sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A volta do menino-prodígio

Desde a escola era assim, cético e cínico, sem ilusões sobre o futuro, embora preparado para enfrentá-lo com armas racionais. Era uma criança fora do padrão e mesmo sem influência doméstica pregava contra a crença dos colegas em Deus e Papai Noel. Tinha 14 anos quando rompeu com o partido por causa da invasão da Tchecoslováquia, em 1968. Os comunistas locais souberam da dissidência, por meio de um pequeno panfleto divulgado pelo garoto, mas se calaram sobre o assombro de ver alguém tão jovem transformado em teórico da esquerda anti-stalinista. A partir daí, ele tornou-se ainda mais descrente em modelos prontos de sociedade. Uma professora leu uma de suas redações e, assustada, terminou ela própria influenciada pelo pensamento do aluno.

Hoje, no entanto, ele sentia o peso da idade e das decepções. Não era mais o menino- prodígio. Era um velho rabugento diante da morte do melhor amigo.

Nessas horas, ateus perdem espaço. O arsenal de frases é drasticamente reduzido porque não podem pronunciar – muito menos escrever – pensamentos compensadores, do tipo “onde ele estiver estará bem”. Não, não está. Simplesmente o amigo deixou de existir em determinado momento e também chegaria sua hora de embarcar em direção ao nada. Restava-lhe a literatura, mas só a dos outros. Vingou como professor universitário, criou filhos, deu palestras no exterior e ficou por ai. O livro planejado durante toda uma vida não saiu. Saíram algumas páginas pretensiosas. Foram jogadas no lixo por excesso de autocrítica e porque, em boa medida, eram mesmo pretensiosas.

Outro desassossego era a província. Sempre sonhou em deixar sua cidade e enfrentar a metrópole. Mas sabe como é. Havia os amigos de infância, a fama regional e a adulação de seus pares acadêmicos. Quando chegou ao ponto não dava mais tempo. Teria que refazer amizades e inimizades e refazer-se em uma arquitetura indiferente à sua existência. Sentia-se, enfim, isolado na intimidade de seu Estado natal. Com as mesmas pessoas, as mesmas conversas e os mesmos rancores. Poderia ser confortável, até aconchegante, mas não passava disso. Ao final, o enterro no mesmíssimo solo de seu amigo, uma chamada no jornal e ponto. Surgiu então a idéia de escrever as memórias.

Estava na 65ª página do testamento literário quando soube da morte do amigo, sua principal referência naquele lugar. Ambos compartilhavam o gosto por poetas ingleses e, juntos, sentiam-se em Oxford. Discutiam política internacional, enquanto a galera do mesmo bar estava empenhada em adivinhar quem seria o candidato a prefeito. Liam W.H Auden e The Atlantic Montly. Eram “os cosmopolitas”, conforme citação de um jornalista da terra em sua coluna semanal de letras.

A morte do amigo interrompeu a autobiografia. Só mais tarde passou a revisar os escritos e novos tormentos vieram à tona. Queria inserir-se em seu tempo com comentários sobre o mundo, mas ele quase só viveu ali, entre oradores parnasianos e bajuladores de políticos. As páginas iniciais, “Adolescência”, eram basicamente um colóquio entre ele e o amigo agora morto. Desprezavam completamente a cidade e sua paisagem. Nas 65 páginas tinha mais Paris e Psicanálise do que ocorrências locais. A própria universidade ficou em segundo plano diante de uma descrição enorme sobre a viagem que fizeram a Londres, num daqueles programas de intercâmbio. O professor delirou demais e parecia que a temporada londrina dera intimidades com a cúpula do Partido Trabalhista e a intelectualidade chique da cidade. Já era conhecido pelo ego gigante – chegou a usar suspensórios e a fumar charutos - e aquelas linhas provocariam a explosão de suas vaidades. No final das contas, seria lido basicamente pelos conterrâneos e haveria um público suficiente ferino para tratar aquilo como deslumbramento de gente metida à besta.

O livro ficou ali, à espera de novo auto-parecer, e ele virou um diálogo interior com o amigo. Numa passagem, conta que passara bem num teste difícil de superar – o fato de seu companheiro ter deixado algo mais ou menos significativo e que, diante disso, ele chegara a se moer de inveja durante anos. O amigo escrevera um romance fartamente elogiado na província e citado na imprensa nacional. O livro ia e voltava no tempo, sem muito cuidado, e esse era o defeito e o charme da narrativa. Uma parte da crítica adorava o vai e vem frenético do enredo, mas teve gente que achava aquilo uma bagunça sem muito nexo. O professor superou o sentimento desagradável com uma crítica para uma revista literária da capital. Talvez tenha sido este seu melhor texto. Foi bastante convincente ao extrair lógica de personagens batendo cabeças no espaço-tempo e quando chamou a obra de “nervosinha” conseguiu fazê-lo num contexto de elogio.

Mas agora o amigo estava morto e enterrado. O que fazer numa cidade sem ninguém de seu porte e preferências¿ Nesse ponto, finalmente ele decide sair de lá, num período de licença universitária, para tardiamente irradiar suas idéias em um lugar mais amplo e arejado. Viajou para a Cosmópolis, em busca do sucesso nacional como ensaísta numa revista literária, mas chegou numa fase especialmente ruim para o jornalismo de cultura. Terminou no ambiente mais vergonhoso para suas ambições – um blog de literatura. Suas preocupações, porém, ainda estavam na província. O que os conterrâneos iriam pensar? Qual o sentido em mudar de cidade para escrever um blog? Poderia fazê-lo em qualquer lugar, ou melhor, nem precisaria sair de sua terra. Aos poucos, as postagens do blog foram minguando até sumirem.

Ele também sumiu, saiu de evidência. Desintelectualizou-se a ponto de apressar esta narrativa. A família arrumou-se como pôde e o salário da universidade garantia algum conforto. Mas o professor já havia perdido o gosto pelas livrarias, cinemas e teatros. Passou a beber mais do que a média e transformou-se num marido previsível, sentado diante da TV. Agora, o inconformismo que sempre pregara virou-se contra ele. A mulher, mais jovem, quarenta e poucos, resolveu tomar um rumo diferente até deixar a casa com os filhos, já criados.

Ele ficou só, perdido entre conhecidos recentes, tragado pelo cotidiano de algumas traduções de romances populares, daqueles vendidos em bancas de revistas e feitos com papel jornal. Durante um tempo navegou perigosamente entre os mundos dos ricos e dos pobres, pois se numa semana estava na cobertura de um conterrâneo bem de vida, na outra se via obrigado ao vale transporte. Tentou por cima, não deu, passou a tentar por baixo. Escreveu num jornal de bairro, onde até incorreu na poesia (“só porque passou, o momento não perde o seu valor”). Arrependia dos escritos, novos e antigos, e depois simplesmente parou de escrever. Vivia apenas com o salário da universidade, menos pensão alimentícia, e estava infeliz.

A vida na metrópole durou menos de uma década. Um dia, sem mais nem menos, começou a planejar a volta. Perdera o contato com os amigos da província, mas a nova morada não lhe dera nada, a não ser um ar mais velho e cansado. Vagabundeava por ai, enquanto todos trabalhavam. Bebia em padarias, deixou de comprar jornais e freqüentar os conterrâneos bem-sucedidos por inveja e falta de novidades para contar. Voltou.

A cidade natal não o recebeu de braços abertos. Tudo havia mudado, outras pessoas ditavam a vida cultural e o amigo morto agora era nome de rua. Quanto a ele, nada. Retornou à estaca zero, mas desta vez não detestou sua terra, embora não se sentisse mais em casa. Não se sentiria em casa em qualquer lugar do mundo. Mesmo assim, todos os dias procurava sinais de si próprio, tentando encaixar lembranças numa paisagem transfigurada por novas avenidas e pessoas estranhas.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

É natal

A melhor coisa do Natal é o consumismo. Tem vaga temporária no shopping, a indústria produz mais e os camelôs tiram a barriga da miséria. Não existe nada mais bíblico do que as multidões da 25 de Março e a Bíblia, como sabemos, adora multidões, especialmente atrás de Jesus, desde a Galiléia a Sidom. A vantagem da onda humana da rua paulistana e dos shoppings é a sua comprovação em tempo real. Já o livro sagrado dos cristãos foi escrito bem depois do nascimento e morte do suposto enviado de Deus. Como obra literária é interessante, mas em termos de reportagem perde para qualquer flash do Jornal Hoje.

Nesta época do ano, com a economia morna, há sempre vozes clamando pela volta das origens do natal, com sua manjedoura e bichinhos em volta. Acham que o capitalismo acabou com a celebração. Esquecem de um detalhe. Há 10 mil anos, povos agricultores trocavam presentes, no solstício do Inverno, e foram os cristãos que tentaram detonar a festa pagã. Como não conseguiram, decretaram que o costume passaria a simbolizar a chegada dos Reis Magos, com ouro, incenso e mirra para o recém-nascido menino Jesus. Ai os presentinhos começaram a ficar mais sofisticados. Depois vieram Papai Noel, a árvore de Natal, o Wal-Mart e as quinquilharias chinesas.

Os Reis Magos, então, deram início ao consumismo da era cristã. A história é estranha. Eles foram guiados por uma estrela e levaram presentes para um bebê que nasceu de uma virgem, por obra do espírito santo, e que estava destinado a morrer para salvar os homens. Ele morreu para nos salvar, mas três dias depois estava vivo de novo. Enganou todo mundo. Mas isso é outra história. Fica para a semana santa.

O importante agora é vender e comprar. Aproveitar a data para dar vazão à sanha consumista, enfrentar a horda dos shoppings e encher de cara de sidra Cereser nas ceias natalinas. Para os cristãos mais tradicionais, resta um consolo: a Bíblia traz uma história fantástica, às vezes sem pé nem cabeça, mas não dá para desprezar um case de marketing com quase dois mil anos.

Publicado no malvadezas.com

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Coisas para fazer antes de morrer daqui a três meses

Ao descobrir que tinha apenas três meses de vida correu para a Internet atrás de uma lista de coisas para fazer antes de morrer. Pensou numa relação de mil itens, mas o tempo era curto e ele nunca gostou de correria e afobação. Também faltava dinheiro para realizar o desejo número um - viajar pelo mundo. Fora de cogitação. Consumiu sua milhagem numa viagem a Curitiba e não iria entrar no cheque especial só porque o médico encontrou um negócio do tamanho de uma bola de tênis em seu cérebro. Você pode até brincar com a morte, mas com os bancos é diferente.

Então, como se faz nessas horas? O sujeito vai morrer, sabe disso com antecedência de 90 dias, mas não pode tirar o atraso por falta de logística e infraestrutura. Ficar em casa, coçando o saco, nem pensar. Queria seu tempinho na íntegra, com alguma diversão e arte, mas os eventos gratuitos deixavam muito a desejar naquele período. Por curiosidade voltou às listas. Descobriu que o problema não era apenas dinheiro: as melhores foram feitas para imortais. Ver um pôr-do-sol em Paris, fazer um Safári na África e conhecer o Ártico dão quase uma semana só de voo e aeroporto.

Alternativas mais conta: se entupir de drogas. Não. Poderia entrar numa bad trip e morrer antes do tempo no meio de um pesadelo, engolido por aqueles monstros grafitados da Vila Madalena. Religião: sem fé não funciona como consolo. Medicina alternativa: não. Livros de auto-ajuda: não, não e não. Poderia escrever um livro de memórias. Só que o bagulho em sua cabeça cresceria ainda mais, estragando um bocado de reminiscências. Haveria ainda os pequenos prazeres da natureza – o cheiro de chuva, as flores do campo e o mar batendo nas pedras. Tudo bem. Só que essa contemplação não duraria muito, talvez umas 24 horas, e ele queria preencher o tempo com mais emoção e aventura.

O fim da vida com hora marcada é um aborrecimento igual ao Natal e Ano Novo. Aquela correria para comprar presentes e organizar festas como se o mundo fosse acabar amanhã. A dele iria acabar dentro de três meses, mas não queria ficar estressado como os consumidores do shopping. É muita falta de classe.

