segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Pequeno sentido da vida



Nunca vira um espaço tão pequeno e sujo. Quarto e sala. A cozinha na sala, banheirinho espremido, a cama ocupando quase todo o quarto. Um armário bege, descascado, um chão que passou por muitos estágios; já foi sinteco, cerâmica e por último um carpete cor de gema de ovo, peludo e desgastado. Nas paredes, camadas e camadas de tinta numa luta perdida contra a infiltração. O resto da mobília: mesa, duas cadeiras e uma geladeira com a porta pouco aderente. O último inquilino a mantinha fechada com fita crepe e não a abria com frequência. Lá dentro, havia algo em transformação, talvez um repolho, azul violáceo, igual a essas coisas que se veem nos filmes. Um repolho em vias de entrar em outra situação bioquímica.

O corretor procurou mostrar as vantagens do imóvel, bem localizado, perto do ponto do ônibus e da padaria. Foi sincero quando ao elevador, há meses desativado, e também quanto à necessidade de uma boa faxina. Aí, sim, emergiria um lar aconchegante, ideal para uma pessoa sozinha e sem muito dinheiro. Bastava esperar uns três dias para baixar o cheiro do desinfetante e fazer a mudança. Perguntei se havia outro apartamento em melhores condições e ele respondeu que, por aquele preço, seria difícil encontrar.

Não era preciso percorrer o apartamento. De um ponto via-se tudo, a desolação diante do poente calorento de janeiro. Mas andei, no entanto, e dei conta de objetos deixados ao longo dos anos: correspondência para diversos destinatários, tampas de cerveja, tufos de cabelo, restos de salgadinhos que lembravam cascas de ferida, uma edição de Notícias Populares – jornal fechado em 2001 – e duas camisinhas usadas. Uma boa faxina resolveria tudo, repetiu o corretor, enquanto ouvíamos o barulho ininterrupto do vaivém dos carros e do arrulho dos pombos.

Alugado.

Eu estava no meu novo apartamento depois de morar, durante quase a vida inteira, numa cobertura com vista para o parque, dormitório com suíte, duas vagas na garagem, área de lazer com academia de ginástica, salão de festa e piscina. O desemprego veio para mudar tudo. Fim do emprego, fim da regularidade casa-trabalho e fim das amizades profissionais. A partir daquele dia seria ali porque a miséria enfim se apresentava em forma de uma quitinete no centro. São coisas que acontecem. O que me interessa é o efeito, não a causa. Tento lidar com o que aparece de um jeito positivo; fudeu, fudeu, agora é assim e pronto.

A limpeza foi razoável, mas o carpete ficou como um cachorro molhado e a geladeira continuava sem fechar direito. Meus lençóis cobriram a cama, mas as manchas do colchão ainda apareciam sob o branco; dois lençóis, um sobre o outro, apagaram o problema. Não vi, não existe. A infiltração ficou escondida atrás da estante, trazida na mudança. O aroma meio pinho meio formol ainda empestava o ambiente. Seria um lugar provisório, pensei, e existem milhões de casas piores no mundo, muitas longe do ponto de ônibus e da padaria.

Não foi um lugar provisório. Há anos estou lá, na quitinete do centro, esquecido de como era ampla a sala do antigo apartamento e como a vida mudou desde então. A vida mudou do dia para a noite e assim foi ficando, quase só noite, pouca luz do sol, quando descobri as vantagens de passar dormindo das sete às dezoito horas. À noite, o ap é mais acolhedor. Somem os defeitos, a luz neon de um puteiro vizinho, no sétimo andar, invade suavemente os poucos metros quadrados, como se trouxesse outra dimensão à sala, tornando-a maior, mais aprazível e misteriosa, embora eu desconfie  da instabilidade e estranheza desse pequeno universo. O problema é que ele combina comigo.  Posso ser um organismo enganado, mas sinto-me bem quando os polos são invertidos - noite é dia, dia é noite - e só assim consigo viver comigo nos últimos dez anos nesta quitinete do centro. Até o carpete cor de gema de ovo, quando anoitece, transmuta-se em outras cores e seus pelos viram pequenas fontes luminosas.  É um espetáculo diário, ou melhor, noturno. 

