segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Inícios




A velhice vai afunilando meus espaços de vida, externos e internos, porque não posso ficar muito tempo em pé nem muito tempo deitado nem muito tempo sentado. De todo jeito surge uma dor, ou incômodo,  transformando o mergulho na memória também em suplício, pois só existem pedaços de lembranças. Quando retorno ao mundo de agora, outra vez o desconforto; nenhuma posição serve nenhum pensamento serve. 




Aprendi a almoçar aos quinze anos, pois antes disso ainda rastejava atrás de farelos e restos de pizza,  quase escorrendo pelas ruas, sem pai nem mãe, sem ver a cor de dinheiro, sem nada. Ninguém notava minha presença ou notava como se nota um bicho; nunca liguei. Não conhecia o outro lado, só o meu espaço, e achava que era isso mesmo - vamos levando até onde der.  O almoço foi um grande transtorno. Perdi a noção por uns dias, meses, enquanto me adaptava ao Lar dos Órfãos sem Nome, enquanto me transformava do que era no que sou agora.

Eu era um pequeno réptil, mas com enorme capacidade de aprendizado, e mesmo na fase do rastejamento da pobreza absoluta catava umas histórias aqui e acolá, aprendi a ler, escrevi e escrevo neste momento, bem depois daquele almoço.  Porque não foi só comer em prato, com faca e garfo; foi o começo de verdade, como se antes eu não tivesse nascido. 





Ali,  só me rendeu em termos literários, pois o sofrimento foi grande. Mas quase não tive  tempo de sofrer de verdade; preferi escrever sobre os oito meses embaixo de mesmo teto de Adélia Pereira, uma prima distante, reencontrada na cidade grande, agora mulher de inabaláveis certezas, dessas radicais da preservação do meio ambiente, feminista e adepta da macrobiótica. Com tais predicados, no entanto não era uma pessoa chata. Pelo contrário. Só não me converti às suas teses porque eram trabalhosas demais; exigiam uma firmeza moral quase inexistente na época. Eu estava sem emprego e um homem sem emprego aos poucos vai se tornando um monstro de Dostoiévski.  Não roubei nem matei; escrevi sobre Adélia algo um tanto grave e descortês, para dizer o mínimo, uma vez que explorei suas intimidades, sem avisá-la, apenas pela necessidade doentia de escrever um livro.


  



terça-feira, 16 de setembro de 2014

O adivinho (Trecho)



Eu te direi quem serás, prometeu o adivinho, olhando para meus olhos, capturando por ali alguns segredos, ou talvez estivesse só enganando, como todos os presditgiadores e quiromantes desta cidade. Não sei por que frequentava casas de ciganas e por que cedia a qualquer um que se apresentasse para predizer o futuro. Podia ser um vício ou doença, pois o futuro só existirá depois de agora e lá só haverá alguma coisa quando virar presente. Pensando dessa forma, não se pode prever o futuro.

Mas o adivinho Francisco de Athayde Pereira Felix garantia o contrário. O futuro está na frente, prontinho, comigo dentro, mais velho ou morto, doente ou milionário; basta saber os caminhos certos para ver e ouvir o que se passa na semana que vem ou daqui a dez anos. É uma estrada só, tempo e espaço, e estamos sempre em dois lugares ao mesmo tempo, no mínimo: aqui e adiante. Eu te direi quem serás, ele repetiu, ou repete, depende de sua posição no tempo.

- Você não tem um bom futuro - disse Pereira Felix -, mas posso alterá-lo por alguns reais. Paguei-lhe adiantado. A primeira parte do tratamento consistia em contar como será; como estarei dentro de cinco anos. A parte seguinte, mais trabalhosa, contemplava os ajustes para evitar a desgraça do meu corpo e alma que ele enxergava bem na frente.

Pedi logo o diagnóstico, medroso e curioso ao mesmo tempo, mesmo sem acreditar na possibilidade dessa operação. Só que ele começou bem. Também adivinhava o passado recente e revelou  detalhaes de meu comportamente atual, embrião bem formado de um complicado tempo vindouro. O porvir apontava para velhice e pobreza, uma prejudicando a outra. Daí notei alguma verdade, especialmente porque ele falou sobre o quanto era precária minha base para uma vida posterior decente. Porque o futuro se faz do presente, mais ou menos como uma casa surge de seus alicerces, observou Pereira Felix, surgindo do nada, como sempre. Eu disse que era uma conclusão moralista, ele disse que não, e estamos nessa pendência até hoje

O certo é que tudo estava se desfazendo de alguma forma e o homem sabia muito a meu respeito, a ponto de citar situações e lugares onde iniciei minha perdição e onde estraguei meu futuro. Mas feito já estava. Agora, cabia ao adivinho e, mais que isso, ao modificador de futuros, dar uma solução ao caso ou pelo menos montar uma gambiarra. Ele resolveu pela gambiarra.    

