sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Urubus na sala


Não havia plano B e o A era fraquinho. A ideia: comprar guarda-chuvas e vendê-los na Avenida Paulista em dias de temporal, na saída do metrô. Comprei. Investi o que restava na mercadoria e desde então não choveu. Todo dia eu olhava a previsão do tempo. Nada. 0 mm. Em casa, o estoque de comida estava no fim e numa tarde, antes de cortarem a luz, vi na TV que o Estado enfrentaria uma seca, talvez a maior de todos os tempos, consequência do El Niño, ventos alísios soprando no sentido oeste, através do Oceano Pacífico tropical, com imensa repercussão em minha vida. Tudo ocorre por acaso, mas o acaso beneficia mais uns do que outros, aleatoriamente, sem sentindo, e é isso que chamam de azar - as repetições desastrosas em uma lista de repetições infinitas, como se a roleta só parasse no 1, eternamente, porque também é uma possibilidade.

Nessa época conheci Adélia, num ponto de ônibus. Contei minha situação. Ela tinha uma história parecida. Em pouco tempo ficamos amigos. Adélia pagava minha passagem com vale-transporte. Eu levava dois ou três guarda-chuvas. Esperava um erro da meteorologia. Só que a meteorologia já não errava mais. Virou uma coisa sagrada, como a Bíblia;  está escrito, assim será.  Existem onze mil estações meteorológicas no mundo, sem contar os satélites geoestacionários e os de órbita polar. Nas fotos, a Terra era azul, só azul, sem manchas de nuvens.

Outro problema é que os guarda-chuvas estavam ficando velhos, jogados pela casa – uma casa desarrumada, cheia de guarda-chuvas; uns abertos e outros fechados, formando um conjunto estranho, como uma instalação da Bienal. À noite, no escuro, eu tropeçava naquela coleção assombrosa. Adélia visitou-me pela primeira em janeiro e conheceu meus urubus esquálidos e inertes, no meio da sala, alguns com hastes quebradas. No quarto, deitou-se no colchão sem colcha ou lençóis, desnecessários no calor, e não mostrou espanto com nada. Estava cansada. Também vivia sua comédia de erros. Tentava vender cosméticos que ninguém comprava. Falta de tino para os negócios e uma cara sofrida que não combinava com cosméticos.

Tínhamos trabalho fixo no passado. Adélia chegou a ser dona de uma loja de antiguidades, mas o estoque acabou. Vendeu tudo, gastou o dinheiro, entregou o ponto. O mercado de antiguidades tem esse problema: as coisas precisavam ficar velhas e isso demanda tempo, e quem compra às vezes não vende; emperra o mercado. Eu escrevia numa revista sobre esoterismo, mas a revista faliu. A vantagem foi livrar-me dos textos absurdos sobre fantasmas quânticos, Deus da quinta dimensão e o poder das pirâmides. Nunca acreditei nessas coisas. Tratava como ficção. Enfim, depois dessas atividades, ficamos jogados por aí. Lembro que Juntando nosso capital não dava para uma semana, mesmo com a dieta à base de macarrão e sardinhas em lata. Ela foi ficando comigo, na escuridão, e depois sem água.  Pelo menos fechou os guarda-chuvas e espanou a poeira.

- Você sabe qual é o coletivo de guarda-chuvas – perguntou?

- Acho que não existe – respondi. A gente conversava pouco. No escuro, as palavras vão escasseando, como a água das torneiras e da chuva. Quando amanhecia era um alívio. Ela saía para tentar vender seus cosméticos e voltava para tatear comigo dentro da casa. Caíamos na cama para longos silêncios. Ninguém pensava em sexo, embora fosse uma opção naquela escassez, sem nada para fazer. Além disso, tomávamos poucos banhos, com água do vizinho, um lastimoso aposentado com problemas renais. Ele me informava sobre a previsão do tempo.

- Alguma notícia de chuva?

- Nada – dizia o vizinho – O problema é no País inteiro, quem sabe no mundo inteiro.

Nenhuma frente fria a caminho, enquanto a poeira já cobria o céu da cidade, junto com a fuligem da poluição, enquanto o sol caia avermelhado nos lados da Cantareira, enquanto Adélia continuava sem vender cosméticos. Ela costumava a culpar a falta de sorte – não pronunciava a palavra azar – e eu achava que alguma coisa deveria acontecer antes de ter que vender a casinha a rumar para outro lugar, um lugar que chovesse. Vendi um computador velho e a TV – sem energia e sem internet só faziam ocupar espaço.  Nem pensava em outro trabalho. Os guarda-chuvas se tornaram uma obsessão. Primeiro apenas minha, depois de Adélia.

- Guarda-chuvas podem ter outra utilidade – ela dizia, como se estivesse a ponto de lançar uma boa ideia. Não tinha. Talvez para proteger as pessoas do sol, eu pensei, mas isso passou, desde o império nem têm essa utilidade, e antes, há 3400 anos, na Mesopotâmia, um negócio parecido com guarda-chuva – aliás, guarda-sol - era levado por escravos para livrar os reis da insolação. Agora, as pessoas preferem protetores solares.

De certa forma estávamos presos aos guarda-chuvas ou à ideia de que guarda-chuvas, naquela crise imensa, do clima e das finanças, pudesse ser a chave-mestra para uma saída. Porém não chovia, repetia-se o número 1, dormíamos no escuro, Adélia saía para não vender cosméticos pela manhã e o vizinho informava que não iria chover.

- Por que não jogamos os guarda-chuvas no lixo? – sugeriu Adélia

– Porque pode chover assim que a gente fizer isso – eu respondi, olhando para o céu sem nuvens.

No dia em que o vizinho morreu de sua doença renal, caíram alguns pingos, e achei que chegara a hora de partir para o cemitério levando meu estoque, e parecia que finalmente chegara o momento, pois caíram uns pingos e depois ouvimos um trovão, e seguimos no carro funerário junto com os guarda-chuvas e o cadáver, olhando como a chuvinha ganhava força de tempestade. A água já escorria pelo meio fio e o trânsito começava a parar. À beira da cova, poderíamos proteger os parentes e amigos do morto, cobrando cinco reais para protegê-los do aguaceiro e já seria o começo do negócio no ramo de guarda-chuvas. Mas quando chegou o momento de todos se juntarem ao redor da cova, como nos enterros de filmes, o céu clareou de repente, mais uma vez o número 1, e voltamos para casa, eu e Adélia, abraçados e silenciosos, para deitar no escuro, como sempre, e esperar o dia seguinte, por uma nova chuva, a venda de algum cosmético ou qualquer ocorrência singular.

Duas semanas depois, jogamos os guarda-chuvas no lixo e não choveu. Não havia mais o vizinho para informar a previsão do tempo, Adélia foi embora, com seus prospectos de cosméticos, e fiquei na casa vazia, esperando o dia amanhecer, inteiramente liberto da minha obsessão, ainda sem plano B, mas achando que a saída de cena de alguns elementos – Adélia, o vizinho e o os guarda-chuvas – poderia significar uma nova disposição para os fatos, embora isso fosse apenas uma possibilidade, como a eterna repetição do número 1. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário