quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Colagens para um roteiro





E se a gente juntasse mãe e filha com um coroa legal? Ele e a menina estão apaixonados, mas sua conversa é com a mãe, de sua geração, e para transformar isso num grande inferno romântico, acrescente-se que a mais velha nutre dois sentimentos: acha a relação de sua filha absurda e também está a fim do cara.

Já existe, eu sei. Lolita, Nabokov. Mas é apenas o começo. Depois, a mãe descobre que tem câncer e, a partir daí, o homem passa a rever sua relação com a ninfeta e a pensar seriamente em mudar as coisas: trocar a filha pela mãe.

Outra que existe. Tudo bem, mas não misturada com o primeiro parágrafo. Muito menos com o que vem a seguir:

Então, a mãe curada toma uma decisão para dar uma quebrada na história: resolve aproveitar a vida e cai no mundo, longe da filha e do futuro amante. Deixa para trás um casal meio entediado, sua filha e o coroa, e parte numa viagem de autoconhecimento à Índia. Volta para abrir um restaurante de cozinha da Manchúria, mas por uma razão ainda não pensada, termina se envolvendo com um vereador viciado em drogas e ela própria passa a consumir todo o cardápio da loucura. Assim, bem dramático. Dá para tirar a Índia e ir direto para as drogas? Dá. Fica menos parecido com as novelas orientais da Globo e sai mais barato.  

Tem que chamar gente boa para os diálogos e dar forma à ideia. O final pode ser numa clinica de recuperação de viciados. O casal – o coroa e a ex-ninfeta - vai visitar a mãe-sogra e aí rola um texto emocionante (pensar nisso) e depois a gente resolve se vai ter final feliz ou não.  

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Drogas da nossa infância




Passamos a infância sob pesado bombardeio químico. A arma mais pesada era o Detefon, para matar piolhos, aplicado diretamente no couro cabeludo. A cabeça era coberta por um pano e sentíamos os bichinhos morrerem sufocados pelo veneno. Ficávamos um pouco tontos, mas passava logo. Havia os enlatados, comidos por instrução da revista Bom Apetite; e nossa casa tinha coisas de amianto, espiral Sentinela, BHC para o jardim e remédios hoje proibidos no mundo inteiro. Nas revistas, médicos apareciam em anúncios de cigarro, recomendando o produto.  Não sei como sobrevivemos.

Previsões erradas sobre o passado

O mundo não acabou em 2012, como estava previsto no calendário Maia, mas as TVs a cabo continuam transmitindo programas com cenários do fim do mundo, numa espécie de previsão do passado. Mas há novidades Agora o Armageddon será em 2015 ou 2060. O canal History, por exemplo, mostra programas atrasados, com o apocalipse vencido e anuncia turbulências tectônicas e estelares para a próxima década.  Em outro, enfim, alguém para dizer que o mundo só se acabará daqui a bilhões de anos, quando esse troço (mundo), talvez já não tenha tanto significado.

Funcionalismo

Quem manda viver de prosa? Para escalar a montanha, rumo a um não sei quê, o sujeito sacrifica sua profissão formal ou arranja emprego público, desses em que não exigem tanta assiduidade. No final das contas, sai como uma espécie de incentivo. Machado de Assis não existiria sem o serviço público.

O livro, a peça, o filme ou nada disso

A mulher acaba de ter um orgasmo com um urro. Está sozinha, diante do computador, cuja imagem fica mais nítida quando o palco é iluminado. Logo se vê a bagunça da cena: no chão, caixas de pizza, livros, vibradores e garrafas de vodka – a maior parte vazia – e bagas de baseados. Não tem tom de comédia nem de tragédia. A partir daí, ela começa a contar e a exercer sua existência real e virtual, enquanto tropeça em coisas, bêbada, ou colhe moedas em todos os lugares para dar uma saidinha, entre o primeiro e o segundo ato. A peça, com início mais ou menos assim - ou inteiramente diferente -, é baseada no livro “Todo dia me atiro do térreo”. Conversas em andamento. Se não der, vira um curta ou fica do jeito que está. Nem o cinema nem o teatro vão perder muita coisa. De qualquer forma, “Todo dia...” estará em versão digital, a partir do dia 10 de fevereiro, em lugares como a Amazon, Travessa etc. E o romance “Iberê” já está nas mãos de editores, na fila. Sai neste ano, de um jeito ou de outro.
   
Autopromoção

Sugestão: escritores deveriam usar as redes sociais para escrever colunas sobre seus próprios livros e os dos amigos. Existem poucos cadernos de literatura no País e contratar uma assessoria de imprensa está fora de questão.







segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Férias


O marasmo dessa praia não me deixa voltar. Parei aqui por uns dias, férias. As férias passaram e permaneci sem dar satisfação. Desligado de tudo. Nenhum contato com o mundo, só com o mar. Vou assim até quando der.

Ela ficou lá. Não gosta de férias. Gosta de cinema e restaurante. Há cinco anos é do mesmo jeito e termino voltando, mas desta vez é pra sempre, como em todas as outras. Só sei que agora, neste exatíssimo momento, minha vontade é ficar.

Quero distância daquilo tudo e também dela, por enquanto, eu acho, não sei. Mas fico. Aqui não há fracasso ou sucesso, não existe essa aporrinhação. As pessoas vão levando e é mais ou menos só isso. Tenho água, um cachorro e dois livros.

Darei um tempo ou ficarei para sempre. Depende da meteorologia – a travessia do período das chuvas – e de uma ordem superior e definitiva. Se ela disser venha, eu vou pensar. Até agora, nada. 

sábado, 26 de janeiro de 2013

Sozinhos, mal-acompanhados




- Sou condescendente comigo. Aceito numa boa, tudo, não reclamo de mim. Quando faço uma besteira, penso: “não é nada”, “deixa pra próxima”, “amanhã a gente resolve”.  A culpa é dos outros, assim como a responsabilidade e o problema. Abstenho-me, tiro o corpo fora e adio compromissos. Tudo é possível: voltar atrás, mudar de ideia e fugir de encargos. Concedo-me não dar satisfações. Sozinho, me basto; e se tenho dúvidas, esqueço. Com meus botões, sonho em mudar, mas não mexo um dedo. Sempre me perdoo e vez por outra até admiro minha figura, no espelho, mesmo sem motivo.


- Não. Eu só consigo viver em bando. O tormento de estar só é enorme. Não vejo graça em mim, fico cansado da minha imagem apagada; só acendo na multidão. À noite, no quarto, procuro pensar em outros e não raro finjo que sou determinada pessoa e ensaio pensar como ela pensa. Quando caio em mim, fujo. Menosprezo-me e aniquilo-me. Leio livros e bebo para esquecer-me de mim. 

