terça-feira, 27 de outubro de 2015

Maria morre não morre



É inevitável, minha querida, disse o marido; não tem jeito, se conforme, é assim mesmo, repetiram outros familiares, pois era realmente um caso perdido, não adiantava espernear, reagir e usar todas as forças porque as forças já eram poucas e, nessas horas, são últimas e cada vez menores, e então Maria percebeu que iria, é o destino de todos, embora ela não concordasse com isso, a moribunda, e gostaria mesmo era de estar sozinha, na floresta, urrando contra a morte, feito um bicho. Pelo menos poderia morrer a seu jeito, sem gente do lado para designar um rito, como quem diz é dessa forma que se morre direito.

Mas estava também morta de vergonha, mais uma morte, o escândalo que estava fazendo diante de todos, muitos torcendo pelo fim da agonia, mais para se livrar da cena, porque Maria não queria ir embora, apesar dos oitenta e cinco anos, muitos bem vividos, e talvez por isso mesmo preferisse esticar ao máximo sua permanência, mesmo entre aquele estranho grupo de parentes e amigos, cuja desculpa de abreviar seu sofrimento acabava por causar-lhe imensa decepção. Eles só faltavam fazer uma contagem regressiva e pareciam torcer freneticamente pelo desfecho, enquanto ela sentia-se traída pelo tempo, e lamentava a desvantagem em relação aos que ficavam vivos, a desinformação permanente que a morte provoca, sem contar o principal, o apagão, o pluft, a passagem pela porteira que dá acesso a coisa nenhuma.

Os outros seguiam ali por bons instintos, a crença na ida desta para uma melhor e algum sentimento religioso que ajuda muita nesses momentos, mas em termos práticos pode ser nulo, no mínimo sem garantia, e caso existisse outra coisa do outro lado, trata-se de uma mudança e tanto de ambiente, além do fato de ter que começar do zero num lugar desconhecido. O principal, no entanto, é que Maria não acreditava em tal possibilidade e por isso seu escândalo começava a incomodar.

Então, numa tomada de um fôlego espetacular, capaz de queimar monitores de frequência cardíaca e respiratória, causando ainda um estrondo no quarto do hospital, Maria saltou da cama como uma atleta, desligou-se dos fios em seus braços e encheu a plateia de impropérios, provocando também espanto nos médicos e enfermeiras, incapazes de explicar tal ocorrência sob a ótica da medicina.


Maria ainda viveu mais dez anos e morreu dormindo, sozinha como queria.

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Teoria da dependência



Voltei, depois de muitos anos, para continuar o jogo.  Adélia banca meu final de vida, deixa trocados em cima da mesa, compra os remédios, passa o cartão de crédito no supermercado. Há um preço alto. Diante de todos, ela revela minha situação de pobre coitado, não tem onde cair morto, diz, com risinho de vingança. Os outros ficam sérios por fora, mas riem por dentro. Não sei por que a vingança, se não fiz nada. Talvez seja apenas a necessidade de Adélia em ter alguém por perto para suster e esmagar, morder e assoprar – e mesmo longe, estive por perto, levando sermões pelo telefone. Sempre saía reduzido a nada, como ocorre agora, todos os dias, desde a minha volta.

Não sou de todo inútil. Sirvo para escrever e-mails em inglês. O destinatário é o soldado desconhecido, um cara que Adélia conheceu em Nova York e que deu uns tiros no Afeganistão. Quando voltou da guerra, virou teatrólogo. Um gênio, segundo ela. Nunca o vi, nem em fotos, mas tenho ciúmes e raiva dele. Li sua última peça; é uma bosta. Melhor se continuasse matando afegãos. Mas escrevo, como um castigo, e reescrevo, quando ela pede mais sentimento e tensão. Sou um escravo de sua mente perversa, conforme já me disseram. Você faz tudo que ela manda? Faço até mais. Não por necessidade de algum dinheiro nem pela própria sobrevivência. Faço por vício.

