sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Baseado em fatos que serão reais



Como não há mais empregos, Heleno resolveu inscrever-se num curso rápido e grátis sobre esmolas. Não queria sair por ai, sem conhecimento do mercado, sob o risco de voltar para casa de cuia vazia. Quando era um profissional bem-sucedido sabia o que fazer, mas agora, em um novo desafio, precisava de ferramentas adequadas e pegada vendedora para angariar algumas moedas no restrito ambiente da compaixão. Em suas primeiras lições teóricas, aprendeu que o apelo religioso é o mais eficiente, conforme já disse São Leão Magno - “A mão do pobre é o banco de Deus” - e conforme está escrito no Livro dos Provérbios: “Quem se apieda do pobre, empresta ao Senhor, que lhe restituirá o benefício”. Heleno é ateu. No entanto, notou nessa abordagem um processo de troca adequado, em que mãos invisíveis abastadas pelo capital acumulado poderiam investir uns trocados no item salvação.

Como não há mais empregos, a estudante de Letras Maria Alice resolveu vender sua alma ao diabo. Pegou-se à tragédia de Fausto em busca de algum dinheiro, mas logo descobriu que metáforas não geram renda. O comprador nunca apareceu.

Como não há mais empregos, a publicitária Patrícia Caldeira aceitou vender o próprio corpo. Começou por um rim.

Como não há mais empregos, o velho Giba foi buscar a sobrevivência no mundo do crime, que às vezes compensa, às vezes não, igual a tudo na vida. Escolheu o tráfico de drogas por conhecer bem a mercadoria como consumidor diário e jogou-se no empreendimento de uma pequena boca de fumo. Teve, no entanto, todos aqueles dilemas morais de crime e castigo, mas o momento é outro, pensou, e seguiu em frente. Tratou a consciência à base do seguinte raciocínio: sua atividade era mais uma na informalidade geral e o aspecto produto x legislação não existia mais. Não há polícia, não há sanção, não há crime. E não há perigo. A única lei vigente é a da oferta e da procura. Para ele, a desvantagem foi a perda dos amigos, mesmo aqueles que se tornaram seus clientes. “Sempre me tratam com olhar superior, como seu eu tivesse fazendo uma coisa errada”, lamenta-se o velho Giba. Boa gente, Giba, mas o preconceito ainda é grande.



quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Depoimentos falsos


Quer se matar, se mate, mas já pensou se você se mata e acorda num lugar que nem tem remédio pra dormir?  Pense nisso e você vai querer se matar de novo quando chegar lá. Morre e dá de cara com outro lugar pior e assim por diante. Veja, por exemplo: você deve duzentos mil, não tem como pagar e por isso quer fugir dos credores de uma forma que considera eficiente e definitiva. Toma a cartela de remédios ou pula do prédio, sonhando com o nada, o fim da encheção de saco deste mundo, e cai em outro onde deve quatrocentos, com cobradores ainda mais ferozes e decididos. Como já se matou uma vez, fica mais fácil e imagina que a solução será morrer novamente. Morre e a dívida vai aumentando. À medida que mais se mata, mas a dívida cresce. (João Coelho, conselheiro de investimentos).

João Saraiva já estava cansado de escrever histórias que ninguém lia. A desgraça de sempre, fome e falta de rumo, além de elementos químicos gosmentos que ele enfiava no enredo para dar um toque de ficção científica.  A mistura não funcionava direito porque os desvalidos de seus contos eram os mesmos que já estavam lá foram e o leitor não queria tanta falta de esperança, chega, bastam as reportagens, cujos assuntos em pauta naqueles dias eram o fim dos sistemas de energia elétrica e comunicação. Ainda havia luz e internet, mas não iria demorar para cair tudo. João Saraiva tinha prevenido. Só que a crítica não soube; ninguém soube. Agora precisava de um veio novo, menos niilista, coisa difícil de fazer por falta de verossimilhança com a situação vigente. (João Saraiva, por ele mesmo).

A encomenda é sobre uma estação espacial prestes a cair na Terra. Só que não há mais foguetes para buscar os tripulantes por causa de uma gigantesca crise econômica global. A bordo, russos, norte-americanos e chineses discutem a respeito de quase tudo, com destaque para geopolítica, sexo e morte. Pensei em colocar um canadense para tentar convencer os demais a encontrar uma forma de voltar para casa a partir dos próprios recursos da estação. Pelo menos nessa parte, cópia deslavada de ”O Voo da Fênix” (1965), de Robert Aldrich, cujo elenco conta com James Stewart e, claro, Ernest Borgnine, ator de dez entre dez filmes desse tipo naquela época. A diferença é que o espaço substitui o Saara e a M17 – ou qualquer coisa por aí - substitui o velho Fairchild C-82A Packet. Primeira ideia: para não ficar igual ao filme de Aldrich, o tripulante canadense não consegue convencer os demais e eles morrem ao reentrar na atmosfera. Categoria: ação e fracasso. (Pedro, roteirista)

Eu só queria uma lata bem equipada, com dechavador, sedas de variadas procedências, um palito daqueles de manicure (para pilar, ou apilar, como se dizia antigamente); o certo é que comecei a discutir seriamente comigo mesma as diferenças entre antes e agora. As coisas que se foram - a lata, por exemplo - e a esbravejante incerteza de todos os lados dos dias de hoje; ninguém se entende nem se cala no seu canto, com sua lata, como eu fazia há muito tempo quando tive o prazer de possuir uma lata com todos os utensílios necessários. Eu estava entre as pessoas que queriam mudar o mundo, contando que me deixassem quietinha, num cantinho.  Assim passei a minha juventude, apesar de tudo, muito boa.  Hoje, sou uma velha perplexa com medo de ser mal interpretada, mas ainda mais assustada com o que estou vendo.  Tenho receio de escrever essas coisas, embora o mais provável seja que ninguém leia. Mesmo assim, fique claro que não estou falando de um caso ou outro, desta ou daquela situação em particular; é mais ou menos sobre tudo.  Bom. Acabei de fumar um e estou com tendência a tornar as coisas muito amplas. (Lúcia, funcionária pública). 

