quarta-feira, 5 de março de 2014

Personagens desnecessários IV


Ao pecado capital da preguiça dedicou-se a vida inteira. Nunca trabalhou. Vive de herança, cada dia menor, mas ainda suficiente para mantê-lo disposto a não mexer uma palha. Mas dá à malta o melhor de si em conversas de bares, em eterno riso, em pequenos textos – estes, um ócio muito trabalhoso, segundo Goethe, que ele adora citar. Comer, dormir, ler, escrever e beber, eis a regra de ouro, só abalada pelo tédio, nas tardes de sábado, quando pontualmente ele procura o sentido da vida e não encontra. Nada atemorizante. Basta fumar um e o tédio passa; basta ir aos amigos e comparar sua baixa demanda de esforço com o emprego deles em repartições e empresas.

Ser um mandrião bem sucedido exige organização e método.  Ele não faz cursos para evitar deveres de casa. Melhor ir a conferências, lançamentos de livros e cinema. Depois, às festas, com cuidado para não cansar a audiência. Não exibe qualquer sinal do malandro do cancioneiro popular, tipo que não existe mais. Faz exercícios, lê jornais, diz coisinhas espirituosas no twitter e repousa numa rede, ouvindo Mahler ou Nelson Gonçalves. Não mata o tempo – deixa-o seguir seu rumo enquanto ele tira um cochilo.

São conselhos à toa, pois agora, e no dia inteiro, ele não tem nada para fazer, a não ser escrever, mas ninguém vive de prosa. Não é trabalho; é diversão. O principal, em sua área de inatividade prática, é arrumar um discurso para a vagabundagem. A história do livro não cola mais, faz quase dez anos e o livro não saiu. "Estou com um projeto"  também não serve. É vago demais. A saída é enfrentar a realidade, justificando o ócio com embasamento teórico e ceticismo em relação ao trabalho como motor da humanidade. Fica na posição de observador deste mundo cheio de contradições e conceitos e, aproveitando o embalo, cita autores que debocham da labuta como "um dogma desastroso", à Paul Lafargue, aquele genro de Marx que se matou. Chega de Mais-valia, portanto.

Tem mais: o expediente toma da vida curta um tempo precioso, ao contrário do sono, fornecedor de outras vidas e de conforto para  corpo, que desliza no infinito. Para ele, alguma atividade remunerada tira o poder da contemplação; as sensações mais sutis e a sessão da tarde vão embora. Considera que ficar de  bobeira, numa segunda, é um ato revolucionária da eterna greve individual. A máquina sempre funcionou sem ele; continuará funcionando.


Então, ele não moe, não entrega, não ergue, não bate pregos, não lava nem enxagua. No fim vai tudo dar em nada, para todos, de qualquer jeito, assim ele pensa.

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