Se ganhasse milhões, de repente, voltaria do mesmo jeito. As compensações estão escondidas em algum lugar, num ponto infinitesimal da cabeça de Adélia, em algum sentimento que não aparece, mas pode ser detectado, como uma partícula. Não sei o que é, mas existe. Talvez seja o momento em que me faço de vítima e entrego inteiramente os pontos; e aí ela chega, com tudo, todas as forças, a Cruz vermelha, a Cavalaria, o pronto socorro, o jantar no restaurante mais caro. O melhor é quando desliza a mão sobre meus cabelos – o máximo que pode fazer em termos de carinho. Desliza a mão suave de cremes importados, e embora diga você não tenho jeito, acalma minha tragédia, reduz meus dias de fracasso a um único instante sem ensaio de desespero.

Então eu durmo, acordo e a batalha recomeça. Já pensei em encerrar essa história ou fugir, mas nessas horas minha alma subalterna à sua se recolhe e decai. Como algo que deve ser assim e assim será, eternamente. Às vezes, quando estamos sozinhos, é ainda mais severa e cruel. Adélia se empenha dia e noite em aniquilar minhas vontades, planos e ideias. Quanto ao desejo, deixa correr, até provoca, mas não o sacia.  Portanto não faz aquelas cenas de dominação só para a plateia. É também algo íntimo, uma necessidade e um estilo. Quem sabe um estilo de loucura que, em essência é o mesmo, o meu e o dela, e sem o qual não haveria como seguirmos em frente.

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Miniminimalista


Tudo pronto para quase nada. Espetáculo Infinitesimal em dois atos. No primeiro, escuro completo; no segundo, silêncio total. Não há cadeiras na plateia e o público não é visto a olho nu. Só existe teoricamente nesta nova montagem de Hamlet. A questão, no entanto, está posta: ser ou não ser? Os críticos se dividem. Um deles, neologista, chamou a peça de miniminimalista, assim, sem hífen. Outros consultaram físicos de partículas. Em todo caso, houve uma profusão de elogios à linguagem enxuta e concisa, pois tudo foi comprimido à pergunta essencial, sequer pronunciada, mas sugerida de forma sutilíssima por um ator que sequer estava em cena.

A vaga e célebre montagem veio para mudar nossa acomodada noção de diversão e arte. Agora, dizem, não é mais nada daquilo que conhecíamos como teatro, embora a fórmula já tenha sido tentada, no século passado, numa peça sobre o Gênesis, onde também não havia atores. O big-bang bíblico teve alguns inconvenientes. Quando Deus disse “haja luz”, não houve, por questões técnicas com a iluminação. Mesmo assim, o Todo Poderoso seguiu adiante, clamando pela expansão no meio das águas e aí, de fato, peixinhos de papel crepom circularam ao redor da arena, amarrados em fios de nylon, bem perto da arquibancada, quase diante dos nossos olhos. Arrancou surpresas e aplausos. Mas foi só.

O que vemos no recente Hamlet é a efusiva presença da ausência, o conceito no lugar de coisas e pessoas, o fim definitivo da penosa produção teatral - carpintaria, artilharia e outras dificuldades logísticas. Uma entrevista coletiva, muito bem dada, substitui tudo. Um ensaio ali, outro acolá, contornam o que o que Kant chamaria de  "pseudoproblema" e os astrofísicos de “singularidade”. Trata-se, enfim, do instante zero da dramaturgia nacional.  "O resto é silêncio".

