quinta-feira, 6 de março de 2014

O sumiço da filósofa



Por que desaparecer assim, sem mais nem menos, à francesa, pelos fundos, num dia normal, terça, enquanto eu fazia planos? Viagem pelo Estreito de Bósforo, duas semanas, lua de mel em Türkiye, como está em sua tese. Ela saiu com o vestido comprado na Benedito Calixto, uma pequena mala e uma caixa de livros. O táxi era um Celta de três portas, movido a etanol, motor VHC, cinco marchas. Sei todos os detalhes, fiquei olhando; só não sei o motivo.

Seu jeito era o de ficar para sempre. Dominava os espaços da casa, cada coisa em sua lugar, nada se perdia. À noite, tínhamos apetide na mesa e, mais tarde, na cama, tínhamos sexo de total entedimento e carinho mútuo, preocupação com o outro e minha consciência deslizava para sua nessas horas. Havia ainda o lado da identificação intelectual, comunhão de corpos e de bibliografia. Ambos estávamos envolvidos no entedimento da mente humana. Agora eu não entendo mais nada.

Ainda é cedo para especular – ou muito tarde, eu nao sei –, mas apesar disso não me sai da cabeça uma série de suposições, todos subjetivas, pois ela pode ter concluído algo, no fundo de suas concepções, capaz de levá-la a outro caminho. Creio também que a alternativa teórica pode encobrir uma situação mais banal e não menos aterrorizante: conheceu outro cara.  Não. A lealdade entre nós era sólida, sua vida era transcedente e prática ao mesmo tempo. Uma casa, um carro e longas noites discutindo Spinoza. Seus olhos brilhavam. Ela queria aquilo e tinha aquilo às suas mãos. Parecia não almejar nada além do nosso ambiente de bons amigos, bons vinhos, boas conversas. Às vezes vinha emocionada a meu encontro porque havia achado uma ideia, um conceito ou uma frase. Eu fazia o mesmo.

Não vivíamos de afazeres domésticos, cálculo de contas a pagar e não havia filhos. A divisão de tarefas conbsistia em trocar impressões de leitura. Um dia antes de sua partida, eu lia a  Apresentação de Sacher-Masoch, de Deleuze, e ela enchia de comentários A hermenêutica do sujeito, de Foucault. Concordávamos em quase tudo e as divergências, pontuais, sobre A Genealogia da Moral, por exemplo, terminavam por tornar nossas trepadas ainda mais efusivas.

Não preciso dizer que jamais conheci uma mulher igual a ela. Todas as outras pareciam superficiais e mesmo as lindas, algumas alunas, perdiam o viço depois do sexo e de algumas considerações sobre pretensos filósofos brasileiros, desses de jornal. Com ela era diferente. Nossa cumplicidade no meio acadêmico servia para comparações exgeradas, Sarte-Simone com fidelidade±, chegaram até a falar isso.

Minha conclusão provisória, ainda movida por forte interferência da emoção, sugere algo mais suspenso, presente na alma de algumas mulheres especiais. Elas entram no mundo com alegria, enfeitam ele de encanto, mas depois param para pensar como tudo é tão pouco.   


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