terça-feira, 27 de agosto de 2013

Papéis



  1. Na adolescência eu costumava escrever cartas de suicida apenas por diversão e treino para virar escritor. Levava o ofício a sério, a ponto de considerar tais despedidas um gênero literário - tão importante quanto o romance e o conto. A vantagem era não precisar morrer por essas linhas de falsas infelicidades, sofrimentos inventados e culpados sem culpa. Assim, vingava-me da falta de sentido da vida que, à época, parecia cheia de sentido e alumbramento. Era o tempo do existencialismo e eu não queria ficar por fora. Durante anos, criei toda sorte de razões para dar cabo à vida: doenças sem cura, desilusões amorosas, dívidas impagáveis e revolta contra a opressão doméstica. Mais tarde, quando me tornei escritor de médio alcance, torturas existenciais passaram a me atormentar de verdade. Mas aí as cartas de suicida tinham perdido a graça. Até elas.

  1. Escrevo todos os dias. É um vício. Às vezes só um parágrafo, às vezes cinco páginas. A maioria dos textos vai para uma pasta, chamada purgatório, mas pouca coisa se aproveita por inteiro, rende mais como peças de reposição. Pode estar lá, por exemplo, uma frase para outra história, pedaços de falas e outras tralhas. Um trecho de diálogo pode servir para um viajante, uma velha solitária ou um político derrotado.

  1. Enrolado à perfeição como cigarro de fábrica. Carburação exata, queimando devagar e fornecendo muito. Bastou a metade. Tudo funciona bem e não precisamos mais sacrificar nossas vidas em dúvidas e desilusões.



domingo, 25 de agosto de 2013

A ressurreição I



Quando acordei senti a mão pesada em minha testa, tomando a temperatura. Não tinha febre, acho, apenas via o clarão cegando os olhos, luz estourada e, aos poucos, a imagem ainda em formação: quarto branco de hospital. Cena batida, eu pensei, deixando de lado as razões de estar ali. Logo viria alguém e veio. “Você esteve morto”, disse a enfermeira ou médica, buscando minha ajuda para entender o que ocorrera antes e durante o apagamento. Nenhum flash, memória zero, talvez eu estivesse nascendo naquele momento, mais ou menos aos quarenta anos, pois não existia um tempo anterior. Na verdade, ela sabia sobre mim tanto quando eu.

Notei certa frustração em minha interlocutora de branco. Parecia mais interessada em vida após a morte do que em minha identidade, sem contar a ressurreição, caso pouco corriqueiro, por sinal. Se estive morto estaria vindo do nada e nada teria a acrescentar. A preocupação era outra, mais urgente: eu era um ser com personalidade, convicções firmes, ideias sobre a vida; faltavam fatos em minhas lembranças. Faltava-me a própria lembrança. Também não vinha à mente minha imagem; não intuía como eu era ao espelho.

Em termos médicos, nada de anormal na volta à vida, informou a mulher de branco. Exames ok. Menos eu. Comecei enfim a ter recordações, incômodas, e nelas apareço como personagens de livros que li, sentindo-me na pele deles; eu e meu nariz adunco. Todo romance tem alguém de nariz adunco. Sou perfeito cavalheiro no século XIX e perfeito canalha em história mais recente, mas canalha com classe e tecnologia, especialista em golpes financeiros, ladrão roubando de ladrão, ou seja, o mocinho. Ela conhecia alguns textos, cujas falas recitei. No entanto, preferiu tratar o caso como delírio, afastando as chances de metalinguagem. Insisti que não era uma coisa nem outra. Eu sentia dores físicas. Fui apedrejado em Jerusalém e ferido na praia de Omaha, para citar dois exemplos. Parece ter sido ontem ou há minutos, está escrito.

