sábado, 25 de abril de 2015

Grilos demais



Entre coisas bestas eu gastava o tempo, sozinho, olhando a noite de uma janela, grilos e sapos, a luz fraca de um gerador diesel, um ou outro talher batendo no prato. Nunca acontecia nada além disso, mas um dia aconteceu, com o sequente silêncio dos sapos e o aumento do barulho dos grilos em muitos decibéis acima da normalidade. De repente aquilo virou um coral e finalmente apareceram, aos milhões ou bilhões, invadindo as casas da cidadezinha, inclusive a nossa, e tive o privilégio de acordar meu avô para comunicar, em tom cinematográfico: eles chegaram.

- Eles quem, menino? – perguntou meu avô, ainda quase dormindo, mas já correndo os olhos para a arma em cima do guarda-roupa. Eu disse que tinha muitos grilos lá fora, alguns até aqui dentro, e ele acalmou-se, pois devia estar imaginando outra coisa, sem contar que grilo não é novidade. Eu voltei para a janela, já fechada, e escutei a guizalha dos bichos e quando abri a janela entrou o enxurro casa adentro. Um tufo de grilos também surgia no telhado, naquela tritina danada, como uns mastigando outros, caindo aos montes, estalantes, enquanto já nos protegíamos com cobertores e toalhas de mesa, e afinal meu avó chegou com sua lança flamejante, feita com cabo de vassoura e panos de prato na ponta; a cachaça de cabeça atiçava o fogo. Deu para meu avô lança-chamas abrir caminho até a porta da rua, mas do lado de fora havia mais grilos do que lado de dentro, principalmente em cima de nossas cabeças. O dia nem amanheceu por que a grilharada cobria a luz do sol.

Parecia o fim do mundo, mas eu me divertia e, por uns poucos momentos, fiquei pensando: qual o coletivo de grilos? Eu era uma criança muito estranha. A cidade também era estranha. Nos dias úteis o sangue escorria na única praça, e às vezes subia as calçadas e sujava cós de calças e inundava sapatos furados.  A corrente vermelha vinha do matadouro público e só minguava na época da seca. As crianças brincavam descalças, cobriam-se de sangue, deitadas, embolando na rua, como se ali fosse um clube.

Na invasão dos grilos lembrei-me ainda das pragas do Egito e, embora por lá fosse de gafanhoto, a nossa não ficava para trás, especialmente em termos de quantidade. Até hoje não sei por que Deus lançou aquelas pragas, pois bastava obrigar o faraó a deixar Moisés ir embora com seu povo. Não. Preferiu provocar uma desgraça, aliás, dez. Melhor esquecer isso. O importante é que naquele dia, já amanhecido e ainda escuro, também tínhamos uma praga para lidar.

Até serem entupidos pelos grilos, que vinham como cardumes aéreos, os alto-falantes da praça transmitiam informações não confirmadas a respeito da ocorrência de duas mortes e especulações variadas sobre as causas da praga, alguns debitando o fato aos desígnios de Deus e outros, mais científicos, apostando num vento mal comportado, veneno no ar ou mudança na rotação da terra. Nunca se chegaria a um veredito.

Só no final da tarde chegaram os homens com DDT, substancia que enfraquece até casca de ovo, e então iniciaram a matança, aspergindo o veneno em cima de montanhas de grilos, que eram em seguida retiradas por um trator do governo do federal. Parecia uma tarefa de Sísifo. Quando mais grilos tiravam, mais grilos apareciam, num barulho agora compacto, vindo de ajuntamentos de vários formatos. Na frente dos Correios, surgiu uma montanha de grilos mortos e vivos capaz de esconder a placa da repartição seis palmos acima da porta.

Os jornalistas chegaram em seguida, numa rural Willys azul e branca, que veio rodado sobre uma estrada de grilos desde o distrito mais próximo. Alguns insetos estavam no teto do carro, como se fosse um carro alegórico. Nunca um jornalista esteve na cidade e eles desceram com grilos até a canela, procurando pelo prefeito, mas foi a professora Aparecida que passou as primeiras informações. Perguntaram se aquilo era normal. Ela respondeu que não. Nunca tinha visto coisa parecida, a não ser na Bíblia.

Foi um dia animado, um circo, apesar dos muitos atendimentos no posto de saúde, a maior parte casos de pânico, moléstia desconhecida naquele tempo. Com o tsunami de grilos também chegaram do nada figuras expoentes da sociedade local, reunindo-se ao grupo no quartel-general montado às pressas na prefeitura para combater a praga. Era preciso estratégia para enfrentar os grilos que, apesar do alvoroço e da falta de clima, pareciam se reproduzir no meio daquele aglomerado inquieto.

Todos os moradores foram convocados, crianças e adultos, para formar um segundo pelotão atrás do pessoal do governo. Recolhíamos os insetos mortos e jogávamos em fogueiras. O destacamento da Polícia local deu tiros para cima com o objetivo de dissipar a nuvem escura de grilos. No meio da tarde, eles ainda tapavam a luz, mas agora como uma peneira, transformando a cidade em bolotas intercaladas de sombra e luz. 