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Urubus na sala


Não havia plano B e o A era fraquinho. A ideia: comprar guarda-chuvas e vendê-los na Avenida Paulista em dias de temporal, na saída do metrô. Comprei. Investi o que restava na mercadoria e desde então não choveu. Todo dia eu olhava a previsão do tempo. Nada. 0 mm. Em casa, o estoque de comida estava no fim e numa tarde, antes de cortarem a luz, vi na TV que o Estado enfrentaria uma seca, talvez a maior de todos os tempos, consequência do El Niño, ventos alísios soprando no sentido oeste, através do Oceano Pacífico tropical, com imensa repercussão em minha vida. Tudo ocorre por acaso, mas o acaso beneficia mais uns do que outros, aleatoriamente, sem sentindo, e é isso que chamam de azar - as repetições desastrosas em uma lista de repetições infinitas, como se a roleta só parasse no 1, eternamente, porque também é uma possibilidade.

Nessa época conheci Adélia, num ponto de ônibus. Contei minha situação. Ela tinha uma história parecida. Em pouco tempo ficamos amigos. Adélia pagava minha passagem com vale-transporte. Eu levava dois ou três guarda-chuvas. Esperava um erro da meteorologia. Só que a meteorologia já não errava mais. Virou uma coisa sagrada, como a Bíblia;  está escrito, assim será.  Existem onze mil estações meteorológicas no mundo, sem contar os satélites geoestacionários e os de órbita polar. Nas fotos, a Terra era azul, só azul, sem manchas de nuvens.

Outro problema é que os guarda-chuvas estavam ficando velhos, jogados pela casa – uma casa desarrumada, cheia de guarda-chuvas; uns abertos e outros fechados, formando um conjunto estranho, como uma instalação da Bienal. À noite, no escuro, eu tropeçava naquela coleção assombrosa. Adélia visitou-me pela primeira em janeiro e conheceu meus urubus esquálidos e inertes, no meio da sala, alguns com hastes quebradas. No quarto, deitou-se no colchão sem colcha ou lençóis, desnecessários no calor, e não mostrou espanto com nada. Estava cansada. Também vivia sua comédia de erros. Tentava vender cosméticos que ninguém comprava. Falta de tino para os negócios e uma cara sofrida que não combinava com cosméticos.

Tínhamos trabalho fixo no passado. Adélia chegou a ser dona de uma loja de antiguidades, mas o estoque acabou. Vendeu tudo, gastou o dinheiro, entregou o ponto. O mercado de antiguidades tem esse problema: as coisas precisavam ficar velhas e isso demanda tempo, e quem compra às vezes não vende; emperra o mercado. Eu escrevia numa revista sobre esoterismo, mas a revista faliu. A vantagem foi livrar-me dos textos absurdos sobre fantasmas quânticos, Deus da quinta dimensão e o poder das pirâmides. Nunca acreditei nessas coisas. Tratava como ficção. Enfim, depois dessas atividades, ficamos jogados por aí. Lembro que Juntando nosso capital não dava para uma semana, mesmo com a dieta à base de macarrão e sardinhas em lata. Ela foi ficando comigo, na escuridão, e depois sem água.  Pelo menos fechou os guarda-chuvas e espanou a poeira.

- Você sabe qual é o coletivo de guarda-chuvas – perguntou?

- Acho que não existe – respondi. A gente conversava pouco. No escuro, as palavras vão escasseando, como a água das torneiras e da chuva. Quando amanhecia era um alívio. Ela saía para tentar vender seus cosméticos e voltava para tatear comigo dentro da casa. Caíamos na cama para longos silêncios. Ninguém pensava em sexo, embora fosse uma opção naquela escassez, sem nada para fazer. Além disso, tomávamos poucos banhos, com água do vizinho, um lastimoso aposentado com problemas renais. Ele me informava sobre a previsão do tempo.

- Alguma notícia de chuva?

- Nada – dizia o vizinho – O problema é no País inteiro, quem sabe no mundo inteiro.