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Juventude repetida como farsa



Tenho a impressão de já ter escrito isso, no ano passado ou retrasado, porque antes só havia jornais e livros, mas agora há uma infinidade de cantos para postar as coisas e sem uma lista organizada de textos, mesmo precária, não há como lembrar-se de tudo. Encontrei estes pedaços abaixo num arquivo velho e fico sem saber se publiquei ou não e depois de explicação tão longa, talvez desnecessária, vale acrescentar que estou mexendo em um escrito sobre um homem que vem com aquela conversa sem fim sobre a falta de sentido dos dias hoje, carregada com nostalgias variadas, um desconforto danado com o fato de estar vivo aqui e agora, nesta época tão fria e indiferente. Sempre o mesmo discurso na mesma mesa de vinte anos atrás, mas a decoração do bar mudou para pior; o mundo está a um passo do fim, estamos num beco sem saída, num mato sem cachorro, numa sinuca de bico. As pessoas à sua volta apenas acenam com a cabeça, concordando, e ele segue adiante. Ele não para (e reclama da reforma ortográfica, pois “para” deveria continuar com acento, mas isso é um detalhe diante da crise global e da solidão).
Sua homilia cética não é nova. Basta pegar algumas crônicas de gente mais velha ou defunta para descobrir um intenso repertório de desilusões. Os velhos homens dos jornais e o homem desta história só têm o passado para atirar contra o mal-estar da civilização e a impossibilidade de ser feliz sozinho (ou acompanhado), como disseram tantos antes dele, sempre na linha “no meu tempo era melhor”.

O passado é cômodo porque já passou, mas para ele continua valendo - lembranças no lugar de qualquer movimento brusco neste planeta em vias de extinção. Alguém lembra que sempre foi assim. Os mais bem velhos também costumam choramingar por um mundo que não existe mais. Talvez porque a aposentadoria seja uma chatice ou ele não saiba como ligar o computador. Talvez um bocado de coisas, responde o homem, mas insistindo na tese: 2013 é diferente de todos os anos já transcorridos desde o primeiro momento da humanidade sobre Terra.

Falta explicar a razão de tanto pessimismo, insisto com o homem, especialmente porque o ano mal começou, e ele olha para o alto, cofia lentamente a barba e desce a cabeça com uma resposta: nada mais é surpreendente ou novidade. Tudo é possível para uns e inteiramente e vetado para outros – os iniciados na velhice, a maldita meia idade. Acabou a graça. Mesmo em relação às mulheres, o maior espetáculo da existência, há uma perda de substância, certa frieza, parecendo que ninguém gosta mais de sexo. As mulheres de sua idade, por exemplo, desistiram. Resta olhar os jovens numa diversão muito organizada, sempre com patrocínio e possibilidade de lucro financeiro, quando em sua época pairavam no ar doces mistérios de todas as forças, desejo e emoção misturados. Enfim, ele percebe que o problema está na falta condições, físicas e mentais, para entrar num jogo que não é mais seu e, mesmo assim, fantasia repetir tudo, com uma gata de 25 anos de corpo dourado, quando o bronzeado era moda; hoje não é mais. Ao cair em si, a barra torna-se ainda mais pesada na cabeça deste personagem muito comum em cidades com praia, embora em São Paulo existam muitos da mesma espécie. A hora do semancol é trágica para o homem que vive de nostalgia, mas sonha em reeditá-la, hoje, como se tivesse vinte e poucos anos.

Finalmente, o quarentão se toca e entra em questões da pior espécie, como a senilidade e a morte, descarregando sua literatura sobre assuntos cruciais, mas de repente sente uma moça de 25 anos, muito interessante e interessada, tal e qual acontecia antigamente, quando ele se metia em histórias assim, entre meninas que gostam de rapazes inteligentes e sensíveis, e ele era e é assim. Então a moça ficou perto (bonita), prestando mais atenção, coladinha nele, e vez por outra dava aquela alisada relutante nas costas do homem, descendo e subindo a mão, como se pensasse “Vou ou não vou?”.
É nesse ponto que o sujeito erra. O homem muda de discurso, entra na poesia, bebe um pouco mais, alegra-se; a felicidade existe. Começa a agarrar a gata e ela vai em frente, mas depois de alguns minutos ele se torna meloso, cai no samba canção, elogia demais a menina, no ouvido dela, e diz coisinhas antiquadas, fica ansioso e confuso, sem saber o que fazer, porque ela obviamente não é para seu bico. Seria o caso de um recuo? Aí ela escapa, ele pensa, e resolve manter a mesma estratégia, pois já está tomado pelo desejo ao ver as pernas da moça e olhar seu rosto tão tentador e saudável. Ninguém é besta neste mundo, inclusive a moça, e ela dá aquela jogada de corpo, afastando o ombro e em seguida está mais distante e logo muda de cadeira e não corre dois minutos e está em outra mesa, com seus amigos da mesma idade, dando risadinhas, contando a história pela qual passou com aquele coroa ali atrás.

Depois dessa lenga-lenga existencial, seguida de fiasco, era de esperar o homem afundado ainda mais em seus dissabores e impossibilidades, concluindo pelo absurdo de uma juventude repetida como farsa, e da vida em si, depois de determinada idade, quando se perde a capacidade de ser hoje o que se foi antes. Não. O homem sai satisfeito, aquele ombro encostado já valera a pena e a atenção recebida trouxe certa alegria inexplicável pelo curto momento com a menina de 25 anos, que já não ri na outra mesa, se encontra pensativa.  Na hora de ir embora, ele aproxima-se para despedir-se dela, de maneira formal, e ao se afastar alguns passos, ouve uma voz lá atrás; era ela, dizendo, “não vá”.

Ele fez um nãozinho, assim, apertando os olhos e balançando a cabeça. Tinha medo de estragar uma noite tão boa. Voltaria amanhã para as reclamações de sempre.







terça-feira, 22 de janeiro de 2013

1979 - trecho


Jade

Uma cançãozinha sobre o mar animava corações em chamas numa madrugada de 1979, ano distante, século passado, quando todos se reuniam para suspirar e ver o por do sol. No violão, Ataíde. Não era um bom nome para representar aquela fase muito boa das nossas vidas no pedaço mais especial do litoral brasileiro (pelo menos pra gente).  A emoção nos inebriava o dia inteiro e, à noite, qualquer coisa era motivo de intensa contemplação: estrelas, as ondas, um avião da Varig se preparando para pousar lá adiante. Havia uma frenética confusão de casais porque, entre outras coisas, parecia um desperdício levar uma vida apenas a dois. Daí a turma, a tentativa de se unir ao universo e o gosto por músicas sobre a natureza; daí uma sensação de que aquilo não acabaria nunca mais.

Quando acabou, muito rápido, começo dos 80’, encontrei Ataíde numa mesa de bilhar em São Paulo. Jogamos muito mal e bebemos muito bem e na hora em que os bares fecharam fomos para meu apartamento conversar sobre aquela época. Eu disse a Ataíde que ele era a minha imagem dos anos 70, depois de Jade, a carioca. Disse também a Ataíde que seu nome não combinava com nosso jeito de viver, mas sua música era o retrato da geração etc, enfim, uma conversa de bêbados, porque não gosto mais das músicas de Ataíde. No dia seguinte lembrei-me de tudo e só tinha me esquecido de pegar o telefone dele, pois um velho conhecido sempre é um alento numa cidade desconhecida. Então passei mais três anos até reencontrar o amigo, desta vez numa campanha eleitoral, no interior do Estado, só que ele trabalhava para um candidato e eu para o outro. Um encontro naquelas condições seria impossível porque o meu chefe, o marqueteiro, considerava a eleição do deputado a prefeito uma questão de vida ou morte e para isso cercou-se de todos os cuidados e proibições para o pessoal da equipe, que não podia beber ou manter qualquer tipo de contato com o pessoal adversário.