O problema foi apresentado, vamos ao conflito, em busca de solução satisfatória, conforme ensinam os roteiristas. Eu estava ali, indefeso, tentando encaixar o episódio nas histórias literárias. Nada. Pedi então para saberem se eu existia para o mundo dos vivos. Tiraram fotos, impressões digitais, sangue e em seguida checaram em todas as instâncias. Nada. A partir daí levei em conta a possibilidade de estar morto, ainda, para sempre. Além de mim, só havia uma pessoa na sala, a mulher de branco. Branco=fantasma. Só que ela não combinava com enredo de terror - era corada e viçosa, pernas capazes de distrair a atenção de um zumbi amnésico.

Não é isso. Eu e os personagens que representei nunca acreditamos em milagres. Estava vivo, sim, depois de um período em estado de coma. Nessa hora, a mulher interrompeu:

- “Não era coma; era morte mesmo”.

- Quando tempo? – perguntei
- Não sei ao certo, não estava de serviço nesse dia. Ouvi falar em seis meses. Ninguém sabe seu nome nem de onde veio.

Meu Deus, bati o recorde. O único caso conhecido, mas nunca comprovado, não passou de três dias e até hoje é notícia. Estava com um nó difícil de desatar. Talvez o longo período morto tenha deixado sequelas, como a perda da memória, embrulhando minha cabeça em páginas de Graciliano. Estranho não ter ficado podre. Estranho não estar tão preocupado com minha situação delicada. Adiantou a moça que eu havia sido congelado para um estudo e, de repente, no meio de uma conversa de médicos, levantei da mesa cirúrgica e pedi água. Não me lembrava da mini ressurreição, anterior a esta. Ela, a mulher de branco, era única referência real da memória.

Por isso, as dúvidas voltaram, ainda sem o medo que a ocasião merecia. Não era um indigente, pelo menos não me sentia como tal, nem me sinto, agora, contando minha história. Havia uma aura aristocrática me cercando neste quarto e continuo nele, no presente momento, com sinais vitais preservados. O coração bate, o sangue corre, os olhos exploram o teto e, vez por outra, o corpo da médica. Fora disso, nada (Continua).



segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Iberê Segundo Paulo - Onde comprar


O livro Iberê Segundo Paulo pode ser encontrado pode ser encontrado nas livrarias e outros pontos de vendas e também pode ser pedido por e-mail. contato@nhambiquara.com.br.  Basta enviar o endereço e em seguida depositar na conta da editora. Sem frete. Preço: R$ 39,00.

Pontos de venda

Livraria Cultura (todo o Brasil)

Loja do Bispo - Rua Dr. Mello Alves, 348 Jardins São Paulo SP - CEP: 01417-010
Tel.: +55 (11) 3064-8673

Livraria Jaqueira  - Rua Antenor Navarro, 138 Jaqueira - Recife - PE
Tel.: 81 3265.9455


Mercearia São Pedro - Rua Rodésia, 34 -Vila Madalena - São Paulo

Livraria Argumento - Leblon - Rua Dia Fereira, 417  - Rio
Livraria Argumento - Barra - Avenida da América, 7777 - Rio

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Solidão a dois

Doeu-me o final da apresentação, quando ela, em lágrimas, confessou o desejo de nos abandonar para sempre. Era teatro, claro, iria mesmo embora de qualquer jeito, sem alarde, mas resolveu montar seu quadro diante do público. Conosco – seus dois amantes – mantinha apenas uma relação protocolar, nos últimos meses; em casa criava conflito só para afastar o tédio. Agora estava lá, no palco, contando à plateia nossa convivência na mesma casa, os três, dois caras e uma cantora, e anunciando também o encerramento do caso.  Queria ser a primeira a deixar dois homens no mesmo momento e mesma cena, assistida por fregueses do velho clube de jazz. Os dois abandonados esperavam alguma coisa má - não nessa forma e conteúdo.

