terça-feira, 22 de janeiro de 2013

1979 - trecho


Jade

Uma cançãozinha sobre o mar animava corações em chamas numa madrugada de 1979, ano distante, século passado, quando todos se reuniam para suspirar e ver o por do sol. No violão, Ataíde. Não era um bom nome para representar aquela fase muito boa das nossas vidas no pedaço mais especial do litoral brasileiro (pelo menos pra gente).  A emoção nos inebriava o dia inteiro e, à noite, qualquer coisa era motivo de intensa contemplação: estrelas, as ondas, um avião da Varig se preparando para pousar lá adiante. Havia uma frenética confusão de casais porque, entre outras coisas, parecia um desperdício levar uma vida apenas a dois. Daí a turma, a tentativa de se unir ao universo e o gosto por músicas sobre a natureza; daí uma sensação de que aquilo não acabaria nunca mais.

Quando acabou, muito rápido, começo dos 80’, encontrei Ataíde numa mesa de bilhar em São Paulo. Jogamos muito mal e bebemos muito bem e na hora em que os bares fecharam fomos para meu apartamento conversar sobre aquela época. Eu disse a Ataíde que ele era a minha imagem dos anos 70, depois de Jade, a carioca. Disse também a Ataíde que seu nome não combinava com nosso jeito de viver, mas sua música era o retrato da geração etc, enfim, uma conversa de bêbados, porque não gosto mais das músicas de Ataíde. No dia seguinte lembrei-me de tudo e só tinha me esquecido de pegar o telefone dele, pois um velho conhecido sempre é um alento numa cidade desconhecida. Então passei mais três anos até reencontrar o amigo, desta vez numa campanha eleitoral, no interior do Estado, só que ele trabalhava para um candidato e eu para o outro. Um encontro naquelas condições seria impossível porque o meu chefe, o marqueteiro, considerava a eleição do deputado a prefeito uma questão de vida ou morte e para isso cercou-se de todos os cuidados e proibições para o pessoal da equipe, que não podia beber ou manter qualquer tipo de contato com o pessoal adversário.

Eu sabia, Ataíde sabia. Estávamos ali só para pegar a grana e passar uns meses gastando com namoradas, discos, livros e bebidas. Eu queria notícias de Jade, a carioca, porque enquanto Ataíde despachava seus hits na praia nordestina, fiquei inteiramente tomado pela visão de Jade e, nos dias seguintes, Jade apareceu e revelou, sem maiores preâmbulos, sua vontade de dar para mim. Aconteceu num clima em que até a exasperação era boa. Por não esperar nada do corpo – ela era tão interessante por outros motivos -, é que o corpo terminou sendo uma grande surpresa, um alumbramento, uma perfeição. Nunca se deixou prender por atrações alheias ao seu talhe anatômico, normalmente bem coberto, por aqueles vestidos até o calcanhar ou mesmo por causa do maiô, ainda usava maiô nos anos 70, mas Jade brilhava por razões mais rarefeitas. A risada, aquela coisa toda meio hippie ou o jeito de entender e responder às grandes questões como se fossem banalidades, talvez fizessem dela uma raridade entre as da mesma espécie. Mas o corpo foi um susto, uma enorme emoção em todos os sentidos, a imaginar que além de tudo havia aquilo, e sentia que estava diante do maior evento visual da existência.  Hoje, bastava ser uma voz distante e já valia a pena, pois ela tinha algo de único, embora estivesse de corpo e alma nus naquele dia, como sempre estiveram, e só ali percebi.

Depois, ela sumiu, e sumimos todos, por uma série de circunstâncias, incluindo a necessidade de arrumar emprego. Minha ansiedade para conversar com Ataíde era mais por Jade e menos por rememorações da turma.




Na campanha, a disciplina militar do marqueteiro no campo de concentração da produtora de vídeo impedia qualquer aproximação com Ataíde, exceto por breves encontros, na Mesbla local, onde conversamos como espiões entre cabides, manequins e araras. Ninguém queria passar segredos de campanhas, eu mesmo só queria marcar um encontro com Ataíde, no dia seguinte à apuração das urnas, para obter pistas de Jade, a carioca.

