terça-feira, 14 de junho de 2016

Personagens desnecessários XIX



1. 

Olhava para o teto, refletindo sobre o tema vago daquele dia: a vida desprovida de alma, apenas uma existência que começa e finda e cai no esquecimento. Tinha hábitos teatrais muito bem dosados, gestos combinados com palavras, além de citações adequadas ao contexto. Um sucesso. Na sala, alunos se inebriavam com o discurso cheio de citações bem postas, e postas de maneira natural, sem pedantismo aparente, ao passo em que elucidava, ou quase, por que não somos quase nada num universo tão vasto e porque, mesmo assim, valia a pena viver. O pessimismo otimista do professor carregava certa animação; sorvia cada frase como um sorvete. O nada enchia seu vácuo interior como se algo fosse, ou fosse um gás intelectual capaz de chamar a atenção de uma garota bonita e inquieta, de óculos, figurino perfeito para a personagem desejada por ela, provavelmente candidata à cátedra ou a coisa muito maior.

Como num filme, soava a campainha e ele se recompunha, fechando um livro ou uma mão contra outra, suspirando, cheio de energia para a próxima aula. Em casa escrevia seus pensamentos superiores com calma e vinho. Religião era um tema sempre presente em suas reflexões por ser melhor do que o ateísmo em termos de literatura, nada além disso, obviamente. As melhores citações vêm dos deuses e de seus desejos, pois o professor identifica o desejo como principal característica dos deuses, inclusive do nosso Todo Poderoso monoteísta, Ele, como escrevem, em caixa alta. Além do mais, as religiões sempre têm rios a atravessar, como o Jordão e seus afluentes, irrigando uma planície de trigo, uvas e azeitonas, e depois os mares, mortos e vivos ao mesmo tempo, como o gato de Schrödinger. Enfim, o professor era dado a ruminações, às vezes confusas, mas ele dava um jeito de levá-las à sala de aula de modo organizado. Curto e grosso, como sempre dizia a menina, sentada na primeira fileira, saia curta, igual a filme pornô, embora sempre fizesse perguntas muito pertinentes – algumas até melhores do que as respostas.

Segundo período de Filosofia.  Era professor mais cobiçado, por sapiência e marketing, tanto faz. Todos queriam aulas daquele homem de livros publicados e canal no Youtube. A moça, de 24 anos, sentia-se uma sumidade. Escolheu o professor por seu niilismo charmoso, roupas casuais até demais, e uma enorme capacidade de convencimento. Quase uma técnica. Suas frases saíam em forma de ondas; só que ondas imprevisíveis, cheias de reviravoltas, inclusive no campo moral, em que determinados comportamentos eticamente aceitos, pareciam coisas abomináveis ao professor. Ou o contrário: práticas condenadas pelos departamentos jurídico e religioso, na verdade deveriam estar abertas, sem preconceitos, como a questão das drogas. Vale ressaltar que o professor não era um usuário e só às vezes, em festas da universidade, dava umas tapinhas numa inocente maconha. Só para ser coerente com suas ideias e, claro, para não quebrar aquele círculo tão naturalmente construído. Indo nesse caminho, e até falando um pouco de suas próprias elucubrações, ele conseguia satisfazer todo mundo sem precisar dar um fecho na história; deixava no ar para amadurecer naquelas cabeças juvenis e levemente histéricas. Ela, no entanto, estava mais atraída pela possibilidade de confrontar o professor, jogá-lo no canto da parede, sem chances.

Não rolou. O professor escapava de todas, com requinte, consciente da armadilha, mas fazendo que não. A coisa terminou virando um jogo apreciado por ambos e pelos colegas da classe. Uma encenação sempre esperada, em que ela perdia com prazer, extasiada diante do professor, mas sempre esperançosa de pegá-lo de algum jeito. O jeito foi partir para a ignorância e seduzi-lo. Há todo um jogo, cujos transcorrer e regras são demasiados longos para o espaço disponível. São também difíceis de descrever. Ficam para depois.

