não me converti às suas teses porque eram trabalhosas demais; exigiam uma firmeza moral quase inexistente na época. Eu estava sem emprego e um homem sem emprego aos poucos vai se tornando um monstro de Dostoiévski.  Não roubei nem matei; escrevi sobre Adélia algo um tanto grave e descortês, para dizer o mínimo, uma vez que explorei suas intimidades, sem avisá-la, apenas pela necessidade doentia de escrever um livro.


  



terça-feira, 16 de setembro de 2014

O adivinho (Trecho)



Eu te direi quem serás, prometeu o adivinho, olhando para meus olhos, capturando por ali alguns segredos, ou talvez estivesse só enganando, como todos os presditgiadores e quiromantes desta cidade. Não sei por que frequentava casas de ciganas e por que cedia a qualquer um que se apresentasse para predizer o futuro. Podia ser um vício ou doença, pois o futuro só existirá depois de agora e lá só haverá alguma coisa quando virar presente. Pensando dessa forma, não se pode prever o futuro.

Mas o adivinho Francisco de Athayde Pereira Felix garantia o contrário. O futuro está na frente, prontinho, comigo dentro, mais velho ou morto, doente ou milionário; basta saber os caminhos certos para ver e ouvir o que se passa na semana que vem ou daqui a dez anos. É uma estrada só, tempo e espaço, e estamos sempre em dois lugares ao mesmo tempo, no mínimo: aqui e adiante. Eu te direi quem serás, ele repetiu, ou repete, depende de sua posição no tempo.

- Você não tem um bom futuro - disse Pereira Felix -, mas posso alterá-lo por alguns reais. Paguei-lhe adiantado. A primeira parte do tratamento consistia em contar como será; como estarei dentro de cinco anos. A parte seguinte, mais trabalhosa, contemplava os ajustes para evitar a desgraça do meu corpo e alma que ele enxergava bem na frente.

Pedi logo o diagnóstico, medroso e curioso ao mesmo tempo, mesmo sem acreditar na possibilidade dessa operação. Só que ele começou bem. Também adivinhava o passado recente e revelou  detalhaes de meu comportamente atual, embrião bem formado de um complicado tempo vindouro. O porvir apontava para velhice e pobreza, uma prejudicando a outra. Daí notei alguma verdade, especialmente porque ele falou sobre o quanto era precária minha base para uma vida posterior decente. Porque o futuro se faz do presente, mais ou menos como uma casa surge de seus alicerces, observou Pereira Felix, surgindo do nada, como sempre. Eu disse que era uma conclusão moralista, ele disse que não, e estamos nessa pendência até hoje

O certo é que tudo estava se desfazendo de alguma forma e o homem sabia muito a meu respeito, a ponto de citar situações e lugares onde iniciei minha perdição e onde estraguei meu futuro. Mas feito já estava. Agora, cabia ao adivinho e, mais que isso, ao modificador de futuros, dar uma solução ao caso ou pelo menos montar uma gambiarra. Ele resolveu pela gambiarra.    

...

Se hoje estou aqui, na presente data, contando como foi e o que poderia ter sido, é porque, mesmo cético, segui à risca seus conselhos. Segui porque só havia a saída do acaso, cuja existência, segundo ele,  ainda é duvidosa. Para o adivinho, os acontecimentos de cada pessoa também carregam um DNA, sendo determinadas situações plenamente previsíveis, como é previsível alguém ter alguma doença herdada dos país. Para exemplificar, há quinze anos ele antecipou minha demissão no dia 26 de agosto de 2008 e, agora, em 2013, posso atestar a verdade. Nesse caso, ele não pôde influir, dar-me o emprego de volta, porque havia uma crise global no mercado de trabalho e alterar uma estrtura desse porte não seria aconselhável, aliás, continua não sendo. Os adivinhos também têm seu código de ética.

Desse dia em diante, 26 de agosto, passei a seguir Pereira Felix como a um mestre, embora, como já disse, sem certeza absoluta de suas premonições; e nem sei se é grande coisa acreditar ou desacreditar, pois a verdade pode ser desconcertante, diferente de tudo aquilo que você dava por certo ou errado. Fui porque gostei do tratamento prescrito, cada dia mais caro, quase cinquenta mil, mas valia a pena; consegui me livrar de Adélia, uma moça sempre presente nos melhores e piores momentos da minha vida – quase todos provocados por ela. E consegui deixar de beber e passei num concurso público, estando agora numa situação bem melhor do que estaria caso não tivesse adotado as providências do adivinho. Não sei como o vidente muda o futuro de cada um, ou pelo menos como dá um jeitinho nele, mas sei que é pelos olhos que ele entra. Depois, grave e solene, anuncia para fazer isso, não fazer aquilo, pois é assim que terás uma vida mais ou menos e não a desgraça que te espera. 
  
Sobre ele próprio, disse pouco. Mantinha-se saudável e jovial aos oitenta e seis anos, todas as bactérias apaziguadas, quase um imune total. Era o que desejava e tinha. Ia buscar no futuro curas para males de hoje; só que ele não podia contar a ninguém para não destrambelhar a história do universo, podendo inclusive acontecer por causa disso um choque violento entre futuro e presente, matando não só os que estão agora, mas o que estarão depois, ou seja, tudo se mistura e morre. Então: além de cuidar da saúde, o adivinho gostava de passear pelos séculos em nome dos desejos e frustrações de seus clientes.

Ele interessou-se por Adélia e sua vida comigo. Fuja dessa mulher, aconselhou. O problema é que eu já havia fugido e nada adiantou. Adélia era mais nociva em sua ausência, levando-me a uma vida de tanto faz quanto tanto fez, extraindo apenas prazeres do álcool, enfim, Adélia foi embora e levou umas partes que me faziam falta.

Adélia não cabe neste espaço, mas pode ser comprimida ou compactada, tornando-se tão somente personagem de um projeto de conto em que ela, e não o vidente, tem o papel principal. Adélia de forma sintética: sexo e aventura. É um projeto antigo de mulher, difícil de funcionar em nosso meio, embora cabível na ficção. A beleza se enquadrava em meus padrões, o jeito mais ainda, sem contar uma inteligência rara, conversa animada para a noite inteira; disposição não faltava. Seu defeito era ser despida de preconceitos, achava tudo normal, não sei se ainda acha. Por isso saía com meus amigos e os dela e não raro os trazia para nossa casa, onde dormia com eles. Às vezes eram dois ou três e eu tinha que achar normal. Não achei e levei uma década num vaiavém com Adélia; batia a porta decidido e voltava com o rabo entre as pernas. Adélia tentou me ensinar a conviver com tais circunstâncias, não consegui e, sob as ordens de Pereira Felix, me desprendi dela para sempre.

Desliguei de fato de Adélia quando Adélia, depois de sumida, reapareceu sem o viço de antes, vagarosa, desgracioso. Não tanto pelos quilos a mais, mas sobretudo pela falta de assunto. Sumiram a eloquência, os olhos acesos e o rosto expressivo transformou-se num rosto normal, sem história, embora tivesse passado muito tempo desde a última vez em que vi Adélia. Ela contou sua vida num resumo rápido e não mais que o necessário: casou-se teve filhos, fez cirurgia plástica e fica em casa, cuidando as crianças. Uma Adélia plenamente normal não me interessaria mais, conforme informou o adivinho, com boa antecedência.

Ainda hoje fico com a imagem antiga de Adélia, dispensei a outra, mas já não sofro como antes, tenho mais o que fazer, arrumando minha vida de acordo com as instruções de Pereira Felix. Desconfio até que a Adélia que me visitou veio de outro tempo, mais na frente, trazida para desmontar meu futuro de abandono, sem ela. Pois, corrigiu-se isso também. Já não choro na janela, como teria chorando se Pereira Felix não cruzasse meu caminho. O que teria vivido, esqueci de propósito e nem sei ao certo se vivi tais momentos porque eles não estão aqui; estão lá. Não importa. O adivinho diz que é tudo a mesma coisa; o ontem, o hoje e o depois, tudo ilusão.


...

Não há vidas passadas, avisa Pereira Felix. Só uma única vida em vários cantos do tempo, como átomos pulando entre órbitas, num movimento sem lógica e sem rumo. Pereira Felix também não sabe muito além de suas projeções; ninguém sabe. Deve existir um vértice em que tudo se acaba ou se começa de novo, uma irrelevância ou um espetáculo, mas sempre um negócio inesperado, contra todas as nossas certezas e incertezas. De tão complicado, de tanto embrenhar-me nessa epopeia com Pereira Felix, só encontro alguma realidade quando penso em Adélia. Sem abalos emocionais; apenas como a peça-chave da minha da minha narrativa e da minha vida,  que afinal são a mesma coisa.

Penso inclusive em continuar essa história, sem Pereira Felix, apenas com Adélia. Assim me livraria dessas despesas, dando-me alta; deixaria de lado as estripulias do tempo, permanecendo neste ponto, calado, escrevendo, lidando apenas com lembranças. 

(Continua)