Quando estava bêbado, naquele dia do bilhar, Ataíde contou que tinha notícias dela, mas eu não estava em condições de conduzir a entrevista, embora seja (ou “fosse”, não sei) jornalista. Ataíde também era jornalista, mas nunca esteve numa redação. Sempre viveu, depois daquele tempo na praia, como um infeliz assessor de imprensa, tentando levar a sério a missão empresarial do cliente e empenhado em passar aquilo para jornalistas bastante inamistosos. Ele era atendido às pressas, ao telefone, ou mandavam dizer que estavam em outra ligação. Um desses caras, editor de economia, passou quatro anos e seis meses numa ligação. Era o mínimo, em termos de humilhação. Durante um raro encontro com jornalistas de verdade, os de redações, o álcool bateu na sinceridade de um jovem repórter e ele olhou para Ataíde, imitando o Nelson Rodrigues, e mandou o meu amigo enfiar a empresa no cu. “Para de mandar releases, caralho; só tem pauta de merda”, observou o rapaz, num tom bem incisivo, apesar da bebedeira. Ai Ataíde saiu de fininho. Não era sua turma. Sua turma também não estava nas assessorias, ambientes bastante competitivos, cheios de segredos, mas carentes de afeto e direitos trabalhistas. Se não sair nada sobre o cliente, o cliente vai embora, teremos de reduzir os custos, e você vai junto porque atendia o cliente. Tem lógica. O chefe usava essa língua, além disso, se auto-intitulava nos cartões de visita como diretor-presidente. Diretor presidente de uma sala alugada no centro.

A campanha acabou e meu candidato perdeu. Daria minhas congratulações a Ataíde e assunto encerrado; iríamos a um papo mais sério. Só que encontrei um Ataíde vitorioso demais. Eu estava errado, Ataíde dava importância à campanha e até mostrou certo alinhamento ideológico com o candidato, cuja principal característica era não ter ideologia alguma. Pensei em dizer “congratulações” de novo, mas percebi que a questão era mais séria. Com ar superior, Ataíde abriu o jogo: iria ficar na cidade, montar sua própria produtora, a grana tinha sido boa. Deve ser igual no futebol; ganhou, recebe bicho, um extra, porque levei uma mixaria naquela campanha, suficiente para comprar um aparelho três-em-um* e guardar para dois meses de vida modesta, quase sem sair de casa.

Desse dia em diante passei mais um tempo sem notícias de Ataíde. A última é que tinha pegado a conta publicitária da Prefeitura e iria se casar, não sei com quem. A conversa sobre Jade, a carioca, seria mais uma vez adiada. Deixei pra lá, o calendário foi correndo, Ataíde caindo no esquecimento, aliás, só no meu esquecimento. Um dia, quando abri o jornal, estava lá a notícia sobre a prisão de Ataíde. Havia se metido numa licitação e ele mesmo tinha tratado de falsificar a documentação, de forma muito grosseira, por sinal, conforme mostrou a página de política. A conversa sobre Jade estava cada vez mais distante. Eu não iria visitar Ataíde na cadeia. Pensariam que tinha alguma coisa com aquilo, estive na mesma cidade etc. Mas a vontade de saber sobre Jade era grande. Era a única pessoa na qual eu pensava com freqüência e todos os pensamentos levavam a um mundo sem precedentes na minha história sem importância. Quer dizer: aqueles anos foram importantes (pelo menos pra gente).

Naquele tempo não havia Internet e sair por ai perguntando “conhece Jade?” seria uma busca insana. Hoje bastaria colocar o nome dela no Google e apertar uma tecla, se é que ainda se apertam teclas. Mas isso é outra história. Iria esperar Ataíde sair da cadeia, desta vez com certeza mais humilde, para finalmente chegarmos a Jade. Nesse meio tempo fiquei imaginando mil possibilidades para Jade do presente. Poderia ter morrido, virado bandida, monja budista ou gorda. Tudo bem, gorda, se manteve aquele jeitinho brejeiro de olhar, tudo bem.

Como intenção aqui é de breve relato, uma vez que contos ou coisa parecida costumam se espichar, virar um projeto de romance e morrer de inanição mais na frente, encontrei com Ataíde uma semana depois do habeas-corpus. Ele estava abatido com o sumiço dos amigos e ficou emocionado comigo, o que sobrou, segundo ele. Eu queria falar de Jade, mas Ataíde parecia ter urgência em explicar porque foi preso, um mal entendido, na versão dele, pois se envolveu num procedimento corriqueiro nas repartições públicas e teve azar de ter sido denunciado pelo blog da política da cidade. Foi vingança, garantiu Ataíde. O dono do blog também participou da campanha e sonhava com a conta que ele terminou ganhando. Problemas municipais, enfim. Não estava muito preocupado com isso, estava preocupado em descobrir o paradeiro de Jade e não sabia direito o porquê dessa obsessão.