...

Se hoje estou aqui, na presente data, contando como foi e o que poderia ter sido, é porque, mesmo cético, segui à risca seus conselhos. Segui porque só havia a saída do acaso, cuja existência, segundo ele,  ainda é duvidosa. Para o adivinho, os acontecimentos de cada pessoa também carregam um DNA, sendo determinadas situações plenamente previsíveis, como é previsível alguém ter alguma doença herdada dos país. Para exemplificar, há quinze anos ele antecipou minha demissão no dia 26 de agosto de 2008 e, agora, em 2013, posso atestar a verdade. Nesse caso, ele não pôde influir, dar-me o emprego de volta, porque havia uma crise global no mercado de trabalho e alterar uma estrtura desse porte não seria aconselhável, aliás, continua não sendo. Os adivinhos também têm seu código de ética.

Desse dia em diante, 26 de agosto, passei a seguir Pereira Felix como a um mestre, embora, como já disse, sem certeza absoluta de suas premonições; e nem sei se é grande coisa acreditar ou desacreditar, pois a verdade pode ser desconcertante, diferente de tudo aquilo que você dava por certo ou errado. Fui porque gostei do tratamento prescrito, cada dia mais caro, quase cinquenta mil, mas valia a pena; consegui me livrar de Adélia, uma moça sempre presente nos melhores e piores momentos da minha vida – quase todos provocados por ela. E consegui deixar de beber e passei num concurso público, estando agora numa situação bem melhor do que estaria caso não tivesse adotado as providências do adivinho. Não sei como o vidente muda o futuro de cada um, ou pelo menos como dá um jeitinho nele, mas sei que é pelos olhos que ele entra. Depois, grave e solene, anuncia para fazer isso, não fazer aquilo, pois é assim que terás uma vida mais ou menos e não a desgraça que te espera. 
  
Sobre ele próprio, disse pouco. Mantinha-se saudável e jovial aos oitenta e seis anos, todas as bactérias apaziguadas, quase um imune total. Era o que desejava e tinha. Ia buscar no futuro curas para males de hoje; só que ele não podia contar a ninguém para não destrambelhar a história do universo, podendo inclusive acontecer por causa disso um choque violento entre futuro e presente, matando não só os que estão agora, mas o que estarão depois, ou seja, tudo se mistura e morre. Então: além de cuidar da saúde, o adivinho gostava de passear pelos séculos em nome dos desejos e frustrações de seus clientes.

Ele interessou-se por Adélia e sua vida comigo. Fuja dessa mulher, aconselhou. O problema é que eu já havia fugido e nada adiantou. Adélia era mais nociva em sua ausência, levando-me a uma vida de tanto faz quanto tanto fez, extraindo apenas prazeres do álcool, enfim, Adélia foi embora e levou umas partes que me faziam falta.

Adélia não cabe neste espaço, mas pode ser comprimida ou compactada, tornando-se tão somente personagem de um projeto de conto em que ela, e não o vidente, tem o papel principal. Adélia de forma sintética: sexo e aventura. É um projeto antigo de mulher, difícil de funcionar em nosso meio, embora cabível na ficção. A beleza se enquadrava em meus padrões, o jeito mais ainda, sem contar uma inteligência rara, conversa animada para a noite inteira; disposição não faltava. Seu defeito era ser despida de preconceitos, achava tudo normal, não sei se ainda acha. Por isso saía com meus amigos e os dela e não raro os trazia para nossa casa, onde dormia com eles. Às vezes eram dois ou três e eu tinha que achar normal. Não achei e levei uma década num vaiavém com Adélia; batia a porta decidido e voltava com o rabo entre as pernas. Adélia tentou me ensinar a conviver com tais circunstâncias, não consegui e, sob as ordens de Pereira Felix, me desprendi dela para sempre.