Nenhuma frente fria a caminho, enquanto a poeira já cobria o céu da cidade, junto com a fuligem da poluição, enquanto o sol caia avermelhado nos lados da Cantareira, enquanto Adélia continuava sem vender cosméticos. Ela costumava a culpar a falta de sorte – não pronunciava a palavra azar – e eu achava que alguma coisa deveria acontecer antes de ter que vender a casinha a rumar para outro lugar, um lugar que chovesse. Vendi um computador velho e a TV – sem energia e sem internet só faziam ocupar espaço.  Nem pensava em outro trabalho. Os guarda-chuvas se tornaram uma obsessão. Primeiro apenas minha, depois de Adélia.

- Guarda-chuvas podem ter outra utilidade – ela dizia, como se estivesse a ponto de lançar uma boa ideia. Não tinha. Talvez para proteger as pessoas do sol, eu pensei, mas isso passou, desde o império nem têm essa utilidade, e antes, há 3400 anos, na Mesopotâmia, um negócio parecido com guarda-chuva – aliás, guarda-sol - era levado por escravos para livrar os reis da insolação. Agora, as pessoas preferem protetores solares.

De certa forma estávamos presos aos guarda-chuvas ou à ideia de que guarda-chuvas, naquela crise imensa, do clima e das finanças, pudesse ser a chave-mestra para uma saída. Porém não chovia, repetia-se o número 1, dormíamos no escuro, Adélia saía para não vender cosméticos pela manhã e o vizinho informava que não iria chover.

- Por que não jogamos os guarda-chuvas no lixo? – sugeriu Adélia

– Porque pode chover assim que a gente fizer isso – eu respondi, olhando para o céu sem nuvens.

No dia em que o vizinho morreu de sua doença renal, caíram alguns pingos, e achei que chegara a hora de partir para o cemitério levando meu estoque, e parecia que finalmente chegara o momento, pois caíram uns pingos e depois ouvimos um trovão, e seguimos no carro funerário junto com os guarda-chuvas e o cadáver, olhando como a chuvinha ganhava força de tempestade. A água já escorria pelo meio fio e o trânsito começava a parar. À beira da cova, poderíamos proteger os parentes e amigos do morto, cobrando cinco reais para protegê-los do aguaceiro e já seria o começo do negócio no ramo de guarda-chuvas. Mas quando chegou o momento de todos se juntarem ao redor da cova, como nos enterros de filmes, o céu clareou de repente, mais uma vez o número 1, e voltamos para casa, eu e Adélia, abraçados e silenciosos, para deitar no escuro, como sempre, e esperar o dia seguinte, por uma nova chuva, a venda de algum cosmético ou qualquer ocorrência singular.

Duas semanas depois, jogamos os guarda-chuvas no lixo e não choveu. Não havia mais o vizinho para informar a previsão do tempo, Adélia foi embora, com seus prospectos de cosméticos, e fiquei na casa vazia, esperando o dia amanhecer, inteiramente liberto da minha obsessão, ainda sem plano B, mas achando que a saída de cena de alguns elementos – Adélia, o vizinho e o os guarda-chuvas – poderia significar uma nova disposição para os fatos, embora isso fosse apenas uma possibilidade, como a eterna repetição do número 1. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Nunca mais


Já tentei algumas vezes, mas achei complicado, ela disse, sobre morrer. Nenhuma tentativa foi muito séria, mais um ensaio, quase sempre comprimidos. Uma cartela. Vomitou. Ficou zonza e arrependida. Também se perguntou o que acontece depois. Analisou com calma as vantagens e as desvantagens do nada, a possibilidade de um escuro permanente, alguém do outro lado. Não gosto dessa conversa, eu disse, por que não espera a hora? Todo mundo se vai, um dia, aí você resolve seu problema. Qual é mesmo o problema? O de sempre: tédio.

Não fiquei com cara de reprovação; só curioso. Cada um põe e dispõe. Só avisei que só vemos a morte pelo lado de fora, o sucumbido teso parado inerte, mas como um pêndulo também se mexe, mesmo parado, como ponto final no escuro. Coisinhas fazem um rebuliço fabril por dentro, e ninguém vê – alma ou átomo, tanto faz. Bichinhos sem vida, de malas prontas, infinitesimais, todos discutindo em língua pisca-pisca, luminescentes, ou em ondas de luz. Veja em que confusão você irá se meter.