Eu sabia, Ataíde sabia. Estávamos ali só para pegar a grana e passar uns meses gastando com namoradas, discos, livros e bebidas. Eu queria notícias de Jade, a carioca, porque enquanto Ataíde despachava seus hits na praia nordestina, fiquei inteiramente tomado pela visão de Jade e, nos dias seguintes, Jade apareceu e revelou, sem maiores preâmbulos, sua vontade de dar para mim. Aconteceu num clima em que até a exasperação era boa. Por não esperar nada do corpo – ela era tão interessante por outros motivos -, é que o corpo terminou sendo uma grande surpresa, um alumbramento, uma perfeição. Nunca se deixou prender por atrações alheias ao seu talhe anatômico, normalmente bem coberto, por aqueles vestidos até o calcanhar ou mesmo por causa do maiô, ainda usava maiô nos anos 70, mas Jade brilhava por razões mais rarefeitas. A risada, aquela coisa toda meio hippie ou o jeito de entender e responder às grandes questões como se fossem banalidades, talvez fizessem dela uma raridade entre as da mesma espécie. Mas o corpo foi um susto, uma enorme emoção em todos os sentidos, a imaginar que além de tudo havia aquilo, e sentia que estava diante do maior evento visual da existência.  Hoje, bastava ser uma voz distante e já valia a pena, pois ela tinha algo de único, embora estivesse de corpo e alma nus naquele dia, como sempre estiveram, e só ali percebi.

Depois, ela sumiu, e sumimos todos, por uma série de circunstâncias, incluindo a necessidade de arrumar emprego. Minha ansiedade para conversar com Ataíde era mais por Jade e menos por rememorações da turma.




Na campanha, a disciplina militar do marqueteiro no campo de concentração da produtora de vídeo impedia qualquer aproximação com Ataíde, exceto por breves encontros, na Mesbla local, onde conversamos como espiões entre cabides, manequins e araras. Ninguém queria passar segredos de campanhas, eu mesmo só queria marcar um encontro com Ataíde, no dia seguinte à apuração das urnas, para obter pistas de Jade, a carioca.

Quando estava bêbado, naquele dia do bilhar, Ataíde contou que tinha notícias dela, mas eu não estava em condições de conduzir a entrevista, embora seja (ou “fosse”, não sei) jornalista. Ataíde também era jornalista, mas nunca esteve numa redação. Sempre viveu, depois daquele tempo na praia, como um infeliz assessor de imprensa, tentando levar a sério a missão empresarial do cliente e empenhado em passar aquilo para jornalistas bastante inamistosos. Ele era atendido às pressas, ao telefone, ou mandavam dizer que estavam em outra ligação. Um desses caras, editor de economia, passou quatro anos e seis meses numa ligação. Era o mínimo, em termos de humilhação. Durante um raro encontro com jornalistas de verdade, os de redações, o álcool bateu na sinceridade de um jovem repórter e ele olhou para Ataíde, imitando o Nelson Rodrigues, e mandou o meu amigo enfiar a empresa no cu. “Para de mandar releases, caralho; só tem pauta de merda”, observou o rapaz, num tom bem incisivo, apesar da bebedeira. Ai Ataíde saiu de fininho. Não era sua turma. Sua turma também não estava nas assessorias, ambientes bastante competitivos, cheios de segredos, mas carentes de afeto e direitos trabalhistas. Se não sair nada sobre o cliente, o cliente vai embora, teremos de reduzir os custos, e você vai junto porque atendia o cliente. Tem lógica. O chefe usava essa língua, além disso, se auto-intitulava nos cartões de visita como diretor-presidente. Diretor presidente de uma sala alugada no centro.

A campanha acabou e meu candidato perdeu. Daria minhas congratulações a Ataíde e assunto encerrado; iríamos a um papo mais sério. Só que encontrei um Ataíde vitorioso demais. Eu estava errado, Ataíde dava importância à campanha e até mostrou certo alinhamento ideológico com o candidato, cuja principal característica era não ter ideologia alguma. Pensei em dizer “congratulações” de novo, mas percebi que a questão era mais séria. Com ar superior, Ataíde abriu o jogo: iria ficar na cidade, montar sua própria produtora, a grana tinha sido boa. Deve ser igual no futebol; ganhou, recebe bicho, um extra, porque levei uma mixaria naquela campanha, suficiente para comprar um aparelho três-em-um* e guardar para dois meses de vida modesta, quase sem sair de casa.

Desse dia em diante passei mais um tempo sem notícias de Ataíde. A última é que tinha pegado a conta publicitária da Prefeitura e iria se casar, não sei com quem. A conversa sobre Jade, a carioca, seria mais uma vez adiada. Deixei pra lá, o calendário foi correndo, Ataíde caindo no esquecimento, aliás, só no meu esquecimento. Um dia, quando abri o jornal, estava lá a notícia sobre a prisão de Ataíde. Havia se metido numa licitação e ele mesmo tinha tratado de falsificar a documentação, de forma muito grosseira, por sinal, conforme mostrou a página de política. A conversa sobre Jade estava cada vez mais distante. Eu não iria visitar Ataíde na cadeia. Pensariam que tinha alguma coisa com aquilo, estive na mesma cidade etc. Mas a vontade de saber sobre Jade era grande. Era a única pessoa na qual eu pensava com freqüência e todos os pensamentos levavam a um mundo sem precedentes na minha história sem importância. Quer dizer: aqueles anos foram importantes (pelo menos pra gente).

Naquele tempo não havia Internet e sair por ai perguntando “conhece Jade?” seria uma busca insana. Hoje bastaria colocar o nome dela no Google e apertar uma tecla, se é que ainda se apertam teclas. Mas isso é outra história. Iria esperar Ataíde sair da cadeia, desta vez com certeza mais humilde, para finalmente chegarmos a Jade. Nesse meio tempo fiquei imaginando mil possibilidades para Jade do presente. Poderia ter morrido, virado bandida, monja budista ou gorda. Tudo bem, gorda, se manteve aquele jeitinho brejeiro de olhar, tudo bem.

Como intenção aqui é de breve relato, uma vez que contos ou coisa parecida costumam se espichar, virar um projeto de romance e morrer de inanição mais na frente, encontrei com Ataíde uma semana depois do habeas-corpus. Ele estava abatido com o sumiço dos amigos e ficou emocionado comigo, o que sobrou, segundo ele. Eu queria falar de Jade, mas Ataíde parecia ter urgência em explicar porque foi preso, um mal entendido, na versão dele, pois se envolveu num procedimento corriqueiro nas repartições públicas e teve azar de ter sido denunciado pelo blog da política da cidade. Foi vingança, garantiu Ataíde. O dono do blog também participou da campanha e sonhava com a conta que ele terminou ganhando. Problemas municipais, enfim. Não estava muito preocupado com isso, estava preocupado em descobrir o paradeiro de Jade e não sabia direito o porquê dessa obsessão.