Um ano se passou nessa dúvida. As listas não saíram de sua cabeça e ele vive enfiado no Google, percorrendo o mundo, pelos mapas e fotografias, organizando um rol de lugares para visitar antes de morrer. Concentra-se agora em restaurantes e museus. Quer ter tudo em ordem quando chegar a hora que não chegou daquela vez. O tumor sumiu (nem só os economistas erram previsões), mas ele está angustiado por ter perdido três preciosos meses de vida. De certa forma, sente-se traído.

sábado, 10 de dezembro de 2011

Ruas de sangue

O sangue começou a escorrer pela rua principal de Santana do Ipanema, no sertão de Alagoas, e a testemunha desta cena, o músico Ortinho, ficou assustado e curioso. Primeiro porque nenhum dos passantes deu a menor atenção à hemorragia cobrindo os paralelepípedos. Segundo pela própria resolução da história: crianças maltratadas carregavam cabeças de porcos sob os braços e elas eram a origem do vermelho que já atingia as sarjetas. A situação se repetia a intervalos pequenos. Mais meninos com cabeças de porcos recém-decepadas, mais sangue esguichado ladeira abaixo. Os carregadores de cabeça saíam do matadouro público com o almoço da família.

Hoje já se discute a interdição do matadouro, em nome da saúde pública, mas o procedimento macabro, quase a céu aberto, persistiu no século XXI. Santana do Ipanema sangrava ao sol do meio dia.

Não havia apenas o sangue nas artérias centrais para abismar os visitantes. Vez por outra a cidade era invadida por pragas de insetos. Nos anos de 1960 foram recolhidas toneladas de grilos nas casas e nas ruas. Duas décadas depois, chegaram os besouros - os chamados “rola-bosta”, grandes como ratos e em quantidades bíblicas. Sumiam de uma hora para outra. Os moradores não tratavam as nuvens de artrópodes com horror ou asco. Era no máximo um contratempo.

Enquanto chovia insetos, morria gente, quase nunca de causas naturais. As pessoas eram abatidas em plena luz do dia. Pequenas brigas de bar eram resolvidas à bala ou à peixeira. Maridos traídos, políticos, fazendeiros e comerciantes contratavam pistoleiros com regularidade, dando vazão a rixas de famílias e de grupos partidários. O sangue, então, voltava a escorrer - algumas vezes misturado ao dos porcos.

Até hoje fico abismado com os ares de realismo fantástico da Santana do Ipanema. Mais abismado ainda quando lembro que nasci lá.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Incompetência

Ele está diante do que não sabe fazer e mesmo assim assume a tarefa. Coisas de entrevista de emprego: mentir sobre habilidades e experiências. Mas ele disse “eu faço” e o trabalho era matar uma pessoa. Já tentou tudo no mercado formal e informal, vendeu o que tinha, tentou passar um dos rins adiante, caiu no alcoolismo, recuperou-se nem Deus sabe como, e agora pega esse job macabro, disposto a tirar a vida de um ser humano.

Para um ganhador do Prêmio Juriti, ex-escritor famoso caído no esquecimento, talvez a experiência rendesse pelo menos algum sentimento para uso literário. Remorso e culpa são comuns nesses casos. Indiferença, ainda melhor (pensou em O Estrangeiro), e uma temporada na cadeia, como última alternativa, poderia resultar num livro de memórias. O importante, no entanto, era tocar o serviço com eficiência, pois na fase atual a falta de dinheiro é mais dramática do que o branco criativo.

Naquele covil de assassinos de aluguel não havia espaço e tempo para reflexão mais refinada. Era pegar ou largar. Saiu de lá com metade da grana, uma 45 em bom estado e informações sobre o alvo. Tinha uma semana para concretizar o negócio e voltar para receber o resto. Sumiria por uns tempos, numa casa de praia, e ali talvez saísse um livro alegórico sobre o assassinato. A princípio tratou o caso à luz da sobrevivência da espécie. “Se não mato, morro”. Os caras queriam uma prova, de preferência a cabeça, mas ele os convenceu com a promessa de enviar um vídeo.

O problema era matar sem ódio, embora seu objetivo fosse um criminoso. Não era um desses boçais defensores da justiça com as próprias mãos. Era contra a pena de morte, já escreveu sobre ética, mas o mundo do trabalho fora ingrato demais com ele e bastava tratar a vítima como parte dessa conspiração invisível contra sua vida profissional. Além disso, vale considerar, vive num mundo em que textos não valem nada. “Eu poderia estar ai, escrevendo, mas não, estou matando gente com tiro na cabeça”. Achou essa piadinha engraçada, consolou-se com a inversão de valores. Durou pouco.

Logo estava de volta com um sentimento que abate todos os outros: a vaidade. Mata, escreve um livro e é preso. O risco existe. Nesse caso o sucesso de público certamente virá acrescido de senões morais capazes de inviabilizar uma alegre noite de autógrafos. As mulheres ficarão assustadas e mesmo uma obra-prima seguirá para a posteridade como o romance do assassino. Caso ninguém descubra, o drama persistirá em sua alma pacífica e não haverá prazer na hora dos elogios. Desistir do livro, matar unicamente pelo dinheiro, seria barbárie demais.

Então, voltou para devolver o adiantamento e a arma. Prometeu ficar em silêncio sobre a natureza do acordo e saiu de lá sem saber o que sentia: alívio ou frustração. Andando sem rumo pela rua deserta, ouviu, ao fundo, quase numa alucinação, a voz repreensiva da mãe: “você sempre deixa as coisas pela metade”.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Der prozess

Um desafio gigantesco para um artista de tantas bienais e instalações. Seu último trabalho, neste mundo ecumênico das artes plásticas, seria matar-se e, em seguida, ter o próprio corpo escondido por um mecanismo acionado post-mortem. Uma realização de fino gosto para retirar-se de cena com algum alarde nas editorias de cultura.

A máquina é complexa e funcional. O engenho, em si, tem seus méritos. Mas o esquema conta ainda com programas de computador capazes de disseminar pistas falsas e uma competente assessoria de imprensa. O processo do adeus – ou Der prozess, como o artista prefere - tem alta tecnologia, soluções criativas e, acima de tudo, charme. Falta apenas um patrocinador disposto a polemizar. Algumas marcas estudam o impacto de tão performático suicídio em seus pontos de venda.

Já os críticos estão abismados – bom sinal - e nenhum deles ousou um texto condenatório. Querem ver o resultado estético para depois escrever sobre o assunto. Ninguém fez comentários sobre o lado mórbido da morte porque não cairia bem a um crítico tamanho lugar comum. Do mesmo modo não esperam uma alegoria sobre o fim da arte. Óbvio demais.

Quanto ao artista, ele segue em simulações. Está bastante animado com a proeza e o fato de não poder repeti-la em Kassel, por razões inequívocas, não lhe tira o sono. Será um espetáculo único, transmitido por redes sociais, “uma coisa pra cima”, com diz um de seus mais auxiliares mais próximos. Claro que está fora de questão qualquer vínculo obra-autor. Ele não está deprimido ou insatisfeito com a vida. Pelo contrário. Quer tocar num extremo da arte, ir aonde nenhuma outra auto-instalação chegou. A graça não é simplesmente morrer – é esconder o corpo. Lúdico, não é mesmo?

terça-feira, 29 de novembro de 2011

O cheiro

Dos sentidos, o cheiro e o tato são os mais desprezados. Os restantes são contemplados até com críticos. Há críticos de música (audição), cinema (audição e visão), artes plásticas (visão), teatro (visão e audição), mas não existe – pelo menos não conheço - um famoso crítico ligado ao univers do cheiro ou do tato, no caso específico dos adores, um especialista em senti-los e transformá-los em palavras. Não se trata apenas de alguém que tenha escrito sobre o assunto, como Patrick Süskind, em O Perfume. O que faz falta no meio das artes é uma Pauline Kael ou um Humberto Eco do aroma. Ocorre o inverso. Como algo a ser escondido ou dissipado, o cheiro é jogado para longe de qualquer debate intelectual. Hoje, por exemplo, ao consultar o Google apareceu a banda Cheiro de Amor no topo de página.

Por mais que se tente enredar pelo cheiro, ele nunca terá o status da visão. Pode-se dizer que tal filme ou livro é realista ou reacionário. Jamais se dirá o mesmo de um determinado cheiro, se ele é marxista ou pós-moderno, hermético ou de apelo popular. Não há bilheteria para o cheiro. Ninguém vai a um local como o cinema para apreciar sensações olfativas. No futuro talvez a TV emane alguma fragrância, mas ainda assim será uma coadjuvante, enfeite de uma cena.

Sei que vão aparecer comentários indicando uma extensa bibliografia sobre esse comentário aparentemente insignificante. Pior: quem sabe não estou dando uma opinião de torcedor de Bonsucesso, com diria Nelson. Corro o risco. Só aceitarei como contraprova nomes do mundo do cheiro capazes de ombrear com Michelangelo e Proust. Até lá, mantenho a perplexidade ao perceber que o cheiro, em termos de arte, só estaria precariamente relacionado com a perfumaria, palavra que remete ao odorífico e também ao supérfluo.

O cheiro está sempre associado a outras coisas, quase nunca a si mesmo. Entre tantos outros, temos cheiro de terra molhada, o cheiro acre, tudo no ramo das comparações, e o cheiro indescritível, que explica muita coisa. É difícil escrever sobre cheiro porque os adjetivos não o explicam ou o efetivam completamente. A palavra precisaria de...cheiro. Ai pode estar o problema. Por pertencer ao mundo invisível e não produzir barulho, o cheiro torna-se um mote complicado para escritores e assemelhados. O quer dizer sobre o cheiro sem cair na seara bioquímica? Nesse caso, fórmulas e descrições de produtos provocadores de determinado odor não chegarão aos nossos narizes como informação integral e farejável. Falta o cheiro.

Enquanto escrevia os rasteiros comentários acima, Fabiano Camilo - via Memélia Moreira -, sugeriu um livro - Saberes e Odores, de Alain Corbin (Companhia das Letras). Em termos históricos, segundo a sinopse, parece interessante. Mostra que os diversos cheiros começaram a ser analisados e classificados a partir do século XVIII. “Os maus odores, antes tolerados, tornam-se insuportáveis. Passam a ser vistos como propagadores de doenças, arautos da morte e da putrefação”, afirma Dominique-Antoine Grisoni, do Le Matin. Também se refere a um "silêncio olfativo" que hoje nos cerca. Vou conferir.

sábado, 26 de novembro de 2011

Questão de escolha

Uma bela mulher se aproximou e ofereceu-lhe tudo – amor, sexo, casa, comida e roupa lavada -, mas ele fugiu, levado pela ansiedade, porque sabe como terminam essas coisas. “Se vai ter fim, melhor nem começar”. O aparato da loucura é complexo. Desejo e precaução assim tão juntos não são comuns e estragam o dia e a vida. Questão de escolha.

Ele se esconde, ela dá nova chance. Mais uma oferta. O homem pode trair preventivamente, sempre, pois se um dia vir a ser traído a vingança já estará feita. Ele não enxerga vantagem no trato. Traição lhe trará culpa, e se for traído sentirá ódio. A fase é de não experimentar sentimentos. Mesmo assim, não sabe por que seus nervos estão esticados diante da simples existência da mulher, especificamente desta, a inesperada. A corda se romperá algum dia e virá o desgosto, o remorso por não ter tentado, a depressão e os remédios. Parece não haver jeito.

A idéia do fim do amor é perturbadora e por isso a idéia do início também é. Chega um dia em que os lábios perderão o gosto, será mecânico e maçante, quase abjeto, o beijo sem sabor de beijo. E um dos lados sentirá falta disso, mesmo assim. Ademais, naquela idade crítica, é mais difícil correr riscos. A velhice se aproxima e passar o período de espera da morte com a dor da separação não está em seus planos. Evita, então, qualquer movimento brusco na área do amor. Faz o que para substituir uma dos melhores emoções da vida? Quase nada. Vive através dos romances dos outros, em romances escritos e não escritos. Deixa a decepção para o momento final, quando o balanço amoroso estará no vermelho. Questão de escolha.

A última oferta. Morro por você, disse ela. Não há acordo. Morrer, todos morrem, e acrescentá-lo a essa loucura é apenas retórica. Não a quer dessa forma, entregue e desprotegida, dependente dele. Descarta a responsabilidade de ter uma vida em suas mãos. Não morreria por ela, eis a recíproca, embora deseje o corpo e a alma da mulher. Para ele, o caso começa a perder sentido. Deixará tudo lá, em seu canto, como se nada tivesse acontecido. Antes de partir, extrai dela encantos que nem sentiu na pele. Questão de escolha.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O agregado



Com o tempo, adquiriu certa autoridade na família, certa audiência, ao menos; não abusava, e sabia opinar obedecendo
. Machado de Assis (Dom Casmurro)



Ele adorava aquela família rica. Era quase nada diante do império levantado pelo patriarca, mas, sabe-se lá por que, ganhou intimidade no seio aristocrático, obviamente reconhecendo seu lugar. Havia compensações de sobra para ele gostar de sua semi-adoção pelos donos do mercado de máquinas pesadas: Alpes, ternos bem cortados, festas históricas e pessoas bonitas. Além de tudo, um sentimento estranho, quase de adoração, surgira desde que passou a compartir o lar milionário. Com tal sentimento, gostaria de viver pelo resto da vida.

