sábado, 17 de junho de 2017

A Rua


Quanto mais durmo, mais economizo. Ruim é achar onde dormir até mais tarde. No abrigo, temos que acordar cedo; na rua o problema são os passinhos, bem perto do meu ouvido, sapatos de vários tipos, sons diferentes, sem padrão. Fosse um toc, toc constante, em ondas, eu ganharia umas horas. Só não sei para quê. Acordar, comer, calcular, dormir de novo e comer de novo caso consiga comida, mas aparece nem que seja uma sopa, e eu detesto sopa, e no último caso tem o lixo. Um dia achei um filé inteiro.

Mesmo assim, nessas atribulações, consigo economizar algum. Pequenos serviços. Outro dia ajudei uma moça a carregar dois sacos de roupa. Ela disse que era para vender no interior. Ganhei cinco reais. Nem esperava tanto. Também achei um celular e recebi uma recompensa boa, de vinte reais.

Não bebo. A verdade é que não bebo desde que vim para a rua. No entanto, participo da pequena vida social da praça. Todo mundo contando vantagens que se foram, se é que falam a verdade. De resto, lamentações e planos. Lá no canto, um grupinho divide uma garrafa de vinho barato e umas pedras de crack.

Eu falo muito porque os outros são quase silenciosos. Pelo menos os do meu grupo, homens de meia idade. Tenho agonia quando fica aquele silêncio e então começo. Se não tenho um assunto recente, explico para eles por que não acredito em discos voadores - o que as pessoas veem são aglomerados de partículas, mini galáxias, em movimentos sem lógica para nossa imaginação, especialmente para a de vocês, digo a eles, esperando uma intervenção e nada. Só no fim da história, alguém diz "pois é" ou algo como "Deus escreve certo por linhas tortas". Eu nunca esperei mais do que isso.

O grupo é pequeno, gente mais cautelosa, sempre num relacionamento complicado com os drogados, pois no fundo não sabemos quem está certo. Talvez sejam eles. Mesmo assim não vou arriscar outro passo em falso na vida. Na verdade não sei. Eles estão fazendo uma escala na viagem para a morte, mas eu vou direto e, no fim, dá na mesma. Às vezes eu penso assim, às vezes não. Pode ser apenas um monte de átomos em movimentos bizarros e quando a gente morre os átomos vão embora sem a menor cerimônia. Pode ser ainda uma alma imortal sujeita a julgamento e outros processos e, pensando nessa hipótese, eu evito experimentar essas coisas. O que mais faço na rua é pensar.

Aos poucos, a gente se acostuma. Bate nessa condição e fica, vai ficando, sem muitas providências para sair. Também aos poucos o que restava fora da rua vai sumindo. Mas ainda penso em Margô, minha ex-mulher. Não tivemos filhos. Não tenho mais tantas ligações genéticas com o mundo. Daí a falta de entusiasmo para voltar, empenhar um tremendo esforço que ao final pode ser insuficiente e só capaz de levar-me à depressão e ao desentendimento. Então, vou aos poucos. Estive numa espécie de curso para moradores de rua, os sem-teto, e só posso dizer que minhas perguntas não foram respondidas. Serviu para passar o tempo e havia lanche.

Na rua, você precisa estar atento, informado sobre as possibilidades da próxima refeição. Existe o abrigo, cheio de regras e horários, mas descobrimos que muitos restaurantes e bares jogam pão fora no final do dia e dele nos servimos. Raramente recorro às minhas economias para um refrigerante. Um sujeito da praça gosta esbanjar e compra água mineral com gás. Pede dinheiro para dar-se a esse luxo e ainda posa de bacana num ambiente em que não existem bacanas de nenhuma espécie. Um dia vi o cara bebendo um café espresso.

Vivo assombrado comigo, mas procuro manter a linha. Banho todos os dias, roupa lavada uma vez por semana e um jogo mental diário para não ficar louco. Muita gente embarca nessa viagem e perde o juízo. Ontem mesmo, vi uma mulher numa fictícia ligação telefônica com um povo distante - Os Proparoxítonas. Na calma dá para montar a história dessas pessoas porque aqui normal e anormal se misturam, estão em único lugar ao mesmo tempo, caso se considere o tempo nessas bandas. Basta dar como possibilidade que o absurdo faz parte, qualquer coisa é possível, conforme preveem nossos avanços no ramo da Incerteza. Como se vê, minha aparente lucidez, quase forçada, não impede um mergulho nas cabeças mais distintas e suas oscilações entre loucura e indiferença. Às vezes confundo os lados.

