sábado, 15 de fevereiro de 2014

Notas do Aquém



Não se pode fugir da morte, por enquanto, e o morto ainda é obrigado a aguentar adulações de toda ordem. Não apenas ao seu caráter e inteligência, mas, sobretudo, ao modo como deixou o mundo, igual a passarinho, num desenlace revestido de certa elegância e serenidade. Dia desses, num velório, alguém notou uma “cara boa” no sujeito estirado em seu caixão há quase 24 horas. Só faltou dizer que vendia saúde, “você está ótimo” etc. A fisionomia do falecido, meio esverdeada, não inspirava qualquer consideração dessa natureza. Morto deveria ser poupados de velório. Não pode reclamar da situação vexatória, como um Brás Cubas, nem mesmo rir de si próprio.



O corpo é o templo onde sacrificamos animais em rituais sacânicos. Politeísmo hard core no centro do quarto, diante da tela, no altar dos prazeres. Adoração a qualquer diaba em figura de gente, mesmo sem a presença desta, pois o sacrifício é simbólico, embora exija esforço manual, textos e imagens. O empenho das mãos produz o verdadeiro êxtase religioso – o jorro no final do culto. Nenhuma religião oferece tamanho espetáculo. Não cobramos dízimos; apenas as despesas com banda larga e itens de higiene.


A deusa nasceu para todos. Considera-se patrimônio da humanidade, com justeza, pois distribui aos olhares – raramente às mãos e outras partes – o corpo mais espetacular do planeta. Nas tardes de domingo, costuma abrir a janela do quarto, num lento strip-tease, e dos outros apartamentos o futebol é deixado de lado. Alguns fogem dela com medo de caírem apaixonados pelo impossível; outros apenas comemoram sua presença. Sempre disfarço meu privilégio de uma noite em seus braços, mas uma ocorrência dessa magnitude coloca os pensamentos em desalinho, embaralham as certezas e as duvidas, de tal modo que ambas passam a ter o mesmo peso ou nenhum. A própria escrita sofre, como fato de chamar a moça de “deusa”, ao estilo de redatores de revistas femininas. Lembram-se? Antigamente, chamavam gente da imprensa para escrever legendas sob fotos de mulheres seminuas. Vinham, então, elogios caudalosos, cheios de comparações matreiras, e, vez por outra, aparecia a palavra “deusa”. Mas ela é uma deusa, sim, e trabalha para nossos olhos.  Reluzente e bronzeada, passa a tarde praia, soltando beijinhos pro mar.



O escritor velho tenta se passar por um jovem escritor. Cria um pseudônimo e uma idade. Ganha prêmios. Vende. A tempo descobrem o embuste. Os livros encalham.

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