Quando a herdeira viajava, ele entrava em depressão. Era sua referência na família. Então, voltava a seus pares sociais, até em bares de segunda, para contar as delícias do andar de cima. Nesses momentos, se embebedava e passava a pintar o retrato dos protetores.

- Os seguranças estão proibidos de olhar para a patroa, dizia. Ele expunha tais características com orgulho, absorvendo a moral dos donos, pois achava lindo tudo aquilo, e até mesmo um crime nebuloso que fechou a família em copas, ganhou ares de filme noir em sua conversa bastante atraente, salpicada com temperos de cultura livresca. Alguns de seus interlocutores engoliam o discurso; os contrariados calavam, por medo de passarem por invejosos.

O agregado em questão é um cínico. Tem família, pai, mãe e irmãos, mas pouco aparecia para vê-los. Praticamente morava em um quarto de hóspede na mansão, que usava sem pedir consentimento. No mais, abria geladeiras, folheiava livros, fazia interurbanos e pedia um motorista de vez em quando. Estava dentro das regras. O que não podia era entrar nos negócios da família. Podia – e pôde ainda mais - conhecer os mais íntimos sentimentos da herdeira. Estavam implicitamente vetadas perguntas sobre contrato e licitações. Seria intimidade demais. Ele entendia.

A herdeira de não-sei-quantos sobrenomes (aliás, sei quantos e quais, mas convém decliná-los para proteger o narrador e seu personagem) gostava de longas temporadas em hotéis, onde alugava andares inteiros para seu entourage, que incluía médico, massagista e cabeleireiro. Às vezes ele ia junto, já esteve até na Índia, e se encarregava de compras, passeios e, eventualmente, alguma droga ilícita. Não era de pedir dinheiro. O emprego público conseguido pela herdeira garantia sua sobrevivência descansada. Não precisava dar expediente. Mesmo assim esteve nadando em dívidas há alguns anos. Ficou calado, mas a madame sentiu o drama e obteve informações. Cartões, cheques especiais e despesas outras foram quitadas na hora. Ele apenas chorou ao pé da cama da benfeitora.

O marco adulatório dessa relação talvez tenha sido o encontro com a herdeira, então com 15 anos, num curso de inglês que ambos freqüentavam. Ele com bolsa integral; ela com quatro seguranças. Ficaram amigos por compartilharem banalidades, coisinhas frívolas, fofocas sobre o Jet set e alguns exotismos e esoterismos. De saída, ele sabia com quem estava tratando e cuidou de frear a admiração, que mais tarde se tornaria aberta e quase pegajosa. Depois ficou mais sóbria. Mas não seria demais, naquele momento, bajular dentro dos limites – ela adorava elogios em público, seleto público, bem-nascidos misturados com artistas. Acima de tudo se deram bem porque juntos bebiam muito, desesperadamente. Na sequência vieram outras drogas e uma hepatite C para ele.

O tempo voou, passou o século e ele manteve-se na célula-mater alheia, dominando espaços e sem infringir o código número um: você não é da família. O que mudou, então? Num certo momento, precisaram ainda mais dele para o despejo diário de lágrimas e queixas. A herdeira, a bela de outrora, transformou-se em 120 quilos de diabetes e depressão, embora ainda estivesse à frente dos negócios. Houve outras duas mortes na família, uma delas por overdose. A caçula, chegada em cultura, festas e perigos em geral.

Dia desses, pelos jornais, mais uma densa névoa desceu sobre a família mais rica daquele pedaço do Brasil. O patriarca, já morto, tinha um passado sombrio, estamparam os jornais. Esteve ligado aos nazistas, antes e durante parte da Segunda Guerra. Dessa vez ele foi convocado para ouvir a versão da herdeira e, em seguida, instruído a sair por ai, agora na condição de assessor de imprensa, administrando a crise com bastante talento e dinheiro suficiente para colocar uma pedra no assunto.

- Não vamos nos defender. Política é uma questão de gosto – instruiu a herdeira, como se estivesse tratando de uma querela PT x PSDB. A ligação com Hitler, documentada, tinha tudo para seguir em frente, nas páginas do país inteiro, mas habilidade é tudo, como ela sempre diria. O assessor e amigo não seguiu a linha de pensamento da herdeira. Preferiu adotar a clássica desculpa do inocente útil que se deixou iludir por ideologias estranhas, especialmente o integralismo brasileiro, e daí em diante passou a citar nomes transformados em vestais da democracia depois de uma temporada entre os camisas pretas de Plínio Salgado - o mais próximo que tínhamos do nacional socialismo. Usou como exemplo Dom Helder Câmara, falecido arcebispo de Olinda e Recife, cuja passagem pelo integralismo foi naturalmente ofuscada pela posterior posição de defesa dos direitos humanos.

Nosso herói, portanto, estava maduro. Como José Dias, o agregado de Dom Casmurro, chegou ao ponto em que dava palpites sobre temas da maior gravidade e antes proibidos. Abriu-se a porta para ele falar dos negócios das empresas. Começou a expor, com todo jeito, leves discordâncias táticas. Foi um pouco mais fundo, ao abordar, pisando em ovos, o comportamento deslocado de alguns membros da família diante da realidade do mercado e do País. Pela primeira vez pensou como eles eram feudais. Mas não disse isso, nem de longe, e nada em seu íntimo o faria perder a admiração e o respeito pela herdeira e sua corporação. Nem foi além da conta nas questões corporativas, especialmente a divisão de cargos. Entre ele e a herdeira, havia uma afeição parecida com a do cão e sua dona. Sem muitos questionamentos, embora ele estivesse mudando.

O importante é que, graças ao império familiar ele ganhou uma profissão. Cursou jornalismo com esse fim - defender a família na imprensa como sempre fez informalmente em outros círculos. Só que a situação era mais complicada. O patriarca, mais uma vez ele, teria uma pequena multidão de filhos e todos, num único processo, pediam a sua parte. A herdeira pressentia: primeiro vêm os advogados, depois só restam os coveiros. Junto com o nazismo, a descendência bastarda tornou-se um prato cheio para jornais e revistas semanais. O Príapo-nazi deixara uma herança problemática.

No auge das acusações e dos processos de paternidade ele serviu de ponte entre a família, a imprensa e os advogados. Avançou um pouco mais. Indicou linhas de defesa, contratou auxiliares e convenceu a herdeira a adotar gestos da responsabilidade social, defesa do meio ambiente, essas coisas. Não deu inteiramente certo. Alguns milhões foram perdidos na partilha de bens com os novos integrantes da numerosa família, alguns que nem sabiam assinar o nome. O principal, porém, foi garantido – a herdeira não perdeu o controle das ações e agora dividia com o agregado tarefas que eram dos três irmãos, todos sem jeito para os negócios, um deles metido com cinema. Por fora, ele e a madame iniciaram empreendimentos paralelos, como sócios, na área da construção civil, mineração e turismo. Uma fortuna à parte ia se formando, enquanto a saúde dela começava a dar sinais de colapso.

A morte da herdeira foi extravagante e sem elegância. Muitos gritos, fluidos e contorções. Estava desfigurada pelos medicamentos. No velório, os irmãos já estavam nos cálculos e em cima do testamento. Não sabiam que iriam encontram um ninho jurídico e burocrático que os igualava aos meio-irmãos. O agregado, ao contrário, estava rico. Bancou os tratamentos da herdeira, em hospitais do Brasil e do exterior, mas compensou os gastos com novos investimentos, inclusive num dos hospitais de excelência em que ela se internava com freqüência.

Hoje ele só lamenta não carregar o nome da família. Sente falta da herdeira, ganhou inimigos e amigos poderosos, mas a madrinha sempre está em seus pensamentos. Foi dele o discurso à beira do túmulo. Emoção bem dosada, texto limpo, a peça fora encomendada a um bom cronista da província. No final, uma frase de Shakespeare saltou da página: "A gratidão é a maior riqueza dos humildes"

domingo, 20 de novembro de 2011

No sol

No sol a pino, carregando suas sacolas com coisas sem importância, fica pensando em confortos. Um taxi e uma pizza, nessa ordem, seriam de bom tamanho, caso não tivesse caído na miséria de forma tão inesperada. Álcool, mulher e jogo não tiveram a ver com sua atual condição. A história é outra. Planejamento errado, perda de emprego, 60 anos, ausência de crédito e sumiço de parentes somaram-se todos e eis o homem no meio da rua. Não foi bem o desemprego que transtornou sua vida modesta, mas remediada. Simplesmente sua profissão deixou de existir, e com ela praticamente deixaram de existir os sete sujeitos que operavam a máquina na fábrica. A máquina, agora, opera sozinha.

Na terra

O personagem em questão é um desses plantados à terra natal, cheio de raízes, carregado de cultura nativa e popular, lotado de razões para acreditar naquilo que é nosso desde tempos imemoriais. Ele é avesso a estrangeirismos, mesmo os de seu país, pois tudo começou aqui, os mitos e os heróis, a história com suas revoluções, os ritmos, os ritos antigos e modernos. Tudo. “Fora desses coqueirais não há salvação”, ele diz, arrastando a provinciana certeza.

No Mar


Não viaje, Iraci, aqui tem o mar. Você desce e sobe a ladeira e sua casa não some da vista. A casa é grande, século 19, fachada bordada com o brasão da família. Lá fora, os meninos sempre dispostos a dar recados e levar pesos. A festa é constante, Iraci, e eu preparo sua cama e seu banho. De manhã, eu compro pães frescos e sirigüelas com hífen. Às vezes dormimos à tarde e temos um I-Pad. Pode ser assim para sempre. Não viaje, Iraci.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Enxurradas d’alma

Para minha amiga roteirista o texto é muito mais do que uma fonte de renda. É tudo. A vida diante do precipício, inferno e céu, mar calmo e mar bravio, amores e separações, juventude e morte. Um mundo real. Só que mais bem escrito e turbulento, emocionado ao extremo, sem meio termos, oito ou oitenta. Dramaticamente intenso. Escrevendo, ela chora, sua frio, ri feito um louca e, em casos mais graves, desmaia. Despeja sentimentos em forma de enxurrada, inundando sua alma sensível e seu quarto espaçoso. Já baixou ao hospital por causa de uma frase. Uma palavra pode provocar depressão ou ansiedade. Às vezes, uma letra tirar-lhe o sono. O “W”, por exemplo, espeta suas costas.

O texto diz-lhe verdades, traz boas notícias, abre um vale de lágrimas ou um campo florido povoado de noviças rebeldes. A escrita explode a cada parágrafo, estoura os limites da emoção e se ela esbarra no mau gosto, acerta o passo na sequência, transformando um pântano de breguice numa delicada paródia. Chega a achar que não existe de fato – é apenas um personagem de si mesma.

Ela não tem a afetação pública de alguns escritores, mas é enormemente afetada quando escreve. Nem os ansiolíticos resolvem seu mergulho na história. Linhas tristes, tristeza de verdade. Quando a ouve, o analista sente-se num congresso de literatura. Só ficção. Nenhum pio sobre aflições reais. Mesmo porque o analista é mais do que analista; também é personagem dela. Está em seu próximo livro, numa trama sem saída, recheada de situações desagradáveis e um suicídio quase escatológico. Os dois terminam conversando sobre o desenrolar desse romance trágico. Ele não se conforma com a idéia de morrer no final – muito menos daquele jeito.

Outra fonte de desespero são as influências. Quanto se afunda na alma do personagem lembra que alguém já fez parecido, talvez Clarice ou Conrad. Noutras horas, sente-se escrevendo à Somerset Maugham e grita: “não!”. Se andou lendo Machado logo aparecem ironiazinhas bem clássicas e ela desce as escadas do prédio, correndo, para uma volta no bairro, sem destino.

Minha amiga quer uma literatura selvagem, sem interferências externas, ligada ao sistema nervoso central, com a exasperação no talo. Nem sempre consegue. Nessas horas, a família entra em cena e a recolhe para uma semana na Clínica.