Estou de banho tomado e quase quite com o Senhor.  Sei que estou pagando, já dei tudo que tenho e ainda devo mais, pois cometi todas as barbaridades, pior que o Senhor no Evangelho Segundo Lucas, ordenando a matança, embora com razão, levando em conta que as vontades de Deus são insondáveis. Vontade, não, princípio, meio e fim de tudo, pois é Aquele que reina no cheio e no vazio. O pior que usei do Senhor a norma seguinte: como de trata de Alguém cujo propósito desconhecemos, como saber se o que estou fazendo e acontecendo vai ou não de encontro a esses propósitos? Um meio de se livrar de uma acusação questionando a essência do projeto. Não deu certo. O pastor me esclareceu tudo e houve uma solução conciliadora, aceita pelas partes: o perdão. Não é um caminho curto. Por isso estou aqui, catando caquinhos no lixo, à espera da hora do culto. (Reginaldo, morador de rua, evangélico).    


terça-feira, 3 de outubro de 2017

A consultoria



Tudo andava muito provisório até que consegui uma vaga numa empresa realmente ducaralho. Lá, ninguém trabalhava. Cumpríamos o expediente, mas não havia o que fazer em termos práticos, embora os computadores estivessem dispostos em mesas impecáveis, com retratos da família e um buraco redondo para colocar o copo.  O dia transcorria animado à base de caipirinhas e outros drinques e conversávamos sobre nosso passado em redações de jornais e agências de publicidade. Vez por outra, o dono da empresa, um jovem elegante e gentil, chegava para perguntar como iam as coisas.  Tudo OK, nós dizíamos, enquanto uns dormiam na sala de jogos ou namoravam na antessala do banheiro.  Salário sempre em dia, seguro de saúde, carteira assinada.

Alguma coisa deveria estar errada e tal conversa às vezes rolava no corredor. Pensamos em lavagem de dinheiro. Nesse ponto, as opiniões se dividiam. Por que uma empresa de fachada seria tão bem equipada e tão dedicada em suas relações trabalhistas? Alguns colegas, no entanto, achavam simplesmente que se tratava de um caso de beneficência ou algo parecido, talvez uma promessa, pois o patrão deveria ter outros negócios capazes de sustentar nosso luxo. Poderia ser uma pesquisa sobre o mundo do trabalho – no caso, sem trabalho – ou até um reality show. Fosse como fosse, assinávamos o ponto, a documentação estava em dia e eu achava que merecia essa deferência depois de tantos anos penando na imprensa.

A empresa era uma consultoria, mas nunca não éramos consultados. Podíamos ser, mas de uma forma tão sutil que nem percebíamos. Uma consultoria com escopo vago, genérico, baseado em soluções para problemas de clientes que não existiam. Ali só recebíamos visitas de amigos, em ocasiões festivas e frequentes, e não raro esquecíamo-nos do término do expediente, levando a farra até a madrugada. Pedíamos comidas e bebidas pela internet e, no dia seguinte, não havia sequer um farelo de pizza no chão. Tudo limpo e lustroso.

- Vocês fazem consultoria de quê? – perguntavam os convidados nessas happy hours expandidas -. Disfarçávamos bem, respondendo que, cada caso era um caso, dependia do imponderável, enfim, situações não contempladas por outras empresas do gênero, ressaltando logo em seguida as ótimas condições de trabalho, o clima de liberdade e camaradagem entre os funcionários - ingredientes essenciais para uma boa consultoria.
Eu aproveitava o tempo sempre livre para ler romances do século XIX na biblioteca do segundo andar, jogar paciência e ouvir música deitado numa rede com vista para a avenida principal, onde homens e mulheres andavam apressados no horário do almoço. Uma colega escrevia um blog de cultura, alguns se penduravam no telefone e também promovíamos campeonatos de games da FIFA. Não faltavam os jornais do dia, revistas de fofocas e balas de vários sabores. Os mais novos e esportivos faziam musculação. Alguns passavam o dia fumando maconha e vendo seriados na TV a cabo.

Durou quase dois anos até o patrão aparecer com uma má notícia: a empresa iria fechar por conta da crise dos mercados e das altas taxas de juros. Enquanto ele falava, um homem mais velho, que parecia seu pai, estava de pé, junto à porta, esperando que o jovem empresário terminasse seu pequeno discurso de despedida. Ao final dos agradecimentos por nossa colaboração e empenho, o patrão foi embora.  Uma semana depois, soubemos que estava internado numa clínica psiquiátrica.


Um cara legal. Nunca tinha visto ninguém assim na iniciativa privada.