domingo, 9 de dezembro de 2012

Moreninha viking




A moça das runas chegou. Ligada à mitologia nórdica, politeísta e adepta da premonição, ela ficou chateada quando eu comentei que os vikinks eram a escória de uma sociedade ainda em construção. Eram salteadores e piratas. Daí, pulei para a antropologia nacionalista: “por que Odin e não Ogum?” Expliquei então que os deuses louros têm seu Olimpo - Asgard -, mas os orixás também contam com o seu plano espiritual, Orum. “Parece muito com mitologia grega”, continuei, levando em conta que tudo por ter vindo da África, etc.

Normalmente não puxaria uma conversa desse tipo, prefiro futebol, e ela estava calada, meio perplexa, mas absolutamente linda. Com sua vestimenta cerimonial, parecia uma deusa e eu não acredito em coisas sobrenaturais, mas parecia. Poderia ter pensado estar diante de um vislumbre, uma revelação de Shiva (Shiva faz revelações?), mas não. Pensei, apenas: “que gata!”. Pois é. A moça que estava ali, versada em runas e Futhorc, causadora de tempestades e outros fenômenos, era especialmente uma exuberante morena bronzeada, escondendo sua brejeirice em gestos de personagem da Saga de Völsunga.

Na verdade, passei uma semana em meticulosa pesquisa na internet para me inteirar das religiões nórdicas. Descobri que os deuses morrem e a própria crença em Odin e Thor quase desapareceu com a chegada das tropas do cristianismo, já uma espécie de OTAN no século XI. Tomei essa providência no dia em que a deusa Hel em pessoa, embora morena, subiu numa escada para dispor a placa de seu estabelecimento: “Svartalfheim” (Repouso dos elfos). Nome estranho, sei não; só sei que Hel, o nome da deusa, deu no inglês Hell (inferno). Coisas anglo-saxônicas. Pois estava a diabinha montando seu inferninho esotérico na minha rua e não parei um segundo de olhar. Era a síntese de todas as mulheres do mundo e nem ao menos eu tinha falado com ela.

Lojinha montada, marquei a consulta.  Cheguei lá pontualmente. Sou o único cliente. O negócio está apenas começando. Duas outras moças abriram a porta do quarto onde a deusa fazia suas consultas. Foi aí que me senti ainda mais atraído e disposto a enveredar por todas as mitologias só para tomar um sorvete com ela. Como uma moreninha dessas se mete com mitos da Escandinávia? Difícil entender. “Por que não Iemanjá?”, perguntei, voltando ao início deste texto. Não seria uma surpresa se ela surgisse de Eruexin- - o chicote de crina de búfalo usado por Oyá -, mas veio com uma bata translúcida, o sol entrando pela janela, e palavras suaves de boas vindas em idioma viking. Foi difícil tirá-la deste estado e também não me importei muito, pois a janela aberta, o sol entrando e a bata translúcida formava de fato um belo conjunto, cujo principal elemento estava fora dele, aliás, dentro: o corpo da deusa morena sueca. A calcinha, bem visível, provavelmente era da grife indiana Kushmanda Overseas.

Aos poucos, depois de consultar seus oráculos, com previsões previsíveis, finalmente a deusa resolveu descer de Asgard e saiu-se muito bem. Primeiro mostrou conhecimento de macumbas em geral, disse que era filha de Iansã, e a conversa descambou para a vida no bairro. Ninguém mais viria e ela parecia não dar importância. Pensei em chamá-la para uma cerveja ali na esquina, mas achei conveniente permanecer no interesse por seu trabalho e perguntar se ela já tinha lido As Máscaras de Deus, de Joseph Campbel, e terminei perguntando mesmo e a resposta foi a melhor possível: Já lí, claro; você leu, ótimo. “Cara...” Essas reticências – poderiam ser exclamações - precisam ser entendidas como um olhar de agradável espanto por ter encontrado ali, na inauguração da Svartalfheim, alguém tão afinado com suas preferências.  

Cada coisa a seu tempo. Chamei para a cerveja. Descobri o melhor. A moça tinha os pés assentado no mundo, ou também, porque contou que o consultório Viking era apenas mais um negócio em sua pequena, mas diversificada vida empresarial. Já teve brechó, lojinha de produtos naturais e uma papelaria com viés origamista.

- A pior coisa do mundo é deixar de gostar – disse ela -. Não precisa nem ser de gente, um grande caso de amor acabado, uma amizade destruída aos poucos, por exemplo. Mas uma coisa, uma maneira de ser, uma música, um empreendimento. Foi o que aconteceu comigo, aliás, sempre acontece. Passei um tempo morrendo de medo de perder o interesse por moda – e perdi. A partir daí, não liguei mais para moda e segui em frente. Mas logo comecei a gostar de outras coisas e o medo voltou. Estou com medo de deixar de gostar as runas e da mitologia nórdica.

Qualquer psicanalista teria enxergado ali um problema. Eu enxerguei uma oportunidade. Ensaiei um “basta apenas gostar da vida” e achei meio óbvio, além de perigoso, pois ela poderia passar a desgostar da vida e aí fudeu.   Fui pelo mais fácil e lembrei como gostava de futebol quando era criança, passei um tempo sem gostar tanto, e depois voltei a gostar de novo. Além disso, a gente não precisa de tanta dedicação a um tema tão antigo e improvável, a não que esteja escrevendo uma tese sobre isso, e que aplicar esse tipo de coisa à vida prática é uma insanidade, no meu ponto de vista de descrente, mas essa parte eu só pensei, não disse.

Foi tudo muito rápido. A lojinha faliu e a deusa Hel não se abalou. Entregou o imóvel e desembarcou em minha casa com os apetrechos cerimoniais. O casamento foi uma cerimônia simples, sem sinais nórdicos, e vivemos quatro semanas e meia de paixão calorosa e alegre até ela anunciar que estava com medo. Com medo de deixar de gostar de mim. Aconteceu. Em duas semanas voou para a Califórnia para encontrar-se com um guru descoberto na internet - Um garoto cheio de vida, quase um surfista, parecido com o Thor do desenho animado.  Adeus, Asgard.




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