Desliguei de fato de Adélia quando Adélia, depois de sumida, reapareceu sem o viço de antes, vagarosa, desgracioso. Não tanto pelos quilos a mais, mas sobretudo pela falta de assunto. Sumiram a eloquência, os olhos acesos e o rosto expressivo transformou-se num rosto normal, sem história, embora tivesse passado muito tempo desde a última vez em que vi Adélia. Ela contou sua vida num resumo rápido e não mais que o necessário: casou-se teve filhos, fez cirurgia plástica e fica em casa, cuidando as crianças. Uma Adélia plenamente normal não me interessaria mais, conforme informou o adivinho, com boa antecedência.

Ainda hoje fico com a imagem antiga de Adélia, dispensei a outra, mas já não sofro como antes, tenho mais o que fazer, arrumando minha vida de acordo com as instruções de Pereira Felix. Desconfio até que a Adélia que me visitou veio de outro tempo, mais na frente, trazida para desmontar meu futuro de abandono, sem ela. Pois, corrigiu-se isso também. Já não choro na janela, como teria chorando se Pereira Felix não cruzasse meu caminho. O que teria vivido, esqueci de propósito e nem sei ao certo se vivi tais momentos porque eles não estão aqui; estão lá. Não importa. O adivinho diz que é tudo a mesma coisa; o ontem, o hoje e o depois, tudo ilusão.


...

Não há vidas passadas, avisa Pereira Felix. Só uma única vida em vários cantos do tempo, como átomos pulando entre órbitas, num movimento sem lógica e sem rumo. Pereira Felix também não sabe muito além de suas projeções; ninguém sabe. Deve existir um vértice em que tudo se acaba ou se começa de novo, uma irrelevância ou um espetáculo, mas sempre um negócio inesperado, contra todas as nossas certezas e incertezas. De tão complicado, de tanto embrenhar-me nessa epopeia com Pereira Felix, só encontro alguma realidade quando penso em Adélia. Sem abalos emocionais; apenas como a peça-chave da minha da minha narrativa e da minha vida,  que afinal são a mesma coisa.

Penso inclusive em continuar essa história, sem Pereira Felix, apenas com Adélia. Assim me livraria dessas despesas, dando-me alta; deixaria de lado as estripulias do tempo, permanecendo neste ponto, calado, escrevendo, lidando apenas com lembranças. 

(Continua)



sábado, 13 de setembro de 2014

Receita


Escolha um assunto irrelevante e escreva sobre ele. A banalidade sugada até a última gota, quase forma sem conteúdo, descrição do vazio, dois parágrafos seguidos sobre um objeto e nem precisa ser o boné do infante Bovary; basta uma revoada de palavras secas, semicabralinas, e o encanto estará feito: texto prontíssímo para o próximo concurso literário.

domingo, 7 de setembro de 2014

Graus de satisfação

Todo mundo já ouviu histórias sobre o grau de satisfação das pessoas, uns com tanto, outros sem nada;  gente incapaz de prazeres na vida, mesmo tendo tudo;  gente sem nada e plenamente feliz, e assim por diante.  Tomo por exemplo minha própria situação, no momento, olhando  calmamente a passagem do tempo, mas insatisfeito lá dentro. Consegui o que parecia impossível – uma boa aposentadoria após uma vida sem regras e planos. Naquela época eu queria ser o que sou hoje; hoje é o contrário: sinto falta do tempo em que sofria pelo futuro. A insegurança estresante da espera me mantinha vivo.

Hoje, não. Baixei numa planície silenciosa, simétrica, quase sem contornos. O sol nasce e se põe e sinto uma angústia enorme com essa repetição. Os dias são iguais às noites porque acendemos as luzes no vazio dos corredores. A casa confortável é onde me enterro.


Não cheguei aqui depois de uma vida sacrificada. Apesar da ansiedade, sacolejava ou adormecia, dependendo de momentos altos e baixos. De qualquer forma, lembro hoje, era divertido atravessar a rua, com as mãos no bolso, sentido apenas duas moedas; o medo de nunca mais ver dinheiro dava sinais contraditórios. Primeiro, eu pensava como seria bom ter um certo a cada mês; depois vinha a sensação de curiosidade e encanto diante da insegurança. Nesse ponto, uma cerveja tinha grau dez em satisfação, pois não se tratava apenas de pedir uma cerveja, mas de descobrir a forma de obtê-la. Então, o eu de ontem era muito mais satisfeito em sua corda bamba do que eu de hoje, restrito à paisagem infinita è a passagem do tempo.