Os pedacinhos do mais ínfimo pedacinho vão embora, como se vai embora do emprego. Não têm mais o que fazer. O corpo fica; o corpo não sabe disso, pois desmaia para sempre. O que eu falei era suposição, para distraí-la, e pela primeira vez notei que prestava atenção. Mais atenção ainda quando criei que os miudinhos não carregam nossas informações, não sabem quem são – são quase coisa nenhuma. Apenas ocupam espaço, fazem número; com eles não existem copos meio vazios ou meio cheios, pois lotam tudo. Perambulam por anos a fio, até encontrarem outra hospedagem. Vi num livro. Você tem uns que já foram de Shakespeare ou de Gengis Khan.  Então é uma reencarnação efêmera. O futuro afeta o presente e até o passado. Você pode estar lá na frente com os mesmos problemas. Passado, presente e futuro estão moldados, em fatias pré-existentes. Essa equação já existe. Por isso pode ser inútil matar-se, eu disse, porque depois pode ser pior. O tédio pode ser pior. Tudo pode ser pior do que agora.

Dei-lhe o que podia: um enredo sem pé nem cabeça. Ela prometeu não tentar mais - nunca mais. 


Às vezes basta explicar que não há explicação.  

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Voo no escuro



Quando o piloto anunciou o pouso de emergência, seguimos as instruções de praxe, dobrando a cabeça contra os joelhos. Havia uma estranha calma a bordo, como se o aviso fosse banal, algo como abrir a mesinha à sua frente para serviço da refeição. Nenhum sinal de medo, exceto o meu, um pavor não expressado para não destoar dos demais. O 733 mergulhou de bico, como uma seta num rio, mas um rio fundo, talvez sem fundo, porque passamos muito tempo naquela posição e, enfim, quase horas depois, a velocidade começou a ser reduzida – primeiro aos poucos, depois quase parando, até chegar a um ponto em que era possível sentir uma sensação de conforto, embora estivéssemos ainda na vertical.

Com a voz serena, o piloto pediu que todos voltassem à posição normal, mas achei complicado, pois estava olhando para as cadeiras da frente e elas estavam em cima. Mesmo assim, a comissária veio em minha direção, andando normalmente, contra a gravidade, e perguntou se eu queria alguma coisa, um copo de água, uma Fanta, um uísque.

- Quero uma explicação – eu disse -. Quero saber o que aconteceu. Por que estamos assim, como um obelisco enfiando no chão, de ponta cabeça?. A aeromoça riu, trouxe um uísque, e ninguém se espantou por ela estar andando pelas laterais do avião, às vezes no teto, igualzinho a Fred Astaire em Núpcias Reais. Só não havia a música, apenas o som contínuo do ar condicionado.

- Onde estamos? – perguntei -. Ela respondeu: chegamos.
- Chegamos onde? – insisti.

Ela deu com os ombros, enquanto os outros passageiros já retiravam suas bolsas e casacos do compartimento de bagagens. Vi perfeitamente quando um homem de uns sessenta anos, também com os pés colados no teto, perguntou as horas. Eu ainda estava com o cinto de segurança e só iria soltá-lo em caso de uma explicação convincente, mas a aeromoça foi clara: o senhor precisa sair. De repente, sem o cinto, também passei a andar pelo teto e a situação bizarra não impediu que prevalecesse meu lado de consumidor mal tratado. Incrivelmente a sensação de conforto me incomodava. Não gosto de ficar sem respostas.

- Vou fazer uma reclamação assim que chegarmos ao aeroporto -. Ela informou que não havia aeroporto, e, portanto não havia guichês da companhia aérea nem serviços de táxis nem uma cidade propriamente dita.

