terça-feira, 17 de novembro de 2015

Atlas



Quando eu era criança, pedi a meu pai para comprar um atlas pelo correio. Demorou quase um mês para chegar porque nos anos sessenta tudo demorava a chegar. Quando vi o carteiro pela janela do quarto, corri apressado para pegar a encomenda e abri o pacote antes de dizer qualquer coisa - nem disse bom dia nem oi - e abri o atlas na página do Brasil. Em seguida, já estava no meu pequeno estado, mas caí na mais profunda tristeza ao descobrir que a cidade onde nasci não estava no mapa. Aquilo resumia minha infância a nada.

Não estamos no mapa, disse à minha mãe, que preparava o almoço. Ela não deu a devida importância e respondeu apenas que um dia a cidade estaria no mapa, era só uma questão de tempo, bastava aumentar a população, e talvez o novo prefeito tivesse influência suficiente para corrigir aquela pequena injustiça. À noite, quase não dormi, pensando como é melancólico e solitário morar num lugar em que nem o atlas sabe onde fica e muito menos as outras pessoas do mundo. Eu era uma criança bairrista.

Pelos livros, sabia que alguns lugares sumiram do mapa, destruídos ou abandonados por seus moradores, cidades reais e imaginárias, mas nunca ter estado no mapa era um baque maior, como se alguém dissesse, com toda a certeza: você não existe nem existiu. Nem sua família nem a agência dos correios nem o grupo escolar nem a sorveteria de Dona Nazinha. No dia seguinte à chegada do atlas, olhei para as ruas vazias, perdidas no sertão, cercadas de mato, e comecei a chorar.

Desde então tudo perdeu importância, até a escola, pois quando a professora começava falar sobre as datas mais importantes do município, eu ficava pensando se adiantava ter história se não tínhamos geografia. Clarinha, a menina mais bonita da escola, pelo menos a mais engraçada, também não estava no mapa, como não estava no mapa a fábrica de gelo do avô.

Lembro-me do calor de quarenta graus lá fora e os dedos gelados de tanto esfregar as mãos nas barras geladas, encomendas da sorveteria e do açougue. Era o melhor lugar da cidade e eu ficava por lá nas horas vagas, que eram quase todas.

O certo é que a cidade era pequena em proporção ao tamanho da fábrica de gelo do meu avô e gerava muita curiosidade no município porque as pessoas estavam naturalmente intrigadas sobre o surgimento de tanta coisa fria numa terra tão quente. Faz muito tempo, mas naquela época não entrava na cabeça de ninguém o fato de que um motor a diesel, um negócio mais abrasador do que a cidade, servisse para esfriar fosse o que fosse. Mas esfriava e muito.

Enquanto a rua pegava fogo lá fora, meio dia o dia inteiro, a fábrica mantinha-se num clima austríaco, conforme escreveu o único jornalista da cidade, José Onofre, editor, diretor e distribuidor do semanário A Razão. Ou seja, mesmo os espíritos mais abertos a novidades estavam perplexos e buscavam explicações. No entanto, apesar de seu motor e o gelo, mesmo com o jeitinho engraçado de Clarinha, mesmo assim, a cidade não estava no mapa.

Quando completei dezoito anos fui embora estudar na capital e depois segui para São Paulo, transferido pela firma. Com o passar dos anos, a cidade, que já não estava no mapa, foi se apagando da minha memória. Morreram todos – avós, tias e os homens que faziam gelo. Morreu Zé Onofre e Razão deixou de circular. Morreu dona Nazinha da sorveteria e morreram o prefeito e seu sucessor, que não moveu uma palha para colocar a cidade no Atlas.

Há uns dias, décadas e décadas depois, olhei por curiosidade o mapa do Google e minha cidade estava lá. Não só o nome, em letras grandes, mas as casas e ruas, becos e a igreja, e o velho prédio do grupo escolar, ampliados, quase realidade, e as ruínas da fábrica de gelo e a sorveteria de Nazinha, que virou minimercado, e a casa onde morou Clarinha, agora um salão de beleza. Mas aí não importava mais. Eu queria ter visto no Atlas.


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