Eu tinha uma identificação forte com Ataíde, na verdade. Ambos fracassamos em termos do esperado pela família, ambos éramos promessas não cumpridas. Nos anos 70 apostavam muito na gente, o nosso povo da praia, peles muito bronzeadas e a gente falando difícil, eu e Ataíde, sobre a possibilidade de uma luta armada contra o governo, já em andamento e já em direção ao fracasso. Era um pensamento sincero e seria normal ter um retorno feminino. Uma situação justa: nós nos interessávamos por meninas que “estivessem por dentro”, informadas, e seria natural que elas também se interessassem por nós dois. Antigamente, as mulheres jovens se ligavam mais nessas histórias, política etc. Não sei, só acho, não sou mais jovem. Jade era assim, informada, mas suas intervenções eram naturais, normalmente com potencial de encerrar conversas, palavra final, e era a mais nova de todas. Nessas horas, fazíamos silêncio, depois de balançar a cabeça em concordância, e segurando exclamações diante de garota tão sábia e sem vaidades. Jade era uma propriedade coletiva da turma, um orgulho, fazíamos um esforço danado para não tratá-la sem muita deferência. Então foi uma surpresa quando ela disse que queria trepar comigo. 

Só fui ficando com essa imagem, o corpo e alma de Jade, conforme disse a Ataíde, quando o encontrei em sua fase pós-cadeia. A prisão de Ataíde era um enredo longo, cheio de espaços para reflexões sobre honra e ética, enquanto meu objetivo era conduzir a conversa para Jade e seu destino.

- Um homem preso – disse Ataíde – torna-me menos humano, perde as referências, o respeito, a auto-estima e outros predicados que hoje nos diferenciam. Estou abaixo de você em qualquer escala.

- Que é isso? – ponderei. Você não matou e se roubou é um caso ainda a ser esclarecido, prova disso é que soltaram você. Falta de substância no processo. Não é hora de sofrer. Um dia você vai provar sua inocência e se não provar a pena prescreve, o tempo vem por cima e termina o serviço. O negócio é não desanimar (preâmbulo para entrar no que interessa). Você devia seguir o exemplo do pai de Jade, a Jade, lembra dela? Falar nisso, onde anda a Jade?

- Sim. O que houve com o pai da Jade? (eu ainda não tinha ainda a história do pai da Jade, mas vamos lá).

- O pai da Jade – comecei – esteve preso por cinco anos sob acusação de assassinato. Durante esse período estudou Direito e partiu para provar que era inocente.  Provou, Ataíde.

Não sei por que ficava cheio de dedos na hora de perguntar sobre Jade. Daria até para abrir o jogo: é isso, Ataíde, eu ainda estou apaixonado por Jade e já se passaram quase 20 anos.

- Parece que o pai da Jade morreu, não sei, já era muito velho. Mas e a Jade, você tem notícias dela?

- Tenho, mas preferia não falar sobre isso.

_- Por que, Ataíde – perguntei, desconfiado.

 - Durante sua longa ausência – respondeu Ataíde, meio sei jeito – aconteceram muitas coisas. Não sei como se perde o contato com as pessoas como você perdeu, mas deixa pra lá. Olha, fui casado com Jade durante dez anos. Temos um filho, que está com ela, fora do País.

Eu esperava qualquer coisa, menos isso. Devia ter levado em conta a possibilidade. Foi o violão. Naquele tempo, tocar violão fazia diferença para as mulheres. Comecei a odiar Ataíde, mas queria o resto da conversa. Segurei o ódio. O mesmo ódio que gente sentia por alguns entrevistados, como o comandante do II Exército. Um homem pequeno e duro, insensível. Reagia às perguntas com um olhar ameaçador. Ataíde não era nada ameaçador. Não fez nada demais, destruiu meus sonhos sem querer, e eu não estava lá para evitar o casamento, me casar com Jade no lugar dele. Problema meu. Saí da parada, fui para São Paulo, não sei por que, mas gostei e estamos aqui, eu e Ataíde, até hoje, e naquele dia meu ódio era difícil de explicar, e ele não estava disposto a contar. Tinha que contar. Se foi assim, Ataíde, você vai ter que contar. Foi ai que ele abriu os braços, tomou ar e abriu o longo parágrafo que segue:


- Sente ai, vou contar. Quando você foi embora, Jade também sumiu por uns tempos. Um ano, mais ou menos. De repente todo mundo sumiu. Ninguém procurou ninguém. Houve uma dispersão a partir do nada. Estava certo que iria acabar. Eu mesmo não aguentava mais sair do trabalho, tomar um banho rápido e correr para o bar da praia, todo santo dia. Aguentar, eu aguentava. Eu achava ótimo aquilo, nossos amigos, mas comecei a ficar exausto, fisicamente. Porque tínhamos sexo quase a cada noite, de um jeito ou de outro, porque jogávamos emoção demais, mesmo num relacionamento de um dia; um dia parecia uma eternidade, as horas não passavam, e era bom assim. O dia não era devagar, era cheio, denso e consumia forças e saúde, e mesmo assim era longo e intenso. O dia aparentava durar mais por causa da energia contida nele; era tanta e ia sendo liberada em grandes quantidades, a cada minuto da vida. Maconha e ácido também ajudavam a tornar tudo mais extenso, com dois lados, misturados, realidade e fantasia. Mas chega uma hora em que não dá mais. Jade consumiu suas energias ali. Quando a encontrei por acaso, anos depois, ela não tinha mais aquela graça, a aura percebida por você e por todos. Era apenas uma mulher a procura de trabalho, tentando terminar um curso de Direito numa dessas faculdades de terceira linha. Mais tarde, ligou para mim, no meio de uma segunda-feira. Disse que estava em casa, sozinha, e chorava. Fui. Ela estava vivendo num lixo, o apartamento era um lixo, com roupas espalhadas no chão, sacos plásticos vazios por toda parte e uma pilha de pratos para lavar, alguns com matéria em decomposição. Um cenário bem diferente da nossa praia alegre. Jade estava num canto, continuava chorando, e pediu desculpa pela bagunça. Uma bagunça grande, por sinal, porque estava dentro e fora daquele apartamento e principalmente estava dentro dela.

Ataíde fez uma pausa e agora aproveito para mudar de parágrafo.

- Passei a freqüentar a casa de Jade. Arrumamos junta aquela bagunça e um dia tivemos relações sexuais no meio da sala, sem preliminares, como naquele filme do Michael Douglas. Eu estava só, ela estava só, e terminou em casamento. Juntamos as coisas e nos mudamos para meu apartamento, uma quitinete na Augusta. Mas o tempo destruiu meu interesse por ela, quando meu filho já tinha três anos. Ela foi embora. Depois, eu ainda pegava o menino nos fins de semana, em seguida a cada quinze dias e mais na frente, ela viajou. Viajou e casou com um norte-americano. Um completo careta, médico e republicano. Jade parecia não querer mais felicidade; queria segurança e proteção. O Brasil estava na merda e hordas de brasileiros partiram para os Estados Unidos atrás de uns trocados. Jade deu mais sorte. Conheceu o cara em São Paulo. Não sei como se deu esse cruzamento; bem provável que ela tenha se cansado da depressão. Queria conhecer o mundo de uma cidadezinha do Meio Oeste, cheia de fofoqueiros moralistas. Ao que tudo indica, Jade adaptou-se ao novo modo de vida. Morar com um médico tinha sua utilidade e ele era psiquiatra. O cara estava levando uma paciente para casa e não sabia.

Ataíde tornou-se ainda mais detalhistas e só assim eu soube que ele teve uma recaída e foi atrás dela, em Thompson City, causando um barraco histórico na cidadezinha. Voltou sozinho para as assessorias de imprensa. Nesse momento eu pensei: agora é a minha vez de ir a Thompson City. E fui.



Tompson City



Tompson City era – e talvez ainda seja - uma típica cidade norte-americana ao extremo. Tinha suas efemérides patrióticas e frisson generalizados no Dia de Ação de Graças e 14 de julho. Havia bailes de formatura e a ansiedade das adolescentes à espera de um convite masculino para o baile. Os homens eram rudes e usavam camisas quadriculadas. Todos se conheciam e cumprimentavam o xerife. Uma cidade saída dos livros das escolas de inglês, com famílias bem definidas, sem problemas aparentes, conversa rasa, um bar com sinuca, lavanderia e a igreja aos domingos.

O mais estranho é que se instalou ali uma comunidade de hippies tardios, na verdade doidões sem filosofia definida e vida errante, cuja parada em Thompson City talvez tenha sido resultado da dificuldade de seguir em frente por falta de combustível. Em Thompson, eles disseram chega, é aqui. Jade morava no lado burguês da pequena cidade, numa distância segura dos inconvenientes imigrantes, alguns deles de origem latina, peruanos e chilenos em sua maioria.  

Torrei parte do dinheiro da campanha para assumir as prestações com a passagem, tirar visto para os EUA – um suplício, pois não tinha emprego fixo – e roupas de frio. Desci em Nova York e segui para lá de carro alugado, com o endereço dado por Ataíde. Disse apenas que estava com a viagem programada e aproveitaria para rever a velha amiga. Ataíde pediu que levasse um presente para seu filho.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Estado grande e bundas enormes




Quem reclama do tamanho do Estado não precisa do Estado.  Fodam-se os outros. Tenho meu plano de saúde, escola particular, aposentadoria privada, participação nos lucros da empresa e outras inúmeras vantagens do capitalismo.  A pergunta é por que me escolheram? A alguns respondo que foi a vontade de Deus e caso encerrado. Outros, no entanto, exigem respostas mais terrenas e sociológicas. Digo: tive a sorte de nascer numa boa família, estudar em bons colégios e conhecer gente importante no empresariado, amigos do meu pai, cuja herança também ajuda nas despesas, que não são pequenas, especialmente por causa dos impostos. Existem também as pessoas que vieram do nada e, com muito trabalho, subiram na vida. A ambição as livrou do fracasso e da dependência do Estado paternalista.

Nesse aspecto, minha grande preocupação é o processo eleitoral, pois o dinheiro não dá para todo mundo e os recursos, como sabemos, são escassos. Não podemos distribuí-los de forma igualitária e quem não tem acesso a bens materiais termina votando contra a gente. Eis o grande problema da democracia. Perdemos muitas eleições pelo fato de sermos minoria e ninguém leva em conta que somos melhores, mais bem preparados e aptos a conduzir os destinos da nação. O diabo é que para colocar as rédeas nesse povo vamos precisar de um Estado forte.


Pode não ser tão simples assim e é melhor que não seja.

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O Brasileiro sempre gostou de bundas e esse gosto foi se exacerbando até chegar ao culto de traseiros imensos, paquidérmicos, desproporcionais em relação ao resto do corpo de algumas mulheres. Foram construídos a duras penas, em academias, pois as coxas, também descomunais e musculosas, lembram as coxas do lateral Roberto Carlos. Não dá para pensar numa fêmea desse porte para noites de amor e sexo. Mais fácil imaginá-las tomando distância para bater uma falta.

       

sábado, 19 de janeiro de 2013

Teoria dos seis graus de separação e sexo no subúrbio





Afrânio concluiu sua tese de doutorado sobre as classes sociais nas redes sociais. Alguém já deve ter pensado nisso e Afrânio parte da estratificação de classes dentro do Facebook para chegar à conclusão bem besta e evidente: a vida virtual repete a vida social.  Ele discorda da falta de ineditismo e sempre repete a frase de Nelson - "Só os profetas enxergam o óbvio”. O texto, no entanto, é bom. Daria um romance, caso não achasse a vida acadêmica o último degrau da existência humana. Encaixa muito bem os perfis de gente do subúrbio, que só conhece gente do subúrbio, e de gente da classe média para cima, cujo circulo de amizades raríssimas vezes se estende à periferia. O que estraga a leitura são os gráficos e tabelas.

Afrânio, um sujeito quase mauricinho - e seria mauricinho caso não conhecesse a filosofia ocidental como ele conhece -, resolveu abrir um perfil suburbano para adicionar o pessoal que faz churrasco na laje e participa de concurso de beleza em baile funk. Não fez muitos amigos. Os colegas da universidade até mantiveram contatos com pesquisados mais pobres, mas Afrânio ficou quase sozinho no Facebook. Deu-se nesse momento, em que depôs as armas, o estalo radical. Afrânio mudou-se para o subúrbio. Levou consigo uma família engajada em sua ciência. O chato seria deixar a moto. Sim, Afrânio gostava de Espinosa e de motos.

Tarefa difícil. Fazer novos amigos, aderir a novos costumes etc. O primeiro dia foi meio conturbado porque Afrânio não conseguiu dormir com o barulho do pagode. Diferença anotada: todo mundo na novela e ele na BBC. Havia ainda a decoração da casa. Encaixotou todas as coisinhas chics compradas nos Jardins e colocou um Coração de Jesus na sala. A mulher, também letrada e titulada, achou aquilo algo provocativo, pois parecia um kitsch deliberado, aquela conversa toda a respeito do pós-moderno. “Querida, esse debate não está posto neste bairro; quero apenas mostrar que sou um deles para provar minha tese”, argumentou Afrânio.

Aos poucos as coisas foram se acomodando. As duas filhas gêmeas estavam no colégio público e a mãe fazia uma ginástica danada para sair pobre de casa e chegar toda produzida à universidade. Ela mudava de roupa em sua sala e, ao final do expediente, vestia-se de pobre novamente. Uma gata borralheira ao contrário. Esses percalços do dia a dia terminavam animando o jantar, quase sempre um franguinho de padaria e seus habituais acompanhamentos: batata e farofa. `Mais discretamente, comiam chocolate amargo e coisinhas naturais.

De certa forma, a família trabalhou unida nesse projeto. A filha mais velha – nasceu dois minutos antes da outra -  atraiu para seu face quase metade dos homens do bairro. Era a mais bonita da escola e talvez a mais bonita daquelas imediações, num raio de quase cinco quilômetros. Deu-se bem com as novas colegas – Rosicleide e Rosineide – e teve até um breve namoro com Walteier, interrompido por questões de gostos e costumes. Teve outros e mais outros, casos ligeiros, rapidinhas. De repente, a menina fez com que seus admiradores migrassem para a página do pai. A quantidade já era suficiente, só faltava o cruzamento de dados com a classe média e a alta para se ter uma idéia de falta de intersecção entre as camadas sociais do Facebook. Trabalho de campo concluído, hora de voltar às origens. Afrânio e família retornaram para a Zona Oeste e a ex-adolescente, agora uma adulta, pode, finalmente, reatar suas relações com a Camila, a Fê e a Rê.