Publicado no malvadezas em 09/11

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

De carona na Fliporto

A marquesa de Varadouro Y Milagres, Daniella Miranda, convida para o lançamento do livro “Todo dia me atiro do Térreo”, de Lula Falcão, em seu solar da Rua Joaquim Nabuco, nº 5. O evento será nesta sexta-feira (11), às 21h, após a abertura da Fliporto. A histórica casa da marquesa de Monte Alegre está sendo restaurada e em breve será transformada em centro cultural.

“Todo dia me atiro do Térreo” (editora Bookess) - já lançado em São Paulo, Rio, Recife e Fortaleza – conta a história da fictícia Maria Lúcia, viciada em twitter, sexo virtual, vodka e literatura. Agora, o livrinho pega uma carona na Fliporto.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Retrospectiva 2011

A ideia inicial era lambuzar o espaço aqui com um pouco de política. Olhei em volta, senti o drama, desisti. A seguir, pensei em algo confessional, mas faltaram coragem, novidade e conteúdo. Só haveria ruminações queixosas sobre 2011, este ingrato. Mesmo assim, para não virar a crônica do cara sem assunto, vamos então a uma retrospectiva do ano, à moda da casa, tirando da parada Steve Jobs, Osama e Kadafi. Não haverá critério jornalístico. Aliás, não haverá critério de qualquer espécie, mesmo porque as ocorrências abaixo ainda carecem de confirmação. Ainda mais imprecisa, mas com boas fontes, é a história do jovem escritor em Nova York. Segue resumida, com algumas omissões, embora ocupe dois meses deste balanço de coisas nebulosas e sem importância.
Continua no malvadezas

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Deus

Deus é assim, não tem religião nem se considera eterno. Está tão atormentado quanto seus adoradores. Vez por outra entra em crise. Como é desprovido de vaidade, fica enjoado com orações e outras mesuras. Quando clamam por sua ajuda, Ele só lamenta: “Tudo eu, tudo eu”.

Deus contesta livros e sermões. “É ficção pura”, diz. “Não fiz o mundo em sete dias, não tenho filhos nem autorizei ninguém a falar em meu nome”.

Também não se acha responsável por mortes e tragédias. “Essas coisas podem acontecer com qualquer um, inclusive comigo”. Ele não interfere, não dá palpite, deixa rolar.

Todos os anos, Deus premia um ateu de sua preferência com férias remuneradas no Paraíso. O sujeito volta à Terra, esquecido tudo, e continua a levar sua vida de descrente. Deus adora as pessoas que não acreditam nele. Dão menos trabalho.

domingo, 16 de outubro de 2011

O jovem escritor e o seu duplo

Um dos riscos da criação de personagens é a criatura já existir, de fato ou de ficção. Nossa sã e malsã consciência às vezes constrói personalidades baseadas – baseadas até demais – em figuras de outros livros, pessoas conhecidas ou parentes. Ele, por exemplo, criou um doidinho enovelado por inimigos reais e imaginários, e só depois de colocar o sujeito na tela, já com uns 11 mil caracteres escritos, descobriu que se tratava do senhor Goliadkin, o conselheiro titular atormentado de “O Duplo”, de Dostoievski. Já a tentação de escrever sobre pais e mães também passa pela cabeça de quem se mete em literatura, seja num Best-seller mundial ou num blogspot.com. Muitos aceitam o chamado e jogam a família na roda, descontando nas palavras rancores de todos os tipos. Outros entram na embromação de inserir os defeitos dos progenitores – um nome muito feio, por sinal – em pessoinhas com nomes fictícios.

Os dois problemas são o suficiente por hoje, vamos nessa. O escritor russo pensou no senhor Goliadkin quando tinha apenas 24 anos. Só que isso foi em 1846. Ele, o jovem escritor, imaginou-o há um mês. Pense na decepção. Não era plágio, pois o escriba atual, em estado de prostrada depressão, nunca havia lido O Duplo. Sacou quase a mesma coisa, mas com 165 anos de atraso. A primeira sensação que teve: todos os personagens já foram criados, não adianta mais, tchau. Com o tempo – duas horas, se muito – estava catando uma justificativa para a coincidência e chegou ao veredicto: mesmo lá atrás, aconteciam essas coisas. Freud, por exemplo, sempre gostava de citar Arthur Schnitzler, como seu escritor de cabeceira, mas havia mesmo tirado do senhor Goliadkin inspiração para escrever “Das Unheimliche” (1919). É ele, o jovem escritor, que lança tais suspeitas sobre o duplo e o pai da psicanálise - não eu.

Nosso personagem - o jovem escritor, não Freud – também ponderou que todas as histórias derivam das peças de Shakespeare, mas isso também não é um pensamento original, como não é original afirmar que o referido autor - Shakespeare, não o jovem escritor – bebeu na mitologia e de lá extraiu quase tudo. Então, nessa toada vamos indo, uns pegando as coisas dos outros e passando adiante. Só que tem um porém: para se contar a mesma história, existe a obrigação de contá-la bem, raciocina o jovem escritor.

Daí o jovem escritor começou a simpatizar com o seu Goliadkin, também provido de um duplo, e retomou a história. Está concorrendo com Dostoievski, mas tudo bem, vamos construir um similar nacional de alto nível, embrulhado num preâmbulo de bom tamanho para explicar que o livro é uma imensa citação do autor russo, e tal procedimento se enquadraria num esquema de transtradicionalização, se é que isso existe.

Toda essa pensata, como dizem nas revistas semanais, é para especular que nem sempre pode ser pecado escrever a mesma história. Se for bom de ler, vamos em frente. No caso de a versão não ser lá essas coisas, ainda resta explicações conceituais que, em alguns casos, resolvem o problema. Basta que a citação seja boa, tão boa que a faça bem melhor do que livro e ai o livro fica sendo a sua justificativa e não a história em si. Talvez isso seja uma tendência de certa literatura, pensa o jovem escritor, que também é um personagem manjadérrimo – um truque de segunda para ancorar as linhas acima.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Sempre será assim

Esse homem ainda existe por ai, perdido num subúrbio remoto, alheio ao tempo que passa, com seus costumes mantidos, igual a antigamente. Cria passarinhos em gaiolas, tem uma corrente de ouro e joga no bicho. Três filhos. Um deles com curso técnico, outro no Exército e o mais novo entregue à cachaça. O emprego cabe a seu tipo, é despachante. Depois do almoço, sempre feito em casa pela mulher-silêncio – sua esposa há 30 anos -, senta na calçada. O palito de dentes volteando na boca e os olhos no movimento da rua. Tira uma soneca antes de voltar ao escritório, que fica no mesmo bairro.

A vida segue assim, como fora a de seus pais, e ali na sala estão o quadro da Santa Ceia, uma flâmula do time e fotos emolduradas da família. À noite, depois da janta, liga-se em programas populares da TV ou joga dominó com os amigos. Fuma Derby, usa bigodes e não sai sem o cortador unhas, anexado ao chaveiro.

No escritório, além de Vitorinha, a secretária, conta com um office-boy, ou melhor, um contínuo, o rapaz que faz as coisas, leva e trás, entra na fila do banco e faz a limpeza. Vitorinha é datilógrafa, nunca usou computador, nem o homem vê necessidade disso, pois tudo que interessa está no livro-caixa manuscrito, despesa e receita, e nos formulários em quatro vias, tiradas com papel carbono. O resto é reconhecimento de firma, fotocópias e autenticação de documentos. O trabalho de despachante não exige muita informática, exceto quando é preciso ir ao DETRAN e a outras repartições do Estado e do município. Mas ai é com eles.

Depois de muita luta, o filho que bebe ainda tentou algo na vida, curso de correspondência comercial, para ajudar o pai no serviço. Mas deixou pela metade. Por desinteresse, preguiça e más companhias. O homem só resmunga, dá o caso como perdido e entrega a Deus. Os outros, não, são motivo de orgulho. O que está no Exercito e serve fora da cidade mande-lhe cartas ou telefona. Em casa, o aparelho é daqueles cor de abacate, com disco e bordinha branca no bocal. Mas o homem tem um celular, dos mais simples e pré-pago, que usa no cinturão, como um revólver. Ligar e receber ligações são o suficiente. Não tem e-mail.

Quando está emburrado ou triste, recolhe-se para ouvir seus discos, a coleção quase completa de Nelson Gonçalves, pela RCA Victor, ou Jorge Veiga – “Amor não tem idade” e outros sucessos, que provocam imensa saudade do rádio, onde o próprio cantor sempre repetia: “Alô, alô, aviadores que cruzam os céus do Brasil. Aqui fala Jorge Veiga pela Rádio Nacional. Queiram dar os seus prefixos para a guia de nossas aeronaves”.

O homem não sabe que tem uma estratégia contra o passar do tempo: não deixar que ele passe; mantém-se lá atrás, apegado à moda da juventude, quando vivia de verdade. Agora recordar é viver, nostalgia não tem idade, serestas, seleção de 58 e Emulsão Scott - hoje tão raro nas farmácias. Não há muito que fazer. Apenas deixa os discos tocarem na vitrola Telefunken, modelo Dominante, comprada em 65. Às vezes prefere o silêncio. Então, fica olhando o estranho mundo lá fora, sentado na calçada, palitando os dentes.

domingo, 9 de outubro de 2011

O show

Nesta idade ainda faço coisas bacanas. Uma delas é imitar a mim mesmo quando jovem. Na verdade, é um retrato meio irônico da minha geração, seus trejeitos e modismos. Quem viveu o período, acha graça. Quem ainda estava para nascer, não entende, mas fica curioso. Mostro como os homens se comportavam naquela época diante das mulheres e da vida. Lembro frases interessantes, certos reclames de rádio e pessoas pitorescas. Na platéia, senhoras quase minhas contemporâneas se esbaldam, mas suas netas e bisnetas apenas fazem perguntas. Ficamos, eu e as jovens, naquele impasse: elas não sabem como foi nosso tempo; eu não sei quase nada sobre hoje. Enquanto dou o espetáculo, elas mexem em seus telefones portáteis – inimaginavelmente pequenos – e mais se admiram pelos meus 100 anos tão viçosos do que pelo script em si.

Na forma e conteúdo é um show sobre comportamento. Creio que deveria tê-lo feito durante a juventude, ganharia em graça e atualidade, mas não faz mal. As meninas prestam alguma atenção, pelo lado épico, e eu uso aqueles momentos para olhar as mocinhas bem de perto. Suas ancestrais, ainda vivas e ali postadas, não me emocionam do ponto de vista sexual. Quando me refiro a sexo, não se enganem, estou tratando de algo subjetivo e distante, apenas o assombro de ver peles tão sedosas, em shorts justos, exibindo uma exuberância carnal lamentavelmente inexistente na segunda quadra do século passado. Por que não era assim antigamente? Por que aqueles vestidos que cobriam até os pensamentos? Sempre sonhei com mulheres quase desnudas, com as que existem agora, mas é tarde demais para anseios de ordem prática, embora algumas vezes tenha me imaginado o correr dos meus dedos nessas coxas grossas e rijas dos dias atuais. Essa Clarinha, então, poderia estar no meu colo. Ela não faria isso. Talvez por medo de triturar minha bacia.

Para não ser apenas uma aberração anacrônica, um velho centenário contando piadas de salão e ensaiando passos de maxixe, teria que remoçar ou pelo menos aprender como o funciona o universo dessas moças. Pode ser tarde, mas ando tentando. Como uma pessoa da minha idade pode sair à noite, falar em telefones que se levam para a rua, transmitir mensagens escritas e até imagens pelo mesmo aparelho? Como devo me vestir? A bengala e os suspensórios são tão presentes na minha indumentária. Lamento não ter nascido bem depois dos anos 10.

O importante é que sigo com o show e a audiência está cada vez maior. No jardim da velha casa temos chás ingleses e medicinais. As meninas trouxeram outras ervas. Elas fumam aquilo, não ligo, mas o cheiro não é muito agradável. Às vezes perco o fio da meada, fico olhando para a de saínha curta, mas logo me recomponho, pois a memória permanece viva, pelo menos para fatos com mais de 50 anos. Dia desses desandei a falar sobre 1936, ano bom, cheio de histórias e progresso material. Pulei para 54, a morte de Getúlio, e uma das moças perguntou quem era Getúlio, eu disse Getúlio Vargas e ela se lembrou por causa dos livros de história.