Eu tinha uma identificação forte com Ataíde, na verdade. Ambos fracassamos em termos do esperado pela família, ambos éramos promessas não cumpridas. Nos anos 70 apostavam muito na gente, o nosso povo da praia, peles muito bronzeadas e a gente falando difícil, eu e Ataíde, sobre a possibilidade de uma luta armada contra o governo, já em andamento e já em direção ao fracasso. Era um pensamento sincero e seria normal ter um retorno feminino. Uma situação justa: nós nos interessávamos por meninas que “estivessem por dentro”, informadas, e seria natural que elas também se interessassem por nós dois. Antigamente, as mulheres jovens se ligavam mais nessas histórias, política etc. Não sei, só acho, não sou mais jovem. Jade era assim, informada, mas suas intervenções eram naturais, normalmente com potencial de encerrar conversas, palavra final, e era a mais nova de todas. Nessas horas, fazíamos silêncio, depois de balançar a cabeça em concordância, e segurando exclamações diante de garota tão sábia e sem vaidades. Jade era uma propriedade coletiva da turma, um orgulho, fazíamos um esforço danado para não tratá-la sem muita deferência. Então foi uma surpresa quando ela disse que queria trepar comigo. 

Só fui ficando com essa imagem, o corpo e alma de Jade, conforme disse a Ataíde, quando o encontrei em sua fase pós-cadeia. A prisão de Ataíde era um enredo longo, cheio de espaços para reflexões sobre honra e ética, enquanto meu objetivo era conduzir a conversa para Jade e seu destino.

- Um homem preso – disse Ataíde – torna-me menos humano, perde as referências, o respeito, a auto-estima e outros predicados que hoje nos diferenciam. Estou abaixo de você em qualquer escala.

- Que é isso? – ponderei. Você não matou e se roubou é um caso ainda a ser esclarecido, prova disso é que soltaram você. Falta de substância no processo. Não é hora de sofrer. Um dia você vai provar sua inocência e se não provar a pena prescreve, o tempo vem por cima e termina o serviço. O negócio é não desanimar (preâmbulo para entrar no que interessa). Você devia seguir o exemplo do pai de Jade, a Jade, lembra dela? Falar nisso, onde anda a Jade?

- Sim. O que houve com o pai da Jade? (eu ainda não tinha ainda a história do pai da Jade, mas vamos lá).

- O pai da Jade – comecei – esteve preso por cinco anos sob acusação de assassinato. Durante esse período estudou Direito e partiu para provar que era inocente.  Provou, Ataíde.

Não sei por que ficava cheio de dedos na hora de perguntar sobre Jade. Daria até para abrir o jogo: é isso, Ataíde, eu ainda estou apaixonado por Jade e já se passaram quase 20 anos.

- Parece que o pai da Jade morreu, não sei, já era muito velho. Mas e a Jade, você tem notícias dela?

- Tenho, mas preferia não falar sobre isso.

_- Por que, Ataíde – perguntei, desconfiado.

 - Durante sua longa ausência – respondeu Ataíde, meio sei jeito – aconteceram muitas coisas. Não sei como se perde o contato com as pessoas como você perdeu, mas deixa pra lá. Olha, fui casado com Jade durante dez anos. Temos um filho, que está com ela, fora do País.

Eu esperava qualquer coisa, menos isso. Devia ter levado em conta a possibilidade. Foi o violão. Naquele tempo, tocar violão fazia diferença para as mulheres. Comecei a odiar Ataíde, mas queria o resto da conversa. Segurei o ódio. O mesmo ódio que gente sentia por alguns entrevistados, como o comandante do II Exército. Um homem pequeno e duro, insensível. Reagia às perguntas com um olhar ameaçador. Ataíde não era nada ameaçador. Não fez nada demais, destruiu meus sonhos sem querer, e eu não estava lá para evitar o casamento, me casar com Jade no lugar dele. Problema meu. Saí da parada, fui para São Paulo, não sei por que, mas gostei e estamos aqui, eu e Ataíde, até hoje, e naquele dia meu ódio era difícil de explicar, e ele não estava disposto a contar. Tinha que contar. Se foi assim, Ataíde, você vai ter que contar. Foi ai que ele abriu os braços, tomou ar e abriu o longo parágrafo que segue:


