segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Suely



Sem nada de especial para fazer naquela tarde, coloquei o disco de Nelson Gonçalves para tocar ao contrário e uma vozinha diabólica deu o recado: “Suely te trai”. Não acredito nisso, deixa pra lá, eu pensei, mas a duvida terminou ganhando e fiquei com aquilo na cabeça. Tanta coisa para falar, o fim do mundo, por exemplo, e logo o nome de minha mulher aparece, reforçando desconfianças antigas, até mais consistentes, sobre o que ela anda fazendo por ai. Quando coloquei o disco de trás pra frente Suely não estava em casa, como quase sempre.

Agora é isso. Rodo a musica de Nelson Gonçalves o tempo inteiro, no sentido anti-horário, e o pior é que a voz convence. Não só pelo que parece dizer, mas pela sonoridade sombria, como se alguma criatura estivesse borbulhando num pântano, um sussurro rouco que às vezes deixa escapar agudos nervosos, igual a um diabo adolescente naquela fase de mudança de voz. Não adianta ouvir muitas vezes; o espanto é o mesmo. O próprio Nelson piora a situação, pois o aviso do Ilariê do demônio está justamente na faixa "Alguém me disse" - "Alguém me disse/Que tu andas novamente/De novo amor, nova paixão/Toda contente".

Tudo já passou por minha cabeça até mesmo chamar Suely e perguntar o que ela tem a dizer sobre tão estranha ocorrência. Ponderei e pondero ainda que passaria por doido.  Vi num programa um cara explicando que o cérebro costuma enganar a gente provocando alucinações visuais e auditivas. Ela podia dizer que não ouviu nada demais e ponto final e eu não iria ter coragem de acusá-la a partir do sobrenatural do meu mundo de antigos vinis.  O fato de o long-play ter enviado uma mensagem para mim, em meu idioma, tira o sentido de tudo que acredito e desacredito. Sem contar que a língua mais comum nesse fenômeno e o latim, conforme li na Internet.

Não interessa. O mistério ficou em segundo plano, caso seja mistério, caso não seja. Preciso mesmo é saber de Suely e de seu jeito dissimulado, suas fugas do assunto. Nunca esteve num lugar especifico; é sempre “por ai”. Depois vem um "boa noite" no lugar de sexo e dito por uma carinha feliz, que deve ter passado uma boa noite com o novo amor, toda contente. Suely não para em casa, enquanto eu roo de ciúmes, a ponto de encontrar uma revelação, ou pelo menos advertência, numa aparente frase de Nelson Gonçalves em sentido contrário ou a voz de outra coisa que se agarrou ao vinil. Ou não passo de um homem enlouquecido de amor e ódio, um ou outro, ou os dois, ou ainda inveja de Suely por ter encontrado alguém tão compreensivo, capaz de deixá-la feliz, mas sem tirá-la de mim de uma vez por todas.

Sobre a voz, o mais provável é que seja impressão. Mesmo assim, o murmúrio do disco me deixou confuso, cheio de pensamentos ociosos, a ponto de seguir adiante e ouvir parte da minha coleção de modo invertido. De cada um dos LPs vem um sinal diferente, acrescentando informações sobre a rotina de Suely, seus usos e costumes fora de casa.  Num surgiu Everaldo, noutro apareceu Aragão; nos clássicos para um jantar a dois, o suspeito Ornelas, meu vizinho, um sujeito quase à moda de Machado de Assis, portanto perigoso.  

Não quero assustá-la, senão ela vai embora, mas não quero parar com minha diversão macabra das vozes entortadas, ou apenas ondas, seja lá o que for. Antes era ciúme; agora é passatempo. Cada tem seu jeito de se divertir.  O importante é que todas as noites, apesar dos medonhos recados dos discos, Suely sempre volta para casa.


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