Seguro de si, ou jeito de seguro de si, o professor entrou na sala de aula para mais observações sobre o absurdo da existência, embora detestasse o existencialismo. Ele achava que havia criado uma doutrina própria, mas não tinha certeza, poderia ser retalhos de outros autores, pois nas ciências humanas não há aceleradores de partículas para detectar os modos de encarar a existência. Tinha algumas restrições, como não transar com alunas, e a moça de óculos havia chamado sua atenção. Especialmente a calcinha branca. Ele maldisse tais pensamentos, tão animalescos, e começou a falar para sua turma. 
 
Nesse dia realmente atrapalhou-se. Não no conteúdo. Na forma. Enquanto dissecava com toda vontade de potência que as leituras de Nietzsche lhes deram, não parava de olhar para a calcinha preta, desta vez exposta de forma mais expressiva.  A cena foi percebida por todos, entre o espanto e o voyeurismo, numa situação da qual o professor safou-se ao dizer que o comportamento humano está sujeito a condições bizarras, como a que se passou, e prometeu que na próxima aula trataria do assunto de maneira mais ampla.
Só que a menina esperou por ele, lá fora, encostada no carro como uma pinup num car wash, acenando com mãozinhas falsamente inocentes, acenando e dando saltinhos, como uma cheerleader, mas num estilo a fazê-lo entender que tal performance era caricatura, uma encenação jocosa num final de tarde.  Talvez dessem uma volta por aí, e talvez discutissem mesmo a sério e, depois disso, espontaneamente, ocorresse o inevitável. Assim ocorreu.

O professor estava encurralado em seu próprio desejo; um desejo de deuses, poderia pensar, mas não era isso que pensava quando entrava na sala. Pensava num fraquejo teórico, numa queda ética. Mesmo porque a tentação era diária. Ela sempre na frente, do mesmo jeito, tentando massacrá-lo em público, citando frases de alcova, e respectivos pensadores, e transformando estas em contradições para acertá-lo. O que ela queria dizer: você é uma fraude e por isso aconteceu. Você foi desmascarado na essência, pois tudo que pensava deixou de existir; a potência deixou de existir. Ela pensou em tudo isso, mas não disse nada. Apenas deixou que ocorresse mais vezes, enquanto ele mergulhava no desconforto de sentir-se canalha.

O desejo era maior e mais amplo. O desejo teria que ser expulso, por causa de suas consequências morais e filosóficas, muitas vezes nefastas. Mas não havia jeito. O sol filtrado da janela da sala batendo em sua camiseta fininha, formando tiras - com luz, sem luz, a beleza quando jovem, e a reunião dessas cenas não lhe soavam bem, tinha cara de romance barato, tinha o realce da canalhice, e poderia ocupar parte de sua mente, talvez até afastando pensamentos mais densos de sua área primordial. O desejo, no entanto, não se apegava a detalhes. 

2.

O velho é daqueles que descobrem uma novidade com anos de atraso e sai com essa novidade adiante, convicto, tentando provar que, descoberta por ele, a história, embora conhecida de todos, ganha o direito de repetir-se, numa segunda versão mais aprimorada. Mais ou menos assim: foi descoberta por pessoas que não souberam interpretá-las. Agora eu estou aqui para esclarecer e iluminar.

Podemos até supor que é ensimesmamento em estado bruto, a certeza de quem já passou por tudo, mas no fundo um orgulho sempre ferido, disfarçado de altivez. Talvez, não. Ele procura apenas justificar sua defasagem, tentando consertar a situação para não parecer atrasado e velho. O certo é que dá opinião sobre tudo, falada e por escrito, pois tem a ânsia de estar por dentro e gosta de plateia, mesmo as condescendentes. Mas acho que seu maior prazer, infinitesimal para os jovens, é sentar-se sozinho e escutar uns boleros do seu tempo.

3.

Meu trabalho é manejar a opinião pública. Com minha expertise, posso fazê-la pender para um lado ou outro, ao gosto do freguês, e ainda dou garantias de até um mês, quando não se não falará em outra coisa, a não ser sobre você, ou não se dirá nada, caso seja o caso.

4.

Nessas horas, sempre eu me fodo, pois acredito, vou em frente, mas ninguém me segue, e termino aguentando as consequências sozinho. Tudo combinado. É amanhã, às 8 horas, e lá estou com o equipamento, tudo em cima, e nada dos meus amigos. Volto para casa, penso naquilo um pouco, e mais tarde estarei pronto para o que der e vier.