A mulher estava aliviada e culpada. Ela pensando: ”a gente chega lá, extrai o que quer e depois vai embora”. O alívio, no entanto, venceu a batalha. O subúrbio era desconfortável e a qualidade dos produtos era péssima. “O ideal seria que todos ascendessem”, voltou a pensar, mas logo se conformou: “Uma revolução nos dias de hoje está completamente fora de questão, mas de certa forma existe um movimento no sentido do empodeiramento (sic) da classe C”, pensou de novo. 

O marido, ao contrário, não tinha dramas. Iria mostrar ao mundo acadêmico uma perfeita biografia coletiva e pessoal do subúrbio, com observações agudas sobre o dia a dia de gente simples, sentindo-se o próprio Nelson Rodrigues misturado com estatísticas, e não bastasse estava ali, naquelas 600 páginas, o trabalho único e original sobre as relações entre dois mundos paralelos que não se encontraram, ou se encontram pouco, e pouco se referem um ao outro, porque são dois mundos muito diferentes, tanto na vida real quanto na virtual.

A tese de Afrânio foi rejeitada por ampla maioria. Os julgadores levaram em conta a teoria dos seis graus de separação, segundo a qual são necessários no máximo seis laços de amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas de algum modo, virtual ou pessoalmente. Afrânio não tirou nenhuma lição desse episódio – e por que deveria tirar? - e continua certo de suas certezas. Para ele, seis graus de separação são a prova de que nosso mundo está mesmo estratificado, dividido entre pobres e ricos, e tende a ficar assim caso não ocorra uma fusão de culturas, tema de sua próxima tentativa diante da banca.

Não iria se render ao não dos professores doutores. Faria nova tese, nem que fosse para outra universidade, utilizando os mesmos dados da primeira, mas enveredando sobre a questão da cultura, relacionando-a com o modo de produção capitalista.

A filha, porém, foi mais rápida. Tinha preparado um diário de sua vida no subúrbio, carregado de detalhes picantes e observações engraçadas. Conhecera a fundo a volúpia das classes C e D e cuidou de anotar cada detalhe de suas relações com os rapazes e meninas do bairro. Eles se sentiam incrédulos e agradecidos diante daquela gata, nua, perfeita, sem barriga, fruto de uma alimentação balanceada. A moça tinha especial atração pelos evangélicos, mais difíceis, contidos. Mas cediam. Nenhuma crença religiosa neste mundo resistiria àquele par de coxas.   

Os originais da menina terminaram aceitos por uma grande editora. O livro virou best-seller e a família de Afrânio ficou rica e mais distante das pessoas que pregam o Coração de Jesus na sala. Menos o obstinado Afrânio, agora empenhado em provar a falsidade da teoria de seis graus de separação. Não ficou chateado com a filha por questões morais; apenas discorda de sua metodologia e falta de rigor científico. 

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Argumento




A idéia é manjada. Duas pessoas se correspondem e não se conhecem pessoalmente, como no filme “Nunca te vi, sempre de amei”, de David Hugh Jones. Apenas trocaram os Correios e Telégrafos pelas redes sociais e as cartas por posts e mensagens. Ele sabia escrever bem, mas faltava-lhe imaginação para um arrazoado de amor, drama ou comédia, e não estava disposto a declarar-se apaixonado, por timidez e despropósito. Era um caso de empatia, vai e vem de comentários certeiros e admiração mútua.

Ela tinha um primor de estilo, frases entre a prosa e o poema livre, cheias de coisas para pensar. Sem contar a beleza diáfana de suas fotos no perfil. Eram recentes, mas havia um ar de anos vinte, talvez inserido por algum aplicativo. Talvez, não. Outra dúvida: poderia ser apenas um personagem criado para alegrar as madrugadas de homem sozinho. Virtualmente, daria na mesma, e, caso não desse, não teria passado de uma situação digital, sem envolvimento de peles. Sem química; só Física.   

Todas as fotos eram em branco e preto, exceto quando surgiam a garrafa de Green Label e o Marlboro. Verde e vermelho sobre fundo cinza enevoado. Brincadeirinhas no Photoshop. Mas sempre ela, com roupas de hoje e olhar contemporâneo. A paisagem em volta também. A casa com TV moderna, as ruas com prédios imensos e de vez quando uma praia deserta. Uma cansativa sequência de espaços vazios à beira mar e nesses casos ela estava distante da lente, chutando a água, pensamento distante. Jovem no período de incertezas absolutas, olhando para um fundo de poço em Hanói, rindo, usando um daqueles chapéus dos vietnamitas. Fotografias com legenda. Uma delas: moça passando a ferro o vestido de noiva e chorando sobre o tecido. Lágrimas Passe-bem.

Postava comentários interessantes sobre política nacional, o nascimento do universo e de como sentia culpada ao esmagar formigas. Também, e muito, falava de si própria. Ele sabia detalhes de sua vida e vice-versa. Álbuns de infância e família foram trocados numa ocasião, in Box, claro. Conversavam por horas e horas: sobre arrumação da casa, sempre uma canseira; as obras de Dostoievski direto do russo, a previsão do tempo em suas cidades e de vez em quando ficavam numa situação-limite, separados por milhares de quilômetros, um e outro com vontade de tocar em algo mais íntimo, mas a conversa nunca evolui desse ponto. Nunca se arriscaram no Skype, o olho no olho. Medo de desilusão, vergonha ou algo mais misterioso. Ninguém saberá por que – nem eles.



Então fica assim: faltam os diálogos, uma revisão caprichada e depois o diretor diz o que acha.  O cara não gosta de finais felizes nem infelizes. Gosta de impasses. É um curta. Pode colar. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

Idéias curáveis



À medida que ia se intelectualizando ia ficando doida, ocorre muito isso e aconteceu com ela, cuja escrita bem posta e gostosa de ler, trazia um conteúdo de aberrações para o bom senso. Foi um longo aprendizado para chegar a opiniões inteiramente contrárias à lógica dos nossos tempos, como propor a paralisação geral da humanidade em troca do fim do estresse e do bem do planeta, pois passou a creditar ao desenvolvimento todas as nossas mazelas. Com seu texto radical e afirmativo ainda chegou a arrebanhar seguidores na universidade, mas eles a deixaram. Os sintomas não estavam apenas em seus ensaios. Descuidou-se do apartamento, seu gato morreu de fome e por fim ela foi internada, levando para o sanatório os originais de “Deixar de produzir”.

Poderia ter virado ficcionista. Transformar suas idéias para o mundo num cozido imaginário, dar aquela voz a um personagem. Não. Queria mesmo aquilo como tratado sociológico ou coisa parecida. O leitor ia bem nos primeiras linhas, mas quando chegava no meio do texto, ou antes,  não pensava em outra coisa: é maluca.

Resultado: foi parar na clínica a conselho de velhos amigos. Todos sabiam que não era normal se revoltar em cada parágrafo da maneira como ela se revoltava. Mesmo os posts das redes sociais vinham com raiva em estado puro e, se fosse o caso, ela daria um tiro depois do ponto. Era um desafio para os psiquiatras, especialmente os psicanalistas, uma vez que sua prosa não era apenas deliciosa em suas explosões de ira. Havia humor e um pesado embasamento teórico para chegar a arremates fora de questão sob qualquer tipo de pensamento vigente. Também deixou de pagar contas, pentear os cabelos e escovar os dentes.