No começo da noite, todas vão embora – as velhotas e as gerações seguintes. Fico sozinho, meio triste, mas preparando o novo espetáculo. Não quero ficar repetitivo. Se estiver vivo no ano que vem vou montar o que pessoal chama de Stand up comedy.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Ciúmes transcendentais


ão comece uma história sem
saber como ela vai terminar
Sir Walter Rawley
Começou a namorar a logo descobriu um desafio a ser enfrentado: a moça é esotérica, daquelas bem plurais, sincrética até o último chacra, dona de um altarzinho com Buda, Shiva, Jesus, gnomos, iemanjá e a foto do Doutor Matias (1890-1954), um espírito de luz. O pacote inclui ainda Tarô, I-Ching, Búzios e algo chamado “Teoria das emas totalizantes”, mistura de cabala, ensinamentos de Lao-Tse e Física Quântica. Pelo menos foi o que ele entendeu, assim, meio por cima.
Por que um cético foi parar nessa? Ele explica: “a gata é inteligente, linda, cheirosinha e engraçada. O misticismo foi encoberto por esses predicados, mas agora tenho que encarar o incenso”. Dito isto, pelo próprio personagem, vamos adiante, sublinhando alguns conflitos da relação entre o incréu de botequim e a deusa candidata ao Nirvana.
Nesses casos, o cara não pode simplesmente detonar todas as teses da namorada. Primeiro porque são muitas, interligadas, cheias de nuances e citações de mestres desconhecidos. Seria também deselegante. Nada de posar de dono da verdade, mesmo convencido da impossibilidade daquele arranjo metafísico. Um sujeito qualquer teria aderido de vez às convicções astrais da garota em troca de uns amassos. Merecia. Ele, não. O herege romântico queria ser verdadeiro.
O jeito era escutar, fazer alguns paralelos antropológicos e literários (“oba, tem o Borges”) e dedicar-se com mais afinco à leitura de temas nunca dantes navegados. Pelo Google descobriu um mundo habitado por serpentes energéticas, editores com terceiro olho, criaturinhas luminescentes, deuses ETs e outros mistérios do universo além da vida e da morte. Só nas cartas, havia matéria para o resto da existência, com nomes e procedências variadas, desde egípcias, ciganas e marselhesas às das bruxas, de Crowley, de Wicca, de Dali, entre as de outros e outras. Aquele gibi fantástico era a religião da amada.
Como a vida não é apenas sexo, seria preciso penetrar (no sentido exegético, é claro), nos abismos filosóficos da moça. Com algum conhecimento, ele tentou obter mais detalhes com a própria, especialmente dados mitológicos, com os quais poderia manobrar com facilidade. Leu “O Poder do Mito”, de Joseph Campbell. Deu assim para ir levando, enquanto beijos, abraços e carinhos sem ter fim continuaram sendo a melhor coisa da vida, acima de todos os deuses, astros e estrelas.
Tudo caminhava bem no amor e no mundo das fadinhas. Até o dia em que ela anunciou a chegada de seu guru. A primeira imagem que lhe veio á cabeça não preocupava: um senhor idoso, barbudo e de cabelos brancos, magro como um faquir, casto e paterno. Mas no caso não era o caso. Apareceu o guru. Um garoto cheio de vida, quase um surfista, mas certamente dotado de rara sabedoria para envolver suas seguidoras em inebriantes transes e transas. O pior estava por vir – e veio: sexo tântrico, ritual necessário à compreensão do corpo e da alma. Ela tentou explicar, “é só a teoria, não se preocupe”, mas não deu certo.
O ateu, até então compreensivo, foi tomado pelos mais baixos instintos e toda aquela intersecção entre filosofia e misticismo foi por água abaixo. Ele bateu pé, não quis que o guru californiano ficasse hospedado na casa da namorada e muito menos viesse com essa conversa de sexo tântrico, teórico ou prático. Nem pensar. Ela chorou, mas a decisão estava tomada: guru e sexo tântrico.
Poucas horas depois, já entorpecido por substâncias terrenas – sete cervejas e meia garrafa de uísque –, começou a relembrar o sorriso da ex-namorada, a Sininho da Vila Madalena. Depois passou a maldizer o guru e o chifre transcendental talvez já acontecendo, numa trepada de hiper-orgasmos e algo mais acima da compreensão humana. Também soltou impropérios contra o politeísmo ingrato e traidor. Enquanto isso bebia álcool e lágrimas para aplacar sua alma de descrente e a dor do abandono.
O bolero seguiu em frente, noite adentro, e ele só acordou muitas horas mais tarde nos braços ternos de Sininho, refeita de sua experiência tântrica com o guru e inteiramente a postos para aplicar seus novos conhecimentos com o homem de sua vida. O cenário não era o bar, mas um lugar estranho e agradável. O paraíso na Terra ou fora dela. Todas as visões do Éden estavam ali reunidas, com seres outrora imaginários em festa pela união do casal. Não havia tempo e todos podiam voar sobre as enormes cachoeiras, florestas infinitas e cidades limpas e fenomenais. Ao lado de dois dragões bonzinhos, quatro duendes, um par de Teletubbies e divindades de toda natureza, ele pode perceber a presença do guru californiano. Para seu alívio não tinha sexo, apenas a palavra “Aeon”, em grego, tatuada na virilha, e estava cercado de borboletas gigantes e tagarelas. Naquela dimensão desconhecida, ele e Sininho iniciaram um jogo de carícias em que cada orgasmo equivalia a um Bing bang.
Pena. Era delírio alcoólico. Pena. Este final medíocre.

sábado, 1 de outubro de 2011

Ateísmo: tipos

Sempre dizem que eles terminam cedendo na hora do juízo, nas últimas, mas a explicação é simples: no aperto, se apela até ao que não se acredita. Além disso, o ateu autêntico é apegado à dúvida, considera a possibilidade de estar errado. Assim, por que não manifestar essa incerteza na hora da morte? Ao contrário, muitos religiosos jamais põem em dúvida sua crença e, tranquilamente, vão com ela até o fim. É mais confortável. A fé não é para todos – eles pregam. O ateu contra-ataca: a fé é justamente a fuga da dúvida.

O debate é eterno, mas neste caso diz respeito aos tipos de ateus, a partir de um personagem cuja história é contada, e bem contada, pelo excelente dentista Halley Maroja. Existia na terra de Halley, Caruaru (se não exista, não vem ao caso), um farmacêutico que, todos os dias, colocava seu tamborete na porta farmácia, olhava pro céu e desafiava: “se Deus existe, que me jogue um raio agora em cima de mim”. Esperava alguns minutos e depois recolhia o baquinho. Saía fazendo muxoxos de desdém. Trata-se de um tipo de ateu muito específico, o que tem fé. Acredita piamente na não existência de Deus.

Há ainda o ateu por conveniência. No fundo acredita que existe alguma coisa mais além, uma energia, mas como a namorada é incrédula até a alma, ele adere, declara-se seu amor e sua descrença. Afinal, a tal energia não deve estar ai para punir ninguém. O fato de acreditar ou não acreditar nela não vai interferir em sua existência ou não existência. É só uma energia e pronto. Este é o ateu sem culpa.

O ateu em conflito é outra espécie. Também desprovido de fé, não acha plausível a existência de Deus, mas a constatação o deprime. O fato de a vida ser apenas isso aqui, e lamentavelmente pode ser mesmo, joga o homem numa parada existencialista que o leva à leitura de filósofos da Igreja, como Santo Agostinho e São Thomaz de Aquino. Com eles, não encontra conforto para suas angústias, mas gosta do estilo e pelo menos se arrumou com os intelectuais católicos e eles devem ter alguma influência com o Criador, na possibilidade remota de ele existir.

Por último, hoje, há o ateu militante. É metido em organizações ateístas de várias procedências e um brigão pelo estado laico. Alguns, não são apenas incréus. São contra Deus e até existência da idéia de Deus. Não leva em conta a possibilidade de estar errado e se o Supremo aparecer na sua frente, cercado de anjos, ele está pronto para convencer o próprio de sua inexistência.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O bom corrupto

Eu vou mostrar pra vocês como se dança o baião, vou abrir as portas do paraíso, fazer e acontecer enquanto estiver aqui, neste cargo, mandando e desmandando, comendo todo mundo e comprando com cartão de crédito corporativo. Só não gosto de ser injusto. Vamos dividir a merreca com os mais chegados, os moralistas, os sonsos e a imprensa falada, escrita e televisada. Quero marcar minha passagem como o bondoso, o Messias burocrático, o homem que multiplicou propinas no Vale do Amanhecer. Sou eu, o corrupto do bem, a mola do desenvolvimento, o criador de um novo conceito de desvio de verbas públicas para finalidades filantrópicas e culturais.

Não adianta ser feliz sozinho. Existem amigos em sérias dificuldades financeiras. Para eles, vai uma parte da comissão e do dízimo. Distribuição de renda funciona assim, em intervenção direta, e não com o blá-blá-blá de políticas oficiais, feitas para não resolver questões cruciais, como o pagamento de dívidas e os desvarios da patroa. O negócio é dinheiro vivo na mão do sujeito, sem formalidades. Não dá para todos, eu sei, mas ver aquelas carinhas alegres recebendo sua fatia já dá meu dia por ganho.

A ética, amigos, pode ser o alimento daqueles que estão na universidade, com salário mensal garantido, mas não cuida dos sem profissão definida nem dos esforçados do curso supletivo. Cheguei aqui quase sem nada, apenas com esforço e um enorme talento para a bajulação. Galguei degraus, peguei o meu, comprei um apartamento e uma casa na praia. Só que nunca me esqueci dos amigos, dos companheiros de miséria, hoje todos remediados graças a este espetacular projeto inventado por minha equipe e inspirado na mais pura caridade cristã.

Corrupção, portanto, não é o mal deste País. É sua salvação. Sem ela nada, as coisas não funcionam, os papéis se acumulam, produzindo mais lixo e a conseqüente devastação da natureza. Sem ela ninguém trabalha com alegria, pois só vislumbrará o mísero salário no final do mês. Sem ela não há esforço concentrado para a aprovação de matérias, movimentações nos lobbies de hotéis, incremento do comércio de maletas, patrocínios decentes, baladas, bons restaurantes, mulheres bem vestidas, viagens internacionais, prazer sexual e banhos de jacuzzi.

Nãos e enganem. Todo dinheiro, sujo ou lavado, termina voltando para o PIB, ainda mais encorpado, produzindo riqueza e melhoria do IDH. Acima de tudo satisfação das pessoas queridas.

O futuro está em suas mãos. Use-as.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Ansiedade do começo ao fim

O que estraga uma história, quando já se sabe como ela termina, é a vontade de chegar logo no fim. O cara quer aquele arremate já pensado antes de sentar para escrever o livro. A pressa leva a uma convergência prematura de acontecimentos, uns atropelando os outros, e muitas vezes o romance termina virando conto.

O contrário traz outro tipo de problema. O sujeito parte de uma frase, mas esta frase precisa sair do canto e não ficar o tempo todo se gabando de si mesma. A sequência da história é um processo penoso porque o escritor começa achar que nada vale a pena depois daquela frase. Então, o conto pode virar um poema ou uma tirada espirituosa.

Notei a primeira angústia ao ler “Um Sussurro nas trevas”, de H.P Lovecraft (1890-1937), editado pela Hedra. Doido para escrever o desfecho, o escritor de histórias fantásticas e influenciador de Stephen King coloca seu personagem nas costas – o cético folclorista amador Albert Wilmarth – e corre com ele em busca dos segredos escondidos nas colinas de Vermont (EUA), onde se escondem seres extraterrestres, segundo revelações feitas em cartas pelo acadêmico recluso Henry Akeley. Dá para sentir, a cada parágrafo, que Lovecraft já enxerga a linha de chegada.

A surpresa do livro, no entanto, nem é o fecho do autor, mas um apêndice escrito Fritz Leiber, que gosta de Lovecraft, mas neste caso esboça uma série de restrições sobre a obra – até mesmo a respeito da verossimilhança dos personagens. O defeito essencial da narrativa, segundo Leiber, é a sua própria estrutura, pois Lovecraft “planejou um grande susto apoteótico para Wilmarth (e para o leitor) e escreveu de maneira obstinada rumo a esse objetivo, propositalmente evitando qualquer tipo de desvio”. O comentarista, também escritor de romances fantásticos - morto em 1992 - observa ainda que a marcha batida rumo à apoteose parece ser o motivo para a escassez de momentos dramáticos no miolo da história.