Vivemos num horizonte de eventos, esperando a salvação, mas não acontece nada demais na rua. Ocorre mais na mente das pessoas, voltadas para o passado, enquanto o futuro se expande, fica cada vez mais rápido e distante. Conheço vários com experiência, mas de que adianta? A cada dia coisas novas são criadas, engolindo as antigas, deixando para trás quem conheceu o início de determinada tecnologia, mas que não terá tempo hábil de vida para criar novas possibilidades, pensar em longo prazo. Então os mais novos vão tomando conta, como sempre ocorreu. A tribo não precisa de anciãos.

A vida é assim, eu penso. Quem não juntou dinheiro corre o risco de parar na Patriarca porque à falta de emprego se junta a vontade de não trabalhar, embora eu conheça muitos capazes de ganhar um dinheirinho honesto e informal com seu minúsculo comércio de balas e chocolates ou cigarros por unidade. Eu queria voltar à minha profissão, mas fiquei desatualizado e aqui não é um lugar de troca de ideias na área da Física de Partículas, por exemplo. Quando eu falo que um elétron pode mudar de órbita sem passar pelo espaço intermediário, eles me olham com certo descaso, como se perguntassem “e daí?”.

Portanto, não dá para manter o orgulho se me dão pouco valor. Mas alimento o egocentrismo como substituto de segunda linha, negócio de outra categoria, mas em condições de manter o mínimo de satisfação comigo mesmo. Sou egocêntrico, não egoísta. É diferente. Posso dar minha roupa ao próximo se ele mostrar algum sinal de admiração por mim. Não quero poder; quero glória. Até mesmo neste buraco, procuro compensações.

Queria ser reconhecido pelo menos como o Aliócha de Dostoiévski, levando a vida sem qualquer esforço e qualquer humilhação, como bem descreve o autor, e quem me desse guarida achasse isto um prazer e não um fardo. Pena não funcionar assim, nem mesmo tendo um quarto de pensão eu poderia exercitar um personagem mais digno e com alguma justa vaidade. No meu caso, o pior da pobreza é a comparação com dias melhores. Nem sei se eram tão melhores; eram mais confortáveis.

Tudo começa com um pequeno desastre, quase uma singularidade. Sem querer derramei cerveja em seu vestido novo e a má vontade de Margô cuidou de transformar o incidente numa tragédia. Estava cheia de mim, deu-se para ver, todos viram, o jeito dela olhando para mim - uma geleira com raiva. Nos dias seguintes, a má notícia da minha demissão. Ela ouviu calada e depois, sem um pio de consolo, perguntou se eu tinha alguma coisa em vista. Vou mandar o currículo, eu disse. Você sabe que só isso não adiante, respondeu Margô. Você também precisa parar de beber, acrescentou ela, ainda mais séria.

Antes a vida tinha os ingredientes necessários. Um apartamento comprado à prestação, carro e vaga na garagem. Eu ensinava Física numa escola particular e Margô era funcionária pública concursada; ainda é, eu acho. Ela tinha o dinheiro dela, eu tinha o meu, e assim a contabilidade dava certo, mesmo com meus gastos com álcool e às vezes com outras substâncias. Perdi o emprego e perdi a liberdade. No começo Margô deixava umas notas em cima de mesa, mas com o tempo elas sumiram. Não cobrei. Continuei a procurar emprego, num momento difícil do País, e não encontrei sequer uma promessa. Aí um dia Margô disse chega, me deu cinco mil reais e me mandou embora. Ela tinha suas razões.