Outro detalhe não passava despercebido. Era linda. Quase quarenta e o olhar aceso de uma adolescente e o corpo seguia a mesmo viço, entre macio e rijo. Tenra, era a palavra. A admirável gata, agora dopada por um pesado coquetel de antidepressivos, não conseguia extinguir-se por um instante. Continuava escrevendo em sua mesinha de hospício, refletindo sobre a loucura dos outros pacientes e, mais uma vez, chegando a conclusões delirantes, ou tidas como tal. Agora sugeria a completa falta de juízo como padrão social.

Três meses de tratamento. Os médicos trocavam de drogas e não acertavam o alvo. Ela quase não conseguia dormir, mesmo sob efeito de clorpromazina e outros antipsicóticos. Nesse período, as visitas foram rareando até chegar a ninguém.  A louca teórica foi esquecida, ou lembrada de passagem - onde estaria agora? -, mas um dia reapareceu, ainda mais bonita e curada. Os psiquiatras encontraram a droga certa, perfeita para seu caso. Todos os sintomas sumiram, o jeito aéreo sumiu, o apartamento estava limpo de bem decorado, e havia parado de escrever.

De agora em diante, nada de idéias atípicas. Ela está normalíssima. Vê novelas, se assusta com filmes de fantasmas e adora finais felizes. Tem um namorado, desconhecido na antiga turma. Não fuma e bebe com moderação. Irreconhecível, quase inverossímil, porque a transformação foi uma espécie de transplante de alma. Tiraram tudo que ela tinha de esquisito – e precioso – e colocaram no lugar uma alma standard, um espírito e um jeito de ser que não eram dela; desses encontrados aos montes na praça. 

Ilustração: Henrique Koblitz


sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Notas pedantes




I- Resolvi enumerar as coisas marcantes de minha vida, numa linha do tempo, e sob a descrição dos acontecimentos havia uma escala de notas de um a dez, de acordo com a relevância em termos de realização e prazer.  No final, somando e dividindo, achei a média de minha existência. Fui excessivamente rígido comigo mesmo e apesar disso, contra toda minha má vontade, até certo desejo de me castigar; ainda assim, contra tudo e contra todos, fui aprovado com louvor.

II - Todas as cores de seu tempo de juventude estão de volta graças ao novo sistema de decodificação desenvolvido por nossa empresa. O que você viu em cores e, anos depois, só pode rever em preto e branco, ganhará de volta todo o seu colorido. Uma contribuição à tecnologia da lembrança. Cada vez mais perto de você.

Próximos lançamentos: cheiro e tato.


II- Jovens pedantes e pedantes metidos a jovem estão estragando tudo em nossas artes, observou um professor da universidade, na semana passada, durante uma conversa num bar do centro. Tema interessante, eu pensei, mas o catedrático tornou-se agressivo de repente e disse que eu pertencia ao segundo grupo. Fiquei calado. Professores universitários têm algumas certezas agressivas e eu sou cheio de dúvidas.


IV - Pose é para quem tem pose. Todos fazem poses; quem não faz é porque não tem uma ou mais à disposição. Só aquele mesmo eu o tempo todo ninguém aguenta.
 

V – O I-Phone 5 não interessa aos moradores das fazendas de Ouricuri (PE) porque eles esperam pela queda de alguma água lá de cima. Só se fala em Deus no sertão. Quase não chove há dois anos porque Ele não quer. Daí as orações, às vezes rezadas ao celular, para um parente ou amante. O aparelho é simples, falsificado e eficiente. 

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

No mato sem cachorro



Minha vontade é dar nome aos bois, abrir a caixa de ferramenta e chutar o pau da barraca. Não faço isso porque a corda termina rebentando do lado fraco, seguro morreu de velho e em boca calada não entra mosca. Eu sei quem está por trás dessa história pra boi dormir: é a ovelha negra da família. Filho de peixe é peixinho e a água só corre pro mar, mesmo as que não movem moinhos. E por isso fico na minha, feito jacaré nadando de costas num rio que tem piranha. Então estou aqui, a cacarejar e não botar ovos, mas um dia é da caça e outro é do caçador e aí eu vou semear ventos e colher tempestades, embora digam que vaso ruim não quebra. Não. Um dia a casa cai. Não há mal que dure para sempre.

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Tradição familiar





E a senhora saiu disposta como sempre, em busca de um jovem fino e naturalmente lindo porque assim era seu jeito e dinheiro não era problema. Não buscava michês, queria gente de verdade capaz de encenar com ela uma situação mais próxima do amor romântico. “Vou namorar”, ela dizia, ao sair de casa, pronta para tudo. Uma atitude polêmica para seu mundo social, mas elogiável para uma mulher passada dos sessenta e ainda ativíssima no desfrute de carnes novas, como, aliás, faziam sem censuras os amigos de sua idade. A diferença é que a senhora não queria apenas sexo.

A filha mais nova detestava, pois a senhora não fazia nada às escondidas e vez por outra levava um dos rapazes para casa. Não apenas para tê-lo no jantar e na cama, mas para apresentá-lo à família como namorado e em condições de freqüentar sua aristocrática residência. A família, não tão conservadora, mas preocupada com a imagem, experimentava certo mal-estar, certamente incentivado pela mais nova - uma jovem esbelta, elegante e gostosa sob todos os padrões existentes. Os parentes, no entanto, assentavam com o ritual, participando da conversas com o moço da ocasião, crivando-o de perguntas pertinentes e impertinentes, embora nunca agressivas.

A mais nova detestava por uma razão simples. Não estava preocupada com a reputação da mãe. Apenas tinha a tendência de sentir-se atraída por todos os namoradores trazidos pela senhora. O último deles, um tipo tosco e bem vestido, chamou sua atenção especialmente pelo olhar entre faceiro e safado e uns ombros largos, quase proporcionais ao resto do corpo, além de um saudável tórax revelado sob a camisa social, de mangas compridas, abotoadas até o pescoço. Não caberia em tais cerimônias domésticas um rapaz descuidado com o guarda-roupa. Ela mesma, a senhora, tratava de vesti-los, nas melhores lojas, antes de levá-lo ao seio da família. A filha achava que tudo havia sido preparado para testar seus limites.

Tinha certa dose de razão. A mãe sabia dos tesões reprimidos de sua caçula e tinha o hábito de até dar uma força para que se consumasse um triângulo amoroso e, sendo assim, a menina não poderia mais reclamar. Poderia até ficar com o sujeito só para ela. A mãe tinha um estoque inesgotável desses jovens – todos muito educados e bilíngües. O marido da senhora, por sua vez, não reclamava. Liberou a mulher para seus casos depois de uma malsucedida cirurgia de próstata e costumava resignar-se com certo cinismo e piadas sobre si próprio.

Enfim, a sociedade estava mudando numa rapidez terrível e a senhora não queria perder tempo com moralidades, mesmo vivendo numa pequena capital. O colunismo social também se acostumou ao fato e, aos poucos, estava a publicar freqüentes fotos da poderosa senhora com seus amores momentâneos. A filha mais velha sofria. Enquanto os bons partidos da cidade disputavam à tapa a sua atenção, ela só tinha olhos para as aquisições da mãe.  