Fomos levados para a cama no final da noite e, no dia seguinte, a cidade amanheceu como se nada tivesse ocorrido. Nem sinal dos grilos. Do jeito que apareceram, sumiram. Pelo jeito, os adversários tinham empenhado todas as suas forças naquela operação, mas vencemos. Teria sido um recuo tático, conforme uns poucos jornais da época. Senti um enorme orgulho de ter participado da batalha. Só que os grilos nunca mais voltaram, a vida foi ficando chata e quando fiz 18 anos fui embora de lá. 

domingo, 5 de abril de 2015

O cubo


O objeto estaria numa sala, num palco, enfim, diante de uma plateia, pois o homem preso no cubo ouvia ao longe o som de vozes, muitas vozes misturadas, alguns aplausos, causando uma onda em que nenhuma palavra era audível. Também poderia ser um som interno ou barulho vindo de qualquer canto, talvez até do espaço, e nesse caso o cubo poderia estar perdido no infinito, vagando sem destino.

O homem pensou: deve haver uma saída. Pensou logo adiante como fora parar dentro do cubo e por que um cubo e por que ele. Geometricamente não havia saídas. Nem ele poderia quebrar as paredes por falta de ferramentas. O homem estava nu.

Em tese, a história precisa de uma explicação sobre o homem preso no cubo, ou em qualquer canto, podendo ainda ser uma metáfora ou mera enganação. Mas isso é em tese. O nosso homem está preso no cubo por que está e pronto. Talvez seja uma singularidade ou um recurso para contar um caso, embora isso não seja o mais importante. Não há um caso propriamente dito. O homem está no cubo como um homem está numa quadro com o pescoço espichado além do padrão humano e ninguém pergunta por que – e se perguntou um dia não tinha tanta urgência por respostas.

De volta ao homem. Sua primeira providencia foi gritar. Ninguém ouvia. O som retornava para ele como se tivesse ricocheteado nos lados do cubo. Ouvia os sons retorcidos, mas não poderia ser ouvido. O único passatempo em sua prisão era pensar em cubos, especialmente no cubo mágico - o quebra-cabeça tridimensional inventado pelo húngaro Ernő Rubik, conforme a Wikipédia. Eram pensamentos que não interessavam muito naquele momento, visto que a questão do cubo mágico é resolvida pelo lado de fora. Ele estava num cubo oco, numa situação pelo lado de dentro, ainda não testada por nenhum dos 900 milhões de usuários atuais do hexaedro mais popular do planeta. Esqueceu o cubo magico.

Também pensou em matemática: A=6 ² V=a. Nada. Resolveu então, por instantes ou horas, esquecer o passado e imaginar que sempre estivera ali e ali era a única permanência que sua vida registrava.  Também seria uma pergunta a ser feita. Só não sabia a quem nem como. Não havia interlocutores. Não sabia como o era o lado de fora - e qual o pensamento do lado de fora a respeito de sua prisão no cubo? E se tudo não passasse de uma teoria sendo testada? O homem também especula.  
As dúvidas de ordem técnica e pessoal surgiam a toda momento para o homem preso no cubo, sem contato externo nem uma ideia própria capaz de apontar a saída ou resolver a equação, se tivesse uma, ou acordar do pesadelo, mas seu último sonho foi sobre circunferências, bolas e curvas sinuosas. O homem não estava louco. Estava dentro de um cubo.


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Personagens desnecessários V



Tendência

Quando cheguei, todos me olhavam com asco ou desprezo. Mais tarde, descobri. Era o palito de dentes volteando em minha boca, cavoucando os dentes, passeando entre os lábios com a ajuda da língua, já habituada à coreografia. Outros componentes da minha pessoa por certo também não agradavam aos citadinos: a camisa florida, o cordão de ouro e os óculos ray-ban. Eu me achava um sujeito elegante, mas não acho mais.

Ricardão

Quando Ricardo II entrou em cena, cheio de lamúrias, ela saiu correndo e nunca mais voltou ao teatro. Mesmo com todos os absurdos da montagem – Henrique IV era um robô -, o conde de Hereford, papel da moça, não poderia fazer isso antes da conversa com o rei deposto. A interrupção levou o diretor ao palco e sua explicação sobre a ausência do conde não convenceu o público. Aquilo, segundo ele, faria parte da adaptação. Shakespeare eternamente renovado, citações de Peter Brook etc. De qualquer forma, foi muito sangue frio para um homem de teatro que acabara de perder a mulher e também sua melhor atriz. Mais uma tragédia, desta vez real, embora ele preferisse Ricardo II.

Jeitinho de ser

Por natureza, fujo do assunto, deixo pra lá, empurro com a barriga, ponho uma pedra em cima da história e faço de conta que não é comigo. Vou, então, levando como se pode, assim Deus quer e seja o que Ele quiser, tanto faz como tanto fez; se era pra ser, foi, conforme está escrito.  Além disso, acredito piamente na autoridade de quem pode e na obediência de quem tem juízo.

Ideias
Quem sabe aparece uma ideia e a gente compra um apartamento? – perguntou a si mesmo, mas dirigindo-se à mulher, o homem que conseguia levar a vida vendendo ideias a respeito de tudo.  Até agora nenhuma iluminação, nenhuma sacada capaz de mudar a humanidade, mas ele conseguia sustentar a família dessa forma. Conseguia porque tem sido difícil nos últimos tempos. Há ideias demais no mercado, muitas repetidas, outras inviáveis, sem contar a enorme quantidade das que são realmente boas. O excesso de oferta joga os preços para baixo Não é fácil viver ao sabor de um mercado tão saturado.