Pode ter sido tarde. Mesmo assim parei de beber. Fui para uma pensão do centro, mas logo o dinheiro acabou e caí na Praça do Patriarca, dormindo sob uma marquise, minha estreia. É como pular de um universo para outro, onde as leis da física são diferentes, bizarras, nada combinam com nada. Em minha cama improvisada, feita de papelão e plástico de bolhas, passo o braço para encostar em a Margô, meio sonado, e só há um buraco na calçada; minha mão tateando na realidade. Outras vezes sonho estar acordando em minha casa, pronto para calçar meus chinelos, e acordo com o clarão da cidade. Mal comparando é como a Terra sem a proteção da atmosfera.

Chego a pensar que só o espaço do pensamento vale a pena. Dentro da minha cabeça existe outro mundo como existe outro mundo no mundo das partículas. Domino seu interior, viajo pelo espaço, frequento bons restaurantes. Há uma projeção de mim que se dá bem, um físico notável, prêmio Nobel, e caso haja outra dimensão, do jeito que imaginam agora, posso dizer que dei a este lugar paralelo a minha consciência e as minhas sensações. Bastar estar só para ser aquele que não sou aqui e agora.


segunda-feira, 5 de junho de 2017

A bordo


Na cabine, trabalho e atenção; lá ficam os controles, controladores e técnicos. Três turnos de oito horas no comando da nave, como manda a lei trabalhista; pleno emprego a bordo, sem contar a vida social ativa e incentivada. Fora do expediente, cada um faz o que quer, observando apenas o bom senso e a segurança da viagem. No final turno, muitos deixam seus postos e vão direto para a destilaria, que trabalha com matéria-prima colhida na nuvem Sagittarius B2 – aquela com cheiro de rum e sabor de framboesa. Ali servem um dos melhores mojitos do universo conhecido.  

Basta atravessar alguns metros de corredores, em esteiras rolantes, e tudo parecerá festa permanente: casais de mãos dadas, brigas e bebedeiras, casas de shows iluminadas, bares temáticos e cassinos em que nada se perde e nada se ganha. Estão cheios de gente e de apostas imaginárias.  Nesse cenário, passageiros e funcionários enchem as ruas, falam alto e riem por qualquer coisinha.  

A tentativa é reconstruir uma pequena cidade terrena, com suas atrações e desejos, a não sei quantos milhões de anos luz, em que o tempo deixou um tanto de importar e as pessoas cumprem seus papéis num eterno agora ou quase isso.  Mas basta olhar pelas raras janelas para a ver a leve mudança da paisagem, ou pelo menos um pequeno cometa cruzando a estibordo, de vez em quando Acontece quando a nave reduz sua velocidade, em oásis no meio do nada, e então é possível ter ideia do lado de fora. A regra é a nave deslizar no espaço a quase 299 792 458 metros por segundo.

Os personagens passam por todos os processos de uma viagem demorada. Dormem em casulos e acordam noventa anos depois – como nos filmes -, enjoam em nebulosas turbulentas, mas a missão tem o objetivo principal de promover a diversão e eliminar o tédio nesse passeio praticamente sem fim. Muito tempo fora de casa. Quando voltarem – se voltarem – encontrarão seus trinetos em clínicas geriátricas. Enquanto o tempo a bordo de arrasta devagar, conforme prevê a física, a base terrestre envelhece e muda, ou talvez deixe de existir entre a partida e eventual chegada. Pensar nisso entristece tripulantes e passageiros e só a balada permanente garante a paz de espírito.

Caso o som fosse ouvido no vácuo – e tivesse alguém para ouvi-lo – o bate-estaca das boates, os churrascos e pagodes competiriam com os motores de antimatéria da animada espaçonave turística. Eis a narrativa do cosmo: balas aceleradas de silício lá fora, e cá, entre as paredes titânicas, um ambiente urbano, com direito ao ócio – redes e cadeiras de cruzeiro marítimo - e esplendidamente posto a serviço lazer, com pornografia para todos, traficantes de drogas recém-descobertas, sons imitando buzinas de cidades deixadas no chamado grupo local - endereço da remota Via Láctea. Tudo perfeito para a dissipação, enquanto não vem novo sono entre colunas reforçadas e vidros a prova de saídas precoces. Uma nau estelar urbana, em que jovens centenários circulam com garrafas de Bourbon, roupinhas curtas e provocantes, e a necessária alegria estampada na cara porque não haveria outro jeito de resistir à aparente eternidade da situação.