O ruim dessas histórias curtas é que não há espaço para sutilezas e havia muitas, no caso da senhora e sua filha e nos rapazes na flor da idade – especialmente vingança e culpa. Além disso, outra pessoa poderia descrever a situação de maneira literariamente mais densa. Dar até um toque inglês, se quisesse, pois essas coisas normalmente ocorriam na Inglaterra, ou pelo menos nos livros de Jane Austen. Os franceses fariam um tratado psicanalítico.

O tempo passa. A senhora chega a uma idade em que gostos antigos perdem importância e não havia mais condições físicas ou emocionais para encarar o amor, mesmo um amor falso. A filha também já estava madura, solteira e imensamente contrariada em seguir os mesmos passos da mãe, quase como uma tradição familiar, mas sem o gosto arejado da senhora nesses casos. Com ela, breves namoros pagos de forma indireta, por presentes e outros mimos, tinha apenas a tensão do sexo. Poderia obter prazeres por outros meios, mas sempre caía nessa modalidade de relacionamento.

No longo período de compartilhamento dos namorados da senhora ela teve uma filha, hoje adolescente. A menina apresenta os mesmos sintomas da mãe.  

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A santinha da minha rua





Uma pele ociosa, sem rastro de estranhos, debaixo de vestidos castos. Nunca na vida deixou-se tocar e vivia, aos 19 anos, longe do amor e do desejo. Só a vontade de tornar-se uma santa de verdade, reconhecida pelo Vaticano, movia sua existência. A família católica participava do projeto. Havia padres para mexer uns pauzinhos na Santa Sé, exaltando a raridade em pleno século XXI. Em casa, ela se abstinha de quase tudo: carnes vermelhas e de outras cores, TV, Internet, livros profanos e revistas femininas. Dedicava-se à caridade e frequentava um colégio de freiras. Não se envolvia com colegas.  Ia à missa, rezava o terço e fazia promessas por um mundo melhor, segundo sua visão de mundo.

Faltava apenas o milagre para dar entrada ao processo de beatificação e mais outro, post-mortem, para a canonização. Tinha o apoio da Academia Brasileira de Hagiologia (ABRHAGI), criada em Fortaleza para o estudo dos santos e dos candidatos à beatitude. O milagre, no entanto, não vinha, e mesmo se viesse, a partir daí cumpriria um longo martírio burocrático até o exame do caso por integrantes da Congregação pela Causa dos Santos. Ela esperava com serenidade. O Papa João Paulo II afrouxou-se um pouco os procedimentos e só em 1978 canonizou 280 pessoas. Era sua esperança.

O audacioso projeto familiar e da própria pré-santa prosseguia firme neste mundo de tentações. A vizinhança estava mais ou menos dividida. Num país de maioria católica, os católicos terminam sendo maioria em todas as ruas, mas nem todos os cristãos das proximidades aprovavam o gesto. Uma menina tão linda precisava namorar casar e ter filhos. Os hereges iam mais longe. Deixar aquela gata morrer virgem seria um inominável desperdício e até um atentado aos direitos humanos. Castigo desnecessário também para ela. Pois, mesmo sob vestes tão rigorosas, não havia como esconder uma bundinha arquitetada com tamanho gosto pelo criador. Sem contar os peitos, mais ainda escondidos, provavelmente dotados de halos ou de pequenas nebulosas circulando em cada mamilo. O rosto lindo, o olhar acanhado, terminou por induzir os rapazes, e também algumas moças, a um fino exercício de imaginação. Ela representava o ápice de criação divina ou da genética, dependendo da crença de cada um, e um apelo quase pornográfico.

O culto à futura beata, portanto, já existia. Mas em aspecto pagão, masturbatório. A santinha era venerada por outros atributos porque o milagre mesmo era sua simples existência e mudar aquelas roupas seria o que os religiosos chamam de revelação. O pecado estaria justamente em esconder da humanidade e, especialmente de sua rua, aquele corpinho massa, santificado sob todos os aspectos, seja por seus significados teológicos e filosóficos ou por simples voyeurismo dos circunstantes. Não precisava escancarar, ninguém queria isso, bastava ela usar uns shortinhos de vez quando ou ir à praia, como todas as mortais. Existiria demonstração maior de desapego do que juntar-se aos seus, como os antigos santos purificavam a alma em colônias de leprosos? Se fosse para curar alguém poderia começar pelos males da ansiedade que acometia a rapaziada da rua.

Poderia ir um pouco mais adiante. Dar-se, no sentido bíblico, e enfim teríamos uma santa caridosa, filantrópica e até patriótica. Assim ela teria acesso aos prazeres da vida, como alguns santos tiveram, e talvez a prática do sexo não fosse estragar os trâmites no Vaticano, pois ninguém sabe os propósitos de Deus, nem mesmo se Ele existe, conforme argumentavam os ateus mais safados das redondezas.

O certo é que beleza tão rara gerou expectativa pelo fim da abominável ocultação e transformou a rua num ponto de romaria. Uma candidata a santa erotizada por seus fiéis mais fiéis em autoflagelações noturnas no banheiro e sob os lençóis. A santa dos adolescentes provocando uma conturbação hormonal em massa e ereções em toda a parte do bairro – quase uma missa de orgasmos.

Mas a santinha continuou pura e virginal, à espera de algum sinal de Roma, que nunca veio. Pouco importou para seus verdadeiros seguidores - uma geração inteira caiu a seus pés, aguardando o milagre mais simples e possível: o alumbramento daquela imagem desnuda, o experimento de uma ocorrência singular em suas vidas incendiadas por fantasias. 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Frases sem efeito





Só restou emprego numa agencia de publicidade, mas ele não sabia mentir. Não que publicitários mintam, pois muitos acreditam piamente em seus slogans e alguns até no produto. No caso especial do sessentão destas linhas, um pouco adoentado, a oportunidade era uma benevolência. Estava desempregado. Bom de frases, poderia contribuir para o sucesso de algumas contas. Era a impressão geral. Não funcionou.

As frases e textos que construía eram sobre vida e morte, nem sempre otimistas. Em tese não se aplicavam com muita propriedade a tubos e conexões, cursos de línguas e material de limpeza. Tentar, tentou, no entanto não vieram palavras capazes de agarrarem-se ao produto e ao mesmo tempo possuírem um toque de reflexão filosófica. Para ele, fazer isso seria mentira. Então, produzia slogans frouxos quando se referia a margarinas ou pensamentos definitivos e densos, mas sem utilidade para biscoitos e desodorantes.

Dois mundos em sua cabeça e a necessidade de sobrevivência. Usava então o expediente de escrever frases pontuais e quase óbvias, que eram aceitas pelo cliente, embora deixassem seus colegas decepcionados. Esperavam que fosse um George Jean Nathan da propaganda; era apenas funcional, como todos. De sua parte, ele se esforçava em ir mais longe, apenas para consumo interno. Só entregaria algo realmente bom – e verdadeiro -, caso estivesse com o slogan perfeito, o slogan que elevasse a publicidade ao patamar da Filosofia Pura e da Física Quântica. Mas bastava pensar na frase de Natan - "bebo para tornar os outros interessantes" –, aplicada a uma marca de cerveja, para se precaver da possibilidade do ridículo.

Descobriu ao final que a publicidade tem seu moto próprio e talvez surgisse alguém para unir literatura da melhor qualidade e pegada vendedora num comercial de micro-ondas. Não era ele.