- Na verdade não há nada – acrescentou a comissária, de lenço vermelho no pescoço. Só sei que chegamos e temos que sair. São normas da empresa. Eu embarcara num voo para a Cidade do México e agora estava de cabeça para baixo, enquanto outros estavam de cabeça para cima, enquanto um grupo de crianças se divertia com aquilo.

A aeromoça acrescentou mais dados às minhas dúvidas. Disse que houve mudanças, mudanças bruscas, no decorrer da nossa viagem. Os outros sabiam disso, menos eu.

- Por que vamos descer se não há nada lá fora? Cadê a cidade do México?

- O senhor pegou o voo errado, mas não dava mais para retornar ao aeroporto de origem. Vamos tomar as providências necessárias – falou a comissária, do jeito que as comissárias falam – risonha e impessoal.

Quando as portas se abriram só havia escuro. Um escuro espesso, gelatinoso, sem cheiro de nada. Dava para pegar no escuro, moldar alguns pedaços nas mãos, e por isso acendi um isqueiro para ver mais adiante. A luz do isqueiro não fez efeito. O próprio fogo também era maleável e frio, pegajoso como gel. Pensei em mau tempo, mas a comparação não era boa. Uma escuridão palpável como aquela poderia ser tudo, mesmo um fenômeno natural.

Quando descemos as escadas, abrindo caminho na escuridão espessa, os outros passageiros sumiram e procurei seguir em linha reta e assim, em linha reta, continuei andando até hoje, ainda atrás de sinais de vida, ainda atrás de uma conclusão para uma história absurda, ou num golpe de sorte, de um balcão de informações.

...


Resultado: desisti de continuar aquela sinopse. Desliguei o computador e saí por aí, certo de que não terminaria meu primeiro projeto de filme de mistério. Tudo era muito manjado, tirado de outras obras de ficção, e o pior é que eu não sabia como explicar as cenas que criei. Faltava lógica, base científica, personagens consistentes. Além disso, aquela massa escura era uma parede que impedia o prosseguimento do filme. Deu um branco – um preto, para ser mais claro.


Foi assim que abandonei o cinema e voltei à minha cidade, no sertão, para retomar a vidinha de funcionário e escritor regionalista. Para contar histórias do meu avô, dos meninos da fazenda e do gado magro da seca. A crítica não gosta mais dessas coisas, mas no céu escuro havia milhões de estrelas e os andarilhos andavam com os pés no chão.

sábado, 5 de setembro de 2015

Comida


Enquanto viveu, o Diabo amassava uns pãezinhos deliciosos. Em seu auge, Lúcifer, em pessoa, servia ciabatas e brioches fumegantes, saídos do forno-inferno, e ainda tinha manteiga, derretida sobre a crosta crocante, Cream crackers, Krathong-thong estalantes nos dentes, untando-se no palato ao ponto, massa perfeita; e outros com lavas de mel, os pães doces, variados, internacionais, como kringel da Estónia, sem contar os recheados com figo. O Diabo nos servia até mesmo comidas desconhecidas naquele tempo.

Jesus também entrou no ramo alimentício com igual disposição, transformando cinco pães de cevada e dois peixinhos no primeiro bandejão da história, suficiente para alimentar uma multidão, conforme nos contam os quatro evangelhos canônicos, com informações gastronômicas de Mateus, Marcos, Lucas e João. Cinco mil pessoas saíram satisfeitas com a refeição. Houve outra experiência-milagre para um público menor, quatro mil comensais, mas a farra culinária foi interrompida até a Santa Ceia, cujo cardápio variado e farto ainda hoje nos dá água na boca. Tinha peixe com molho agridoce, pão ázimo, carne de cordeiro, guisado de Esaú, salada de aipo, ervas amargas e, na sobremesa, compota de frutas com mel. Nada mais justo para um último repasto.


Desde então não existe mais almoço grátis.