segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

História arruinada


Olho para o céu, de nada,da al elementares etc c u adiante, cheio de planos para amanh a mis, conforme instruções da mestra, e não aceito a paisagem estática, a simples contemplação. Pulo etapas e logo os planetas giram em torno do Sol e o Sistema Solar gira dentro da galáxia e tudo é engolido por um buraco negro, cuja existência é duvidosa, mas não importa, não interessa nem o agora, pois estou adiante, cheio de planos para amanhã, problemas e soluções, antecipação de prazeres e dores. O nome disso é ansiedade, diz a mestra, diante do meu fracasso meditativo. Vamos tentar de novo:  uma caixa vazia. Quarenta minutos olhando para uma caixa vazia. Não posso especular sobre o conteúdo, pois  há conteúdo – átomos, bactérias, ácaros, partículas elementares etc – ;  não posso nada além de nada. A mestra insiste.  A ideia é esvaziar a mente e mais uma vez não consigo e vejo que a caixa é feita de papelão, portanto está ali uma coisa visível, palpável, dona de alguma história. Papelão. Já ouvi a palavra muitas vezes em forma de advertência, "que papelão!", falavam, quando eu fazia uma merda qualquer. Mas o negócio é a caixa e nela devo me concentrar. Quarenta minutos é uma eternidade.

Uma amiga sincera, lendo o enorme parágrafo acima, considerou o personagem confuso, tanto para ele próprio quanto para os leitores e isso está fora de moda, metido a grandiloquente, acrescentou num tom bem tristonho. Pediu que esquecesse o homem que. conseguia meditarristonho. Pediu que esquecesse o homem da mediça gala não conseguia meditar e escrevesse uma história mais esquemática, estilo roteiro de cinema, pois é assim agora. Correria com final feliz. O argumento dela era o seguinte: ninguém lê ruminações de personagem sem um enredo bom para sustentar a conversa mole. Fiquei espantado com a crueza do comentário e mesmo assim aceitei arrumar uma história com começo, meio e fim, entreameada de ação, sexo, violência e o que mais fosse do interesse geral. Vale lembrar que tais acontecimentos são antigos, do tempo em que se compravam histórias, e naquela época tão distante eu já estava desinformado sobre o ofício de escrever.

Comecei. Meu novo enredo era a vida de um homem comum confrontado com seu passado sombrio. Faltava criar o passado sombrio e, obviamente, pensei num assassinato, e passei horas e dias tentando criar um suspenso mínimo com o segredo do cara e nada parecia convincente, verossímel, encaixável. Poderia ainda envolver o homem num paradoxo qualquer, num triângulo amoroso, num beco sem saída, num drama político de grandes proporções. Nada resolvido e apesar disso seguia em frente, sem saber o que conteria a próxima página, numa enrolação só, ainda com o personagem ruminando, oferecendo pistas baratas, num processo de construção humana a ser abortado por falta de pegada e sustança literária. Assim minha amiga e editora não queria.

De certa forma o personagem do meu livro continuava tentando meditar e sentia-se  como se estivesse num ambiente gelatinoso, maleável, perfeitamente untado.  Havia conforto e agitação dentro de seu universo, nunca cansaço, e ele circularia nessa gelatiana em forma de existência por um bom tempo, não importava quanto, pois o momento estava sempre à disposição; nesse tempo o presente demorava mais para passar. Tudo era motivo de alumbramento, bastava uma paisagem com música, livro e cinema;  bastava uma dessas moças bronzeadas de saia indiana e o dia e estava ganho; às vezes até o mês. Ele vivia pronto para as ações da vida gelatinosa. Podia apalpar com força ou deslizar numa espiral fofa e eterna. Nenhuma matéria entrava em decomposição, pelo contrário, parecia ganhar mais resistência. O contexto valia para tudo, de seios a situações. No entanto, quando pensava em seu passado tudo se diluía.

O problema ainda era a abstração. O homem passava todo o tempo narrando seu ambiente e sensações e só uma vez ou outra referia-se ao seu trauma, embora parecesse estar marcado profundamente pelo ocorrido. Outro drama era inventar o miolo da história, visto que andei enchendo o leitor de alguma curiosidade e expectiva, pelo menos assim eu achava. A saída foi o assassinato de um desconhecido, por engano, quando ele pretendia matar o pai e a bala ricocheteou na quina de uma mesa.

O romance terminou saindo no final de 1970 e não houve qualquer repercussão na imprensa nem nas poucas livrarias onde o livro estava à venda. Quase ninguém comprou. Ao lançamento foram três amigos e minha amiga editora. Houve um clima, na verdade, porque nos despedimos sem jeito e nem teve a tradicional ida ao bar, como convém a uma noite de autográfos, no meu caso quase nenhum autógrafo. Pois ficou uma situação chata e cada um foi para seu lado, sem saber o que dizer sobre o fracasso do romance, cujos originais já tinha lido, gostado, mas talvez naquele momento poderiam ter achado que a leitura tinha sido contaminada pela amizade com o autor.

Fiquei pensando o que eles estariam pensando. Minha amiga editora deveria sentir ‐se sócia do fracasso. Nos outros, haveria um constrangimento específico, difícil de explicar, e certamente um pouco de pena. As pessoas não gostam de demonstrar pena para não ofender pobres coitados como eu. Por dentro, devem ter avaliado seus conceitos sobre literatura e haviam chegado à certeza da minha falta de talento.


Trinta anos depois tentei de novo. Já não tinha mais aqueles amigos do primeiro livro; não tinha amigos, na verdade, exceto a mestra da meditação, enfim tornada real. Recomecei então pelo velho personagem tentando esvaziar a mente num dia de fracasso, à saída da livraria, sozinho e sem leitores. A caixa de papelão vazia também estava de volta. A mente, porém, já não alcançava a gelatina, o aconchego úmido das bordas e dos abraços, a eterna juventude de alguns segundos.   Trinta anos depois era apenas uma caixa vazia e o velho personagem e sua história sem graça. A mestra sugeriu: esqueça aquilo. Respondi: não posso. É a única coisa que eu tenho.



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