O caso número dois, aquele que prende o escritor ao início, tem muitos exemplos. Muitas frases geniais seriam um excelente ponto de partida para um romance. Mas os autores se contentaram com a frase ou mesmo não perceberam que, a partir dali, teriam uma bela história pela frente. Para ser mais breve – e também apressado em chegar ao final – pego o exemplo do crítico e dramaturgo George Jean Nathan (1882 — 1958). Como seria interessante que um livro começasse assim: "Bebo para tornar as outras pessoas interessantes." O mesmo poderia ocorrer a frasistas de primeira, como Dorothy Parker, Groucho Marx, Millor Fernandes, entre tantos. Modestamente, pensei numa boa frase outro dia. Dali comecei a escrever uma história. Mas não rendeu sequer um conto. Virou post do twitter.

domingo, 25 de setembro de 2011

Tempos modernos

Acorda cedo num dia, acorda tarde no outro. Remédio para dormir, remédio para encarar a rotina, remédio para agüentar a existência e outros tantos compridos amarelos, verdes e cor de abacate para não sair por ai, muito eufórico, distribuindo sorrisos gratuitos e comentários impertinentes. A farmacologia ataca por um lado, mas sempre deixa emoções a descoberto, alguns pensamentos sombrios e alegrias descabidas no momento errado. Tantas drogas tornam sua vida num ping-pong entre o entusiasmo descabido e o tédio profundo. Sem contar os efeitos colaterais, combatidos com mais medicamentos, que às vezes aumentam a indiferença pela manhã e provocam agitações noturnas sem motivo aparente.

As emoções humanas mais regulares não se apresentam em situações próprias. Chegam como surto e inquietação. Apaixona-se apenas por ícones inatingíveis para não correr riscos, pois uma das cápsulas, esta quase dourada, impede sentimentos mais profundos em relação a seres próximos. Existe, no entanto, outra medicação, capaz de esconder o vazio da alma e a falta de dimensões no relacionamento com as pessoas. A pílula evita que as coisas se passem apenas no presente, sem perspectiva geométrica, num plano longo e exaustivo. Por sorte, a dor no peito, antes constante, foi apagada da memória por um antidepressivo de quarta geração, cuja literatura médica só adverte para alguns lapsos, pânicos e impulsos suicidas. Em tais situações, ele ingere dois tipos de ansiolíticos, que trabalham em direções opostas, bombardeando neurônios como numa frente de batalha. Nessas horas, ele dorme.

A indústria farmacêutica parece ter cumprido sua parte. Mas o apagão é precário. Logo surgem os pesadelos escatológicos, os gritos de todas as dores do mundo e um despertar recheado daquelas recordações quadro a quadro. Hora de medicar-se de novo para esquecer tudo aquilo, ou pelo menos um pedaço, pois hoje hora marcada com o analista e precisa de assunto.

A busca da cura também o levou a terapias alternativas, à base de chás e outras beberagens, apesar de seu ceticismo. Não funcionou. Precisava de alguma bomba de laboratório, algo sintético, alopatia selvagem. O resultado é que virou um monstro de sete cabeças, mas o que lhe resta de razão sempre lhe conforma: foi o jeito.

Com todos esses sintomas, o homem ainda lê. Além das bulas, com suas reações adversas, precauções e advertências, atenta para um tipo de literatura pouco indicada para seu estado. Os livros despejam mais desespero em sua alma. Os autores prediletos são aqueles tipos pessimistas, cheios de becos sem saída e vidas sem sentido. Então, após percorrer a última página, engole um agente antipsicótico atípico, que interage com uma ampla gama de neurotransmissores, e acalma-se. Sabe que suas angústias permanecem intactas, sob o cimento das drogas, mas aceita o alívio momentâneo como algo bem parecido com felicidade.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Itálicos críticos

Vivia de escrever passados para pessoas sem memória. Vez por outro aparecia um cliente, esquecido de outras épocas, sem nenhuma para contar, e ele tinha como primeira tarefa uma longa entrevista com o amnésico. Conversava sobre hoje para construir um ontem verossímil. Quase todos saiam felizes ao deparar, alguns dias depois da consulta, com uma infância cheia de esperança, brilho e revelações. Lembranças acolhedoras não custavam mais caro, mas sempre aparecia alguém pedindo uma pitada de sofrimento em suas recordações.

Em um único caso a mercadoria foi devolvida. Por engano, foram feitas duas memórias iguais e elas terminaram nas cabeças de dois homens de cidades diferentes. Mesmo assim, eles se conheceram, ficaram amigos e com o tempo descobriram que suas infâncias eram descaradamente iguais, em todos os detalhes, desde o braço esquerdo quebrado ao triciclo verde do Natal.

Meloso, colegial, quase pastoso. Se continuar com a história, nem com boa vontade os dois homens embarcarão numa comédia sessão da tarde. Falta tensão e, aqui pra nós, “pitada de sofrimento” é a putaqueospariu.


O desespero de que todas as carapuças lhes cabem não é boa coisa de se ver. Vivia culpado. Qualquer insinuação, viesse de onde fosse, trazia um aperto no peito e a imediata vontade de cair em campo para se defender. Mesmo diante de uma notícia de jornal, citando um vago personagem sem nome, o sujeito se apavorava e pensava: “Com certeza, sou eu”. O anonimato não era motivo para barrar paranóias de grande porte. Atos de terrorismo pelo mundo, denúncia contra uma quadrilha na Argentina, rombos bancários, quase tudo ele pensava: “vão me envolver”. Obviamente, era inocente, mas temia um erro de investigação ou da Justiça. Um erro de qualquer natureza, capaz de colocá-lo no centro de crimes hediondos.

Elegia à falta de assunto. Trata-se, obviamente, daquele texto não concluído porque não valia a pena concluir. Mas ficou lá, em stand by, à espera de uma emergência ou de uma carona numa antologia de bobagens.

Vê-se logo na criatura sinais de frouxidão moral. Vê-se ainda que dá para abatê-lo com argumentos apenas razoáveis. O fulano, quase sempre, segue no rabo da maioria, mas aparenta muita certeza ao condenar comportamentos aqui e ali com palavras que fecham a questão - “maconheiro safado” e “viado sem vergonha” constam de seu habitual repertório. Nem passa por longe que o interlocutor possa se enquadrar em uma das categorias.


O politicamente correto também vale pros adjetivos? Não fica claro e tem tudo pra não ficar. Por falar em frouxidão, o texto é frouxo. Se apertar piora e se afrouxar ainda mais, se dissolve.

Ela, vinte e poucos anos

O lado mais desagradável da convivência com os jovens era o fato de não ser mais um deles. O professor, no entanto, insistia. Estava sempre nas mesas de bares com alunas e agregadas nascidas depois de sua tese de doutorado em Filosofia na prestigiosa Universidade de Princeton. Por que não procurava sua turma? O problema é que ficava entediado com colegas acadêmicos, divididos entre Fenomenologia e artroses, quase todos vovôs, em vias de embarcar na aposentadoria e, pluft, na morte. Então ele escolheu a galera, extasiado com o sorriso d’Ela, eternamente curioso em mundo que não lhe pertencia. No mais, tinha certa destreza no trato com as meninas: cuidadoso para não parecer insinuante, mas não ao ponto de ser considerado fora de cogitação para o sexo. Sonhava com um caso mais duradouro ou amor eterno. Com Ela, vinte e poucos anos.

Era agraciado com freqüentes convites para programinhas. O professor ia, quase sempre, mesmo certo que as coisas terminariam mais ou menos. Ia pelo processo em si. O apelo visual, o sorriso d’Ela, o gosto de expor suas idéias para tão seleta audiência. Vaidade. Por volta das duas da manhã, quando o jogo ficava fisicamente pesado, o som da festa abafando as palavras, ele se recolhia. Algumas vezes experimentou a continuação da balada e terminou só, num canto, sem expor-se ao ridículo de cair na pista de dança. Saia à francesa. Elas entendiam.

Ao observar que não era páreo para homens e mulheres de vinte e poucos anos que sobrevoavam sensualmente suas moças, também tomava o caminho de casa. Parecia insensível diante de decepções e constrangimentos. Simplesmente desarmava o circo. Depois, numa poltrona de couro, cercado de livros em francês (quase um clichê Hautes Études), apenas fazia um balanço de sua performance na noite sob o ângulo mais positivo. A habilidade cinqüentenária para enrolar baseados – um espetáculo diante dos olhos d’Ela – e as informações sobre bandas antigas cultuadas nos dias de hoje devem ter somado uns seis pontos em sua escala imaginária. Sem contar que passou uns bons minutos discorrendo sobre a obra de Gilles Deleuze e, de quebra, serviu fartas doses de Mario Faustino, Noel Rosa e Psicanálise. Coisinhas caras à moçada urbana com pretensões intelectuais. O abismo etário era deixado de lado, embora seu trabalho mais recente fosse a respeito da passagem do tempo, a velhice e a morte na ótica de Nietzsche.

Cuidou das dores nas costas, comprou roupas adequadas (nem pateticamente juvenis nem explicitamente “tiozinho”) e estava de volta à arena. Naquele dia, o professor teria um encontro apenas com Ela, uma conversa a dois. Melhor de tudo: marcada por Ela, sua obsessão, razão de viver etc. Parecia preparado. Andou lendo Philip Roth, “Homem Comum”, mas não se abalou tanto. Ainda se achava na idade da batalha, não do massacre. Tomou meio Rivotril para conter a ansiedade e, cuidadosamente, acomodou o Viagra no bolso esquerdo. O pequeno míssil azul só seria usado em extremo caso, alerta vermelho. Saiu cheio de esperança e desejo. Romance no horizonte.

Mas a vida no universo juvenil se desfez da forma mais dolorosa possível naquela tarde. Ela queria um emprego, uma vaga no Departamento de Ciências Humanas, nem que fosse na burocracia. Precisava de uma grana para ajudar nas despesas do pequeno apartamento onde iria morar com um namorado. O cara ganhava pouco, era músico, vinte poucos anos.

domingo, 18 de setembro de 2011

Odete

Por anos estive ao relento da existência. Os projetos fracassaram, não havia saída. Mas agora, às vésperas do meu cinquentenário, vejo como as coisas mudaram. Estou de pé, sadio e com dinheiro no banco. Os filhos estão criados e se mulheres se foram, ficou esta ao meu lado, prestativa e heróica, testemunha de meus piores momentos, de vícios e males de década e meia.

Minha vida era uma tempestade sem abrigo e ela chegou justamente no instante de maior desespero, quando a enxurrada de danos já travava meus sentidos. Seu nome: Odete, 43 anos. Eu estava a caminho do fim. Só mulheres desse calibre são capazes de repor a dignidade de um homem, salvá-lo do naufrágio. Eu era um fardo pesado – não sou mais, graças a seus préstimos.

Renovado e disposto, livre de todos os dramas, presto-lhe a última homenagem nesta hora de dor e despedida.

Lamento, Odete, que tenhas partido no auge da minha glória. Lamento, Odete, que tenhas morrido para me salvar.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Dilemas ideológicos e o amor

Tinha que arrumar uma mulher que não me deixasse vendido ao sistema. Cansei de escrever textos com os quais não concordo – e no capricho. De dia, dou expediente como neoliberal para um líder classista do empresariado; à noite, bato ponto na esquerda, numa revistinha ao estilo realismo socialista. Nos dois casos, preciso demonstrar certo entusiasmo ideológico e, pior, voltar pra casa de ônibus. Há três anos estou nessa bipolaridade mal remunerada e mal resolvida.

Comecei a pensar em mudar de vida depois de seguidos encontros com uma jovem senhora de Higienópolis. Ela encantou-se com meus escritos – sim, tenho um blog – e aos poucos foi se chegando. Descobri que herdou uma fortuna da família e, pelo jeitão, estaria disposta a um mecenato com contrapartida sexual e aconchegos pertinentes. Estou vendo o custo-benefício dessa história. Pensei: é a chance de me livrar do empresário reaça e da publicação soviética. Poderia chutar o balde e passar a escrever só o que penso, sem melindrar meus patrões e minha consciência, como ocorre agora, pois só trato de cinema e literatura, mesmo assim de forma meio neutra. Nada de política ou filosofia porque suja a relação empregatícia.

Mas tem a questão da canalhice. Não estou apaixonado, não tenho tesão por ela, embora ache agradável ouvir seus elogios sobre minhas tentativas literárias. A voz é boa. O corpo deixa desejar, mas relevo porque também não sou essas coisas. O importante é que não dá a mínima se o sujeito é de direita ou de esquerda. Diz que gosta dos inteligentes e cultos. Enquanto isso, embalo meu dilema: como ou não como?