À noite, vejo filmes na TV com uma vizinha que é poeta e bipolar, Vera, tão interessante nas fases de depressão quanto nas de euforia. Tem uma história enorme, que me conta aos poucos, e escrevo sobre ela há muito tempo, dos primeiros meses aqui. Vou à padaria, que tem umas cadeiras na calçada e serve sanduiche de pernil. Calculo que já comi mais de mais de mil sanduíches de pernil, muitos deles com minha vizinha, cujos versos foram publicados nesta semana em um blog mais ou menos conhecido. Comemoramos no bar, junto com Adeildo, um amigo da Paraíba, também conhecido como Ninguém Dorme, e Marina, uma quarentona arquiteta que trabalha com projetos da Lei de Incentivo à cultura. No final dessa noite fomos para o meu apartamento, olhar o espetáculo, pois eles também apreciam. Costumamos fitar o movimento da rua pela janela, fumando uns baseados e falando besteiras sobre o universo e os segredos guardados em cada uma daquelas luzes acessas nos prédios da vizinhança.  Olhamos para dentro pensando enxergar fótons transitando entre a sala e o quarto, formando alegorias na parede, e viajamos nos reflexos da pintura irregular, como se uma nova decoração ali se dispusesse a cada segundo, dependendo da vibração do neon.  

Quando acordo e estou só, desço para comer na padaria. A cidade já fez e desfez o dia, houve mudanças no trânsito e na política, pessoas voltam cansadas para casa, choveu e estiou, e para mim está apenas começando. Estou novo em folha numa batalha já transcorrida, naquele momento em que o cenário urbano é preparado para outras situações, menos tensas, mais fora das regras. Nessa hora, outros personagens se encaixam e até os mesmos que suportaram o dia ganham uma substância diferente. Não há filas, gerentes de banco, corrida pelas liquidações, multidões atravessando a rua, horário de almoço nos restaurantes a quilo nem pregações evangélicas. Ou seja, a vida melhorou muito desde que vim morar aqui. Pode parecer que os motivos são bobos, ou que deliro para compensar a falta do antigo apartamento, mas é justamente o que eu procurava e nunca me perguntei por quê.

Trabalho em casa, nas madrugadas, escrevendo umas besteiras para empresas e às vezes para mim mesmo, caso das histórias de Vera, cuja revisão cabe à própria, sempre pronta a dar sugestão, às vezes para tornar ainda mais dramática sua vida com a doença. Não é sobre isso que estou interessado; estou interessado em Vera, em todos os seus sentidos, estejam exacerbados ou encolhidos, e presto mais atenção aos seus cachos de molinha do que às suas bruscas mudança de humor.

Vera não critica apenas a parte sobre ela, que é a maior, mas, sobretudo a minha mania de mudar de assunto no correr do texto e de dizer uma coisa lá em cima quando seria lá embaixo. Então Vera se encarrega também de colocar parágrafos na ordem que acredita ser a certa, mesmo que às vezes eu discorde e use aquela setinha do computador para voltar ao que era antes. Isso causa uma pequena discussão sobre o que é certo ou errado até o ponto de concordamos que seria melhor escrever outro parágrafo. É o método dela de ganhar sempre.

Visto de longe parecemos dois egos no desfiladeiro das Termópilas, mas não é assim, não tão assim. Trata-se principalmente de um jogo que diverte e pode durar muito tempo, até com seus momentos demais reflexivos, como, por exemplo: pensamos muito sobre como é absurdo chegar a este ponto por causa de um parágrafo. As vantagens são imensas, nesse gamezinho fútil, e por mais fútil que pareça, o resultado é uma satisfação fora do comum, e às vezes suficiente.

A quitinete nos une porque é pequena demais para não nos esfregarmos de vez em quando. A cena se repete enquanto discutimos. Não gostamos ficar parados e há pouco espaço para andar. Aproveito e beijo Vera e o jogo chega à sua melhor parte, ali mesmo, no chão, sobre o carpete cor de gema de ovo, e depois ela se levanta, sempre se levanta primeiro, e continuamos a revisar o texto, como se nada tivesse acontecido. Não existe um clima de paixão e desejo selvagem e não formamos um casal; apenas cumprimos aquele ritual sem contrapesos morais e culpas. Nem conversamos sobre isso. É bom e basta.

Com Marina o mundo é mais prático. Ela ajeita nossas vidas, põe as coisas nos lugares, as ideias de acordo com os assuntos, evitando nossa rescisão definitiva com o mundo que gira em volta da quitinete ou um embarque sem volta na imaginação. Mesmo com tais cuidados, participa sem censuras de nosso jeito de viver, das previsões sem base na realidade e do exagero nos vícios. No momento certo, porém, tem um jeito muito especial e carinhoso de colocar a situação nos eixos; fornece matéria ao nosso universo quando ele é só energia.

Adeildo sempre me diz que é bom não ter muitas expectativas sobre a vida. O que vier é lucro. Assim ele vai levando; eu não. Espero muita coisa desse estranho mundo, todos os dias. Nada demais para quem está fora dele, mas está ótimo para mim,  nem que seja apenas a repetição de ontem, se for o caso, em que nos juntamos aqui, olhando o céu, ou com Vera, escrevendo e lendo trechos de sua biografia e seus poemas. Ou então sozinho, sentindo o neon entrar pela janela, eriçando os pelos do carpete cor de gema de ovo.

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