No mundo polígamo quem está em maioria nem sempre ganha, aliás, quase sempre perde. Estávamos ali para isso. Receber o que restou de cinco anos de vida a três. Ela parecia tranquila, como estivesse informando a próxima música. Tal comportamento nos deixou ainda mais desgraçados e sem forças de reação. Pensei em ficar enfurecido, mas desisti. Não havia impulso e parei na zona intermediária da decepção. Meu sócio nessa empreitada ficou assustado, sem outro sentimento classificável além do medo. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Escritores miseráveis



Os personagens devem uns aos outros, especialmente dinheiro, e antes do meio da história há uma crise de liquidez, uma pobreza extrema, despejos, fugas, lares desfeitos. Os mais velhos e doentes morrem sem repercussão. Outros se viciam em drogas e bebida até deixarem de ser o que são e rumam para o desfecho quase desfalecidos. Alguns pedem esmola em parágrafos inteiros, justificando a penúria com longas citações filosóficas, tomando também de empréstimo trechos de Ivan Turgenyev. Agora, estão reunidos no centro da cidade, numa convenção literária carregada de niilismo. Em Otília, o corpo dói inteiro, provavelmente um tumor. Alberto perdeu um braço. Aloísio começou a urinar sangue. Manoela – outrora a musa do grupo - está tuberculosa.

Tanto sofrimento e ninguém chora, não acredita na compaixão do senhor, não crê em deus - sempre escrito em minúsculas, em papel de embrulho. Sem a Divina Providência, uma injeção de recursos, via Lei de Incentivos Fiscais, seria uma solução. Todos precisam de um projeto. Sem projeto não há vida para os escritores miseráveis. O problema é que as roupas esfarrapadas dificultam a captação de recursos. Quando chegam às empresas, atrás de patrocínio, são expulsos por seguranças.

Os que vivem um pouco melhor, com lugar para morar, também estão ameaçados. Dividem casas velhas com miseráveis iletrados e, de repente, descobrem que não são bem-vindos no lugar, têm dois meses para arrumar outro canto, e eles também terminam se juntando ao seminário de rua, a Flip dos excluídos, para discutir a obra de algum desgraçado da mesma espécie, de Lima Barreto a Ericsson Luna.

Muitos deles dormem em qualquer brecha, sobre caixas de exemplares de livros encalhados. Investiram tudo na edição, mas na hora de colocar o produto nas livrarias esbarraram em distribuidores, baixa margem de lucro e desprezo dos cadernos de cultura. Há opúsculos de gráfica rápida, mas tais publicações nunca chegaram às livrarias e nunca chegarão. Se boas histórias estão ali, não interessa; interessa a apresentação, o nome, nem precisa ser escritor. Além disso, a escrita miserável não levanta a autoestima do leitor. Pelo contrário, só há lamentos, reclamações e pessimismo nos textos escolhidos de Assis da Mata e nos poemas de Maria Fontela. Os dois tinham algum dinheiro, antes da vida literária, e nem mesmo o papel escrito a lápis hoje é suficiente. Então, apagam e escrevem novos textos, no mesmo papel, como num palimpsesto. 

Ainda bem que neste ambiente insalubre todos se respeitam, sem contar os diversos casos de arrebatamento, aqueles em que o sujeito é capaz de usar expressões exclamativas do tipo “que saber jurídico!” ou “quanta erudição!”, ao referir-se ao mais respeitado de seus pares, também um pária, mas capaz de ombrear com todos os imortais da academia. Há uma liturgia, portanto. Apenas quando é hora de catar coisas no lixo é que essa convivência perde força, mas o primitivismo de atirar-se aos rejeitos pode resultar em anotações espirituosas e analíticas feitas por gente realmente capaz de transcrever o lixo para a literatura e vice-versa.

Pobreza em estado puro, recheada de prosa articulada. Eles formam uma espécie de coletivo – a Irmandade dos Miseráveis de Letras (IML) * -, mas cada um com sua dor, escrevendo histórias sob e sobre marquises e cobertores velhos. A literatura miserável surge à margem das editoras, das redes de livrarias e não é encontrada em versão digital. Como negócio não tem futuro. Ali ninguém tem futuro nem está preocupado com isso.   


*A IML foi criada, no mundo da ficção, pelo contista Cláudio Parreira.