O fato é que não escondo meu desconforto com os dois empregos, mas ela não pensa assim, jamais pensará. Gostou do que saiu na revista (um texto meio que defendendo a Coréia do Norte) e do blog do empresário, onde detonei o gigantismo do Estado e floreei o empreendedorismo privado. “Você é eclético”, ela falou, manhosa. Não se tratava de ignorância; apenas seu mundo não estava assim dividido, entre direita e esquerda, como já disse, e se estivesse, acredito, os dois lados teriam seus defeitos e qualidades. O regime político ideal, segundo ela pensa, é uma mistura de capitalismo e comunismo, em que pobres levam uma vida decente sem perturbar a paz dos bem nascidos.

Se assim foi resolvida a questão política, pode significar que ela não me quer em seu apartamento de quatro quartos e duas suítes. Prefere me ver nessa confusão. Nada disso. Sempre repete que faço muito bem o meu trabalho, mas mereço coisa melhor e - gostei dessa parte – preciso de tempo para pensar e escrever sobre o que me vier à telha, de preferência um romance. Oferta irrecusável, mesmo dita de forma indireta. O que viria a seguir seria no campo romântico, algo parecido com jogo da conquista, pois a dama necessitava disso para oficializar o negócio.

A estratégia, que envolvia alto grau de cafajestice, começava por deixar de lado aquele papo sobre crise ideológica e criar um auto de bar a propósito de sua exuberante presença neste mundo tão carente de sentido. Disse-lhe que ela surgia como tábua de salvação, última tentativa de um relacionamento, meu bem, meu mal etc e tal, e daí aconteceu, disparei todo meu repertório, que ia ficando adequadamente meloso à medida que ela cedia e acedia e seus olhos brilhavam. A mulher da minha vida, enfim, estava ali, com seu Ap de não-sei-quantos metros quadrados e uma conta bancária suficiente para bancar um escriba desconhecido e agente duplo no campo ideológico.

Não se pode, depois disso, simplesmente organizar a mudança. Há ainda um período de namoro, parte especialmente enjoada, em que fomos a cinemas, jantares e passeios a beira mar. Com imenso sacrifico, dividi as contas. Nesse tempo, mantive minhas atribuições antagônicas, correndo da direita para esquerda e vice-versa, protestando contra o governo num canto e defendendo o mesmo governo no outro. De manhã, conferências empresariais sobre qualidade total e outras merdas; à tarde, discussões intermináveis sobre a crise do capitalismo e outras merdas.

Aquilo era estranho. Não tinha ilusões socialistas, mas ao mesmo tempo detestava aquele discurso descarado e sem culpas em defesa do lucro. E o que é pior? Sacanear suas convicções, por mais frouxas que fossem, ou sacrificar uma mulher no altar do mau-caratismo? Não dormi bem nesse dia nem dormiria nos seguintes. O drama moral me afetava e isso, por um lado, era bom. Mostrava minha capacidade de ter dramas morais.

Então marquei uma conversa aqui por perto. Chega de pegar ônibus. Abri o jogo de maneira escancarada a ponto fazê-la chorar, comovida com minha sinceridade. Parecia até mais apaixonada, e estava de verdade, porque finalmente fomos para o apartamento e ela me surpreendeu com encantos inesperados, o cheiro agradável e petinhos em razoável estado de conservação.

O certo é que a mudança de vida ficou para outro momento. O desfecho foi o seguinte: estamos num namoro, mas cada um em sua casa. Continuo com meus dois empregos aparentemente irreconciliáveis - direita de manhã, esquerda à tarde. Só que agora plenamente ajustados ao pensamento terceira via da amada.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Encontro o amor e depois perco

@ Viajei. Uma viagem incomum, no meu caso. Dessas de um lugar para outro. Ônibus, paisagens, rodoviária. Nada de drogas. Pelo menos por enquanto. Fazia tempo que não saia de casa, mas cá estou, numa cidade estranha, fugindo de mim mesma e atrás de alguém que conheci no twitter. Nem sei se é homem ou mulher, mas não estou em condições de exigir muito. O nome dele (a) é @I-Toy. No momento é o que basta.
(Leia o capítulo no malvadezas.com)

Trecho do livro Todo Dia me Atiro do Térreo

domingo, 11 de setembro de 2011

O Evento

Quando a luz se apagou para sempre, o último homem sobre a face da terra ainda tentou uma sobrevida com sua pequena lanterna mecânica, dessas que acendem a custa de freqüentes apertos de mão. Aquele fio luminoso bateu contra uma das poucas paredes em ruína e ele divisou um quadro – o retrato da mãe – e um velho mancebo coberto por um casaco de couro. Como provisão para os próximos minutos ou dias, tinha duas garrafas de água mineral, um lençol azul e uma pilha de jornais e revistas da semana anterior ao evento.

Recarregando a lanterna com esforços restantes, leu as notícias sobre a iminente catástrofe planetária e um infográfico a respeito daquele pedregulho do tamanho de Sergipe que se aproximava da Terra. Tudo foi grandioso: o estrondo, a poeira que cobriu o Planeta e, em segundos, somente a sensação de estar só em seu cantinho escuro. Quais as providências nessa hora implacável: um gole d’água, um oração, um grito? Não importava. Optou pela continuação da leitura dos impressos para entender porque as pessoas foram tão frias e indiferentes diante do inevitável. As notas oficiais das autoridades, por exemplo, tinham a mesma carga emocional de uma portaria do banco Central. As religiões trataram o caso como um desígnio de Deus e estamos conversados, enquanto a ciência alegou falta de tempo hábil para alguma providência eficaz.

A vida seguiu seu curso. Os campeonatos regionais não foram interrompidos e a política continuou com suas sessões plenárias e traições. A TV ocupou-se bastante do caso, mas novelas e sitcoms não foram suspensas. Houve a festa da primavera, concurso de misses, festivais de cinema, feiras literárias, seminários sobre boas práticas empresariais, lançamento de Iphone e anúncios de revolucionárias dietas de emagrecimento. Além, é claro, de mais uma temporada do Cirque Du Soleil na América Latina.

Notava-se enfado e cansaço em relação ao noticiário apocalíptico. Aquela pedra gigante, em rota de colisão, banalizou-se, embora já pudesse ser vista a olho nu, em noites estreladas. Mas não foram registrados sinais de melancolia ou desespero e ninguém caiu na esbórnia, como se o mundo fosse acabar amanhã ou logo mais – e iria acabar, conforme todos os cálculos das instituições científicas. Havia sempre a esperança de a rocha se estilhaçar na atmosfera e causar prejuízos de menor porte – tsunamis e terremotos – mas esse não era o ponto. O fato é que anúncio tornou-se chato e repetitivo, começou a perder força e até virou piada.

Apesar da má vontade dos leitores, o fim do mundo rendeu alguma arte. Duas bienais escolheram o tema, mas as instalações submeteram o juízo final às suas subjetividades - a ponto de expor a extinção da vida como mais uma mudança de rumo conceitual das artes plásticas. Espaços vazios e páginas lotadas de interpretações nos cadernos de cultura.

Depois de certo tempo, só os canais a cabo produziam programas especiais e rodadas de debates sobre o corpo sólido cada vez mais próximo. Nessas ocasiões, astrônomos e ambientalistas se digladiavam, pois os defensores da natureza insistiam em culpar o homem pela deterioração do Planeta, mesmo que o perigo real estivesse vindo de bem longe. Num desses conclaves televisivos, um cético metido a engraçadinho lembrou que o seixo descomunal não escolheu a terra porque não reciclamos devidamente as nossas garrafas PET.

O homem já estava exausto de carregar manualmente a bateria da lanterna em seu precário bunker. Mesmo assim, prosseguiu com a leitura da nossa imprensa - dividida entre a crítica e o apoio ao governo. Divertiu-se com o ministro que lançou um planto quinquenal de desenvolvimento quando o bagulhão já estava quase do tamanho da Lua. Na coluna social, Elisinha Proença Gouveia anunciava seu enésimo casamento justamente para o dia do “evento” (o pessoal do marketing usou o termo, disseminado pela imprensa, para evitar o clima de baixo astral associado a expressões como “hecatombe” ou “Armageddon”).

Enfim, quando ocorreu o evento ninguém contava em sobreviver. Nem o homem da lanterna, que agora tentava entender o fim de tudo a partir do noticiário das semanas passadas. Parecia tranqüilo, aconchegado em seu lençol azul, enquanto o céu ardia em fogo. Só lamentava a falta de um maço de cigarros, com o qual aquela leitura terminal se tornaria bem mais fluída e agradável.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

O deserto de Mojave e seus petinhos

Quando atravessei o deserto de Mojave estava sem papel e caneta e o diário de viagem foi deixado de lado em troca de outras atrações. Pensava em cinema e Geologia. Sentia o clima hostil. Lembro que os pneus do carro precisavam ser trocados, pois quase derretiam depois de certo tempo de rodagem. Mas havia cerveja no isopor e a motorista de Los Angeles, amiga da minha namorada e prima distante de Robert de Niro, estava com os seios à mostra por causa do calor. Passei boa parte do tempo entre duas visões. Lá fora, o Vale da Morte, lagos secos e a sequência de postes. No retrovisor, os biquinhos perfeitos da moça. Até hoje, desertos norte-americanos me remetem a peitos, apesar dos faroestes da infância, do cemitério de aviões, do Sam Shepard e de Win Wenders, que acabara de lançar “Paris, Texas”. Coitado do Harry-Dean-Stanton. Ser pedestre naquelas bandas não é fácil nem em filme.

Meu Road-movie, no entanto, era confortável e equipado: peitos da lourinha, cerveja, jazz a bordo, nacos e béquis. No caminho parávamos para observar o nada ou cascáveis se arrastando naquela caatinga estrangeira. Eu olhava para a estrada sem fim, refletia um pouco sobre essa adoração intelectual do deserto e novamente voltava discretamente o olhar para o meu oásis: os petinhos da Anne. Nunca presenciara uma exposição mamária tão longa e disponível como naquela viagem de 1984, coast to Coast, Los Angeles – Nova York.

Por falta de assunto, entre uma apreciada e outra na motorista, recordo que tentei engatar uma comparação entre o deserto de lá e o daqui, o sertão brasileiro, enfiando Graciano Ramos na história, Vidas Secas, Glauber Rocha, Terra em Transe, enfim quase todo o repertório possível de um nordestino provinciano e completamente bestificado com exibição natural, espontânea e trivial daqueles peitos. No mais, com o tempo a paisagem desértica vai se tornando monótona, cansativa, cheia de repetições. Já os peitos, não. Sem apresentar qualquer variação mais espetacular, conseguem prender a atenção full time, sem contar que eu não poderia me fixar no busto da moça durante todo o percurso. Além da necessidade de parecer blasé, havia o deserto lá fora e minha namorada estava sempre me mostrando pequenos montes erodidos e locações de filmes famosos.

Assim foi a viagem até o clima começar a estragar a paisagem interna do potente Nissan. Bateu um friozinho, escureceu e Anne repôs a blusa, de modo tão maquinal quanto a tirou. Só restava dormir. O deserto ainda estava lá, mas aqueles peitos se foram para sempre.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Memória

Nunca sabe o nome do filme, muito menos o do diretor, tampouco pouco se lembra dos atores. Pior: se atrapalha na hora de contar a trama. “É aquele que...”. Disso não sai, a memória falha, embora ele tenha quase todo o roteiro na cabeça, peça por peça, quase um story board, com músicas e algumas falas, que no momento não lhes vêm para uso em público. Acontece a mesma coisa com os livros daquele autor (“como é mesmo nome dele, meu Deus?”), músicas e bandas ou uma peça que viu, salvo engano, em um teatro do Rio, São Paulo ou Curitiba – ou será que só leu a crítica? Deixa pra lá.

Só depois do bar, antes de dormir, a ficha técnica cai. Inteira. O letreiro final completo, o IMDb de cada ator, resenhas completas, momentos especiais. É capaz de recitar tudo sem vacilações, diante do espelho, mas ai não adianta mais. Amanhã, quando voltar à mesa, a memória vacilará de novo. Já culpou o álcool pelos esquecimentos, mas é assim desde criança. Tantos filmes, peças e livros passaram por suas vistas. Acolheu os significados, algumas obras marcaram sua vida, mas ele queria mesmo era exibir suas informações aos amigos e nada aparece no momento certo. Pode ser timidez, falta de vitamina B12, problemas de sinapses com sinopses ou egoísmo.

Foi consultar um psiquiatra, tipo esquisito, e ele achou que poderia ser um vírus. Daqueles que migram dos computadores para as pessoas.