- Sente ai, vou contar. Quando você foi embora, Jade também sumiu por uns tempos. Um ano, mais ou menos. De repente todo mundo sumiu. Ninguém procurou ninguém. Houve uma dispersão a partir do nada. Estava certo que iria acabar. Eu mesmo não aguentava mais sair do trabalho, tomar um banho rápido e correr para o bar da praia, todo santo dia. Aguentar, eu aguentava. Eu achava ótimo aquilo, nossos amigos, mas comecei a ficar exausto, fisicamente. Porque tínhamos sexo quase a cada noite, de um jeito ou de outro, porque jogávamos emoção demais, mesmo num relacionamento de um dia; um dia parecia uma eternidade, as horas não passavam, e era bom assim. O dia não era devagar, era cheio, denso e consumia forças e saúde, e mesmo assim era longo e intenso. O dia aparentava durar mais por causa da energia contida nele; era tanta e ia sendo liberada em grandes quantidades, a cada minuto da vida. Maconha e ácido também ajudavam a tornar tudo mais extenso, com dois lados, misturados, realidade e fantasia. Mas chega uma hora em que não dá mais. Jade consumiu suas energias ali. Quando a encontrei por acaso, anos depois, ela não tinha mais aquela graça, a aura percebida por você e por todos. Era apenas uma mulher a procura de trabalho, tentando terminar um curso de Direito numa dessas faculdades de terceira linha. Mais tarde, ligou para mim, no meio de uma segunda-feira. Disse que estava em casa, sozinha, e chorava. Fui. Ela estava vivendo num lixo, o apartamento era um lixo, com roupas espalhadas no chão, sacos plásticos vazios por toda parte e uma pilha de pratos para lavar, alguns com matéria em decomposição. Um cenário bem diferente da nossa praia alegre. Jade estava num canto, continuava chorando, e pediu desculpa pela bagunça. Uma bagunça grande, por sinal, porque estava dentro e fora daquele apartamento e principalmente estava dentro dela.

Ataíde fez uma pausa e agora aproveito para mudar de parágrafo.

- Passei a freqüentar a casa de Jade. Arrumamos junta aquela bagunça e um dia tivemos relações sexuais no meio da sala, sem preliminares, como naquele filme do Michael Douglas. Eu estava só, ela estava só, e terminou em casamento. Juntamos as coisas e nos mudamos para meu apartamento, uma quitinete na Augusta. Mas o tempo destruiu meu interesse por ela, quando meu filho já tinha três anos. Ela foi embora. Depois, eu ainda pegava o menino nos fins de semana, em seguida a cada quinze dias e mais na frente, ela viajou. Viajou e casou com um norte-americano. Um completo careta, médico e republicano. Jade parecia não querer mais felicidade; queria segurança e proteção. O Brasil estava na merda e hordas de brasileiros partiram para os Estados Unidos atrás de uns trocados. Jade deu mais sorte. Conheceu o cara em São Paulo. Não sei como se deu esse cruzamento; bem provável que ela tenha se cansado da depressão. Queria conhecer o mundo de uma cidadezinha do Meio Oeste, cheia de fofoqueiros moralistas. Ao que tudo indica, Jade adaptou-se ao novo modo de vida. Morar com um médico tinha sua utilidade e ele era psiquiatra. O cara estava levando uma paciente para casa e não sabia.

Ataíde tornou-se ainda mais detalhistas e só assim eu soube que ele teve uma recaída e foi atrás dela, em Thompson City, causando um barraco histórico na cidadezinha. Voltou sozinho para as assessorias de imprensa. Nesse momento eu pensei: agora é a minha vez de ir a Thompson City. E fui.



Tompson City



Tompson City era – e talvez ainda seja - uma típica cidade norte-americana ao extremo. Tinha suas efemérides patrióticas e frisson generalizados no Dia de Ação de Graças e 14 de julho. Havia bailes de formatura e a ansiedade das adolescentes à espera de um convite masculino para o baile. Os homens eram rudes e usavam camisas quadriculadas. Todos se conheciam e cumprimentavam o xerife. Uma cidade saída dos livros das escolas de inglês, com famílias bem definidas, sem problemas aparentes, conversa rasa, um bar com sinuca, lavanderia e a igreja aos domingos.

O mais estranho é que se instalou ali uma comunidade de hippies tardios, na verdade doidões sem filosofia definida e vida errante, cuja parada em Thompson City talvez tenha sido resultado da dificuldade de seguir em frente por falta de combustível. Em Thompson, eles disseram chega, é aqui. Jade morava no lado burguês da pequena cidade, numa distância segura dos inconvenientes imigrantes, alguns deles de origem latina, peruanos e chilenos em sua maioria.  

Torrei parte do dinheiro da campanha para assumir as prestações com a passagem, tirar visto para os EUA – um suplício, pois não tinha emprego fixo – e roupas de frio. Desci em Nova York e segui para lá de carro alugado, com o endereço dado por Ataíde. Disse apenas que estava com a viagem programada e aproveitaria para rever a velha amiga. Ataíde pediu que levasse um presente para seu filho.

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