segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Tsunami


Nenhuma cidade vai deixar de existir – muito menos esta. Mesmo líquida, ela persiste na memória dos que escaparam e em bilhões de dados espalhados no espaço; imagens e sons, a coreografia do frevo, o rio, agora subterrâneo. Ainda assim, debaixo d’água, o abalo da submersão correu adiante, em ondas gigantes, devolvidas como vieram, cheias de retratos de famílias mandatárias e de ruas esburacadas. Ricos esbanjando dinheiro e pobres chamando o senhor de “doutor” e “meu patrão”.

Não houve um corre-corre na cidade que afundou, como se a cidade tivesse se recusado a subir a serra. “Corram para as montanhas” foi dito assim, meio na ironia, numa mesa cheia de cervejas. O certo seria a evacuação total, como nos filmes. Mas ao contrário ocorreu um espetáculo de resignação. Incredulidade de uns; deixa-pra-lá de outros. Até conversas sobre não existir, conversas sobre o fim, palavras salvas na nuvem - as de Adélia e Amélia, ao telefone, por exemplo. Uma no Poço, em sua casinha simpática; outra, na praia, encarando o monstro no horizonte.

A cidade se diluiu e ficou no mesmo canto, quase dissolvida. Sargaços surgiram na manhã seguinte, e os habitantes estavam desigualmente divididos, como sempre, entre a superfície da vida e o fundo da morte. Os sobreviventes fizeram fotos e até filmes. A cidade continua a existir como se nada tivesse acontecido.

Um ano depois houve a primeira retrospectiva. Parecia uma ressurreição em massa de pessoas conhecidas que ficaram sob as águas, desaparecidas, segundo boletins oficiais. Existem de certa forma ali, como linguagem, assim disseram os críticos sobre o primeiro longa metragem do certame. Neste caso um documentário sobre a vida na cidade de antes, dois metros acima do nível do mar. Na plateia, alguma emoção entre os sobreviventes, parentes e amigos, mas a turvação dos sentimentos aos pouco cedeu lugar à realidade vindoura, naquela situação provisória, esperando.

Debates após a exibição. Claro que estamos destruindo o planeta, mas a história é outra, a natureza destruindo-se a si mesma, em placas gigantes sacolejando lá dentro, entre as labaredas infernais do plasma vermelho e choques de pedras que têm o tamanho de um hipermercado; isso as menores. Tudo foi feito sem as mãos humanas. A própria engrenagem gerou-se, por assim dizer, e criou sua lógica de funcionamento. Não há um ser pensante no comando, mas há mistérios físicos e químicos muito mais misteriosos do que um milagre.

Nesse campo em que estávamos e ainda estamos – pelo menos, alguns - o acaso parece manter um padrão, alinha-se ao cotidiano na maior parte do tempo, mas pode oferecer um espetáculo inesperado a qualquer momento. Como a nossa placa salvadora, solta no oceano, em cima da terra onde nasceram meus pais, e agora separada do continente como a jangada de Saramago.


Nenhum sinal de incômodo na cidade, agora uma ilha em destino ignorado, pois nossa capacidade de medir e prever foi destruída nessa pancada das placas, que ocorreu lá na frente, quase na África. Aquilo deixou muitos traços no comportamento dos sobreviventes, que ainda avistam a pontinha do Obelisco de Brennand, a enorme rola reduzida a uma pequena cúpula bizantina, e mesmo assim ainda um orgulho, o cartão postal semi-submerso, e se um dia a água baixar teremos de volta a Rosa dos Ventos onde tudo começou e muitas outras coisas que eram, e continuam sendo, as maiores da América latina.