@_lulafalcao

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Tiques

Os tiques ao estilo Slavoj Zizek já existiam há muito tempo, mas agora ele apresentava novas manias e incômodos, especialmente com cores, sons e cheiros. Ao verde, por exemplo, reagia com um fungado longo, melancólico, quase um adágio laringológico. Tinha rápidos espasmos ao ouvir determinadas palavras e vertia lágrimas ao perceber o aroma de café vindo da cozinha. A cada minuto ajeitava os óculos, embora o aro não tivesse se movido um milímetro. Coçava uma coceira imaginária, parecia pedalar uma bicicleta invisível, se abanava em clima frio e costumava ir escorregando da cadeira quando não estava com a palavra. Sem contar que fumava feito um louco e quase sempre acendia o cigarro no lado do filtro. Ao beber – o álcool era outro problema – todos os sintomas se apresentavam de uma só vez, numa simultaneidade que deixava o interlocutor exausto. Era um magma em eterna ebulição. Os movimentos involuntários, súbitos e repetitivos já eram da conta de todo mundo, mas seus amigos não tocavam no assunto por não saber explicar porque, apesar daquele conjunto de esquisitices, ele estava sempre cercado de belas mulheres.

@_lulafalcao

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Casal teoria e prática

- Você não acha que Câmara está colocando em risco a democracia representativa no País?

- Não acho nada, Alberico.

- Por que é sempre assim, mulher, você nunca acha nada.

- Já achei. Não acho mais. Achar adianta alguma coisa?

- Claro que sim. Já ouviu a frase “quem não gosta de política será governado por quem gosta”?

- Não, mas qual é o problema? Quem gosta que governe. E tem mais: você adora política e não governa porra nenhuma.

- Meu bem, não é por ai. O fundamental é que a alienação política termina te deixando alienada de tudo...

- Como assim? Já fiz um bocado de coisas hoje. Levei as crianças na escola, paguei as contas e ainda trabalhei das nove até agora. Lembra? Sou eu quem sustenta essa casa.

- Claro, nunca neguei isso. Estou sem emprego fixo, mas não parado. Reflito sobre o Brasil, sobre as questões institucionais. Escrevo meu blog, tenho 1200 seguidores no twitter. Estou clamando por um país melhor.

- Alberico, esse twitter e esse blog não dão um tostão furado. Tanto concurso público por ai e você não se mexe...

_ Você acha que quero viver à custa do Estado, virar funcionário público, ser cúmplice de um sistema permeado pela corrupção?

- Que cúmplice coisa nenhuma, Alberico. É só um emprego como outro qualquer. E tem um salário no final do mês. Ficar ai escrevendo nesse blog é que não vai resolver porra nenhuma.

- Um blog que você não lê.

- Alberico, eu lá tenho tempo pra ler blog?

- Tem que arranjar um tempo. Não falo especificamente do “meu blog”. Você precisa se informar.

- Se você gosta tanto de política por que não vai ser cabo eleitoral?

- Heleninha, pelamordedeus, eu penso a política como algo superior, acima de questiúnculas partidárias, de campanhas eleitorais, essas coisas. Meu negócio é o Bobbio, a Ciência Política, a teoria, as questões do Estado, as relações com a sociedade.

- Que Mané Bobbio, rapaz. Você vive citando esse cara e até agora, necas. Em vez de ficar na dos outros por que você não arruma emprego de cientista político?

- Você sabe muito bem que não é assim. Não tenho diploma universitário. E não por falta de capacidade. É que sou bastante crítico em relação à vida acadêmica, aos seus vícios, às suas “verdades”...

- Alberico, você é crítico de tudo que pode te tirar desse maldito computador. Se soubesse não tinha comprado essa merda.

- Olha, Heleninha, você deveria agradecer por ter em casa uma pessoa que reflete e escreve sobre política. Lembre do meu livro. Não sou qualquer um, tenho um livro publicado.

- Um livro que ninguém leu. Até hoje você deve à gráfica. Melhor dizendo, eu devo.

- Heleninha, sabe o que me irrita? Essa sua falta de classe pra viver uma relação em que um é o provedor material e o outro se dedica a pensar, questionar e formular teorias. Conheço vários casais que tratam isso de uma forma, digamos, mais elegante.

- Olhe, Alberico, enchi o saco dessa sua vagabundagem enfeitada com teoria política. Não fosse casado comigo, você estaria morando na rua, sem blog e sem teto, ou arrumava outra besta quadrada como eu para segurar sua onda de intelectual fracassado. O que você produziu até hoje? Sim, tem o livro. Mas ninguém ligou, Alberico. Aquilo é um emaranhado de soluções à procura de problemas; você não alinha fatos concretos e faz uma análise simplista da realidade brasileira a partir de leituras rasteiras de jornais e revistas. Não há uma única idéia inovadora, nenhum pensamento original naquele labirinto de citações fora do lugar. Sem contar os erros históricos. Sua análise da Era Vargas, por exemplo, não leva em conta a conjuntura internacional e a própria guerra é deixada de lado para embarcar num cozido mal feito de Gilberto Freyre e Caio Prado. Encontrei vários parágrafos completamente descontextualizados, talvez por falta de conhecimentos sobre a engrenagem econômica do pós-guerra. E tem mais: o que O Gramsci está fazendo ali, ciscando sobre todos os temas, das artes plásticas ao sindicalismo...

- Sabe de uma coisa, Heleninha? Você me deu uma idéia: vou preparar uma segunda edição do livro. Levarei em conta suas observações. Algumas são equivocadas, mas você tem razão sobre Vargas. Preciso mergulhar nesse tema nos próximos meses. Enquanto isso, você bem que poderia escrever no meu blog a cada quinze dias...

- Quer saber, Alberico? Vai te fuder!

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

O hóspede



Ele poderia morar no hotel pelo resto da vida. A impessoalidade era essencial à elaboração de um pensamento neutro, sem influências das coisas e odores da casa. Não queria recolhimento e solidão. Saia à noite, tinha amigos, eventualmente namorava. Amplamente sociável, usava boas frases no momento certo, bebia com moderação, barbeava-se cuidadosamente antes de adentrar ao lobby. Não estava ali cinematograficamente: garrafas vazias pelo chão, folhas rasgadas de romances mal começados e cheiro de cigarro. Não. O personagem, depois da aposentadoria precoce, escolheu o hotel pela razão mais pura: a combinação perfeita entre seu jeito de ser e o ambiente do quarto. O frigobar com suas necessidades sempre repostas, a arrumação diária, o comportamento discreto dos funcionários conseguiam deixá-lo livre para construir um mundo sem interferências. Sem rastros nem escombros.

Conheci o cara sábado à noite. No hotel. Não falou nada que revelasse características de quem passaria o resto da vida pegando a chave na portaria. Também não foi inventado a partir do nada. O modo de operar o cotidiano era a principal pista. Ao contrário dos demais hóspedes, ele não demonstrava qualquer sinal de afetação, por menor que fosse. Comportava-se como se estivesse em casa. Melhor: numa casa, com suas relíquias e lençóis retorcidos, jamais teria o desembaraço que estava a exibir naquele dia e nos dias seguintes. O inquilino do 510 amava o ambiente hoteleiro, com especial destaque para os canais a cabo, a cadeira verde-musgo e a dobradura das roupas de cama. A cada vez que voltava, sentia-se aliviado em não ter ali um passado. Tudo era solucionado de forma prática: livros lidos, eram vendidos ao sebo. Não havia o sentido da coleção. Nem pequenos objetos trazidos da rua, como o Cristo cafona que acendia, passavam mais de uma noite em seus aposentos. Iam ao lixo com os jornais de ontem, as garrafas de refrigerante e o papel higiênico usado.

Avançar mais um pouco em sua vida seria especulação, como está sendo um pouco, mas o homem do 510 não deixava dúvidas. O fato de morar ao lado de tantos desconhecidos, renovados diariamente, abria espaço para a construção daquela personalidade. Primeiro, trata-se de um cidadão sem culpas, embora tenha razões subjetivas para tê-las. Mas, concretamente, estava dentro dos parâmetros requeridos pelas regras sociais. Em suma, não havia cometido crimes e nunca pensou em cometê-los. Pelo contrário, era um típico cosmopolita civilizado, incapaz de furar uma fila ou de não devolver qualquer centavo aos Achados e Perdidos.

Esperei sinceramente que, ao longo da semana, sua máscara caísse. Aparecesse enfim abatido com a escolha, reconhecesse uma derrota qualquer ou simplesmente se atirasse do quinto andar. Não. O mesmo comportamento, certa alegria com a chegada de um ônibus de turistas estrangeiros. Parecia entender cada língua deste planeta e se divertia ao presenciar a felicidade de mocinhas croatas, o shortinho das alemãs, a piada do irlandês sobre o Brasil e a eterna insatisfação dos franceses em relação aos serviços das camareiras e à vida em geral. Jamais alguém teria no recesso de um lar tamanha variedade de seres a circular pelos corredores.

As diversões cotidianas, no entanto, apenas emolduravam sua existência. No quarto, tinha paz e sossego para pensar e escrever e construir um mundo particular sem o olhar de parentes. Mas tinha família, adorava pais e filhos, enviava e-mails constantes para a irmã do meio. Sexualmente, estava dentro dos padrões. Nenhuma anormalidade capaz de chamar a atenção dos outros – ou até da sua. Não freqüentava putas, não se masturbava em excesso, visitava as namoradas e poderia dormir fora de seu habitat, embora achasse ser mais confortável ter sempre à mão as toalhas brancas limpas, o controle remoto e uma revista qualquer.

Queria sentir-se radicalmente consigo mesmo num ambiente sem intimidades e sem afeto de outros. Uma opção pela vida seca, sem adereços. Outra vantagem: a cidade também não lhe pertencia. Caminhava nas ruas como turista, embarcava em excursões guiadas, ia ao teatro, conversava com estranhos. Mas sempre sonhava com a hora da volta. O quarto trancado – seu único bem nesta vida.

@_lulafalcao

sábado, 20 de agosto de 2011

Na prisão

Além de pão e água, nesta cadeia nojenta em que me encontro, preciso de papel e lápis. Algumas idéias me ocorreram quando cheguei aqui, acusado de corrupção, carreira política acabada por um anacronismo jurídico. É sempre assim: usam um como bode expiatório para deleite dos indignados de sempre, moralistas do público e da imprensa, quando a prática é quase uma tradição nacional, um modo de vida das nossas elites e do povaréu, um jeito de fazer as coisas andarem com mais rapidez. Mas não adianta. Mesmo seus aliados nos negócios tidos como escusos vão fazer aquela cara de nojo diante das câmeras, clamarão por CPIs, apurações doam a quem doer e outras coisas da boca para fora. Não paro de pensar naquelas algemas, fotos nos jornais, desmoralização. Por que eu? Quero papel e lápis antes que os ratos comecem a entrar pela minha boca nesta cela úmida. Nada de biografia, por enquanto. É ficção. Não vou voltar ao parlamento, mas planejo uma saída literária deste inferno. Quer dizer, pode ser até que eu volte – a política, como dizem, é dinâmica.

O texto começa a sair. A prisão é real, mas esse laptop não combina com memórias do cárcere, daí o papel e o lápis. Mamãe, coitada, correu para cá com ravióli ótimo e também trouxe a TV e os livros. O pessoal do partido mandou uns intermediários, estão mexendo os pauzinhos, eu acho, mas também preocupados com revelações desnecessárias. Não vou abrir a boca, se é isso que eles temem, e o advogado, um dos melhores da cidade, também desaconselha qualquer movimento brusco. Espero o habeas-corpus e escrevo.

Queria mesmo era um diário, em capítulos, numa revista da moda, antes de lançar o livro pela editora do amigo que ganhou aquela licitação. Fiz um esforço enorme, no ministério, e espero naturalmente uma contrapartida, nesta altura bem pequena, porque nem os tais 15% apareceram. Os jornalistas precisam saber que às vezes é coisa de pai para filho, sem compensações financeiras. A gente também atua por amizade e até por admiração pelo trabalho de certos correligionários. Foi o caso da editora.

Agora que tudo escorreu pelo ralo, só tenho medo da solidão. Não é mais a solidão do poder; é a solidão da ausência de poder, o desprezo, o exílio na fazenda em Goiás, a pérgula vazia da piscina, o celular mudo e mamãe coitada, chorando pelos cantos. Dinheiro não é mesmo tudo na vida. Daria tudo por um tapinha nas costas. Queria mesmo uma sequência de tapinhas nas costas, um beija-mão, aplausos na convenção do partido, um telefonema do governador. Por isso escrevo enquanto espero o habeas-corpus. Tenho medo e pena de mamãe. Por que eu?

Lula Falcão