sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Cidades projetadas



Não se iluda; nada é real. Hoje, cidades projetadas são assim – uma miragem. Projeta-se de um ponto bidimensional e aqui está ela, em três dimensões, ou quatro, incluindo o tempo. Não podemos pegar na cidade, sentir seu cheiro e ouvir seus gritos. Não podemos tocar em seus muros porque a mão atravessa a falsa matéria como se atravessasse o vácuo. Não é palpável, mas funciona.

O trânsito flui perfeitamente e, em caso de um raro engarrafamento, novas ruas e avenidas surgem no final do expediente.

A cidade é invisível, como aquelas de Ítalo, e ainda dá para ter uma casa, projetada de longe, feita de luz, quase incandescente, e um chuveiro cuja água não molha e, mesmo assim, lava o corpo. Eventualmente, lava a alma.

Falsa Sereia

Falsa Sereia era o nome de uma balsa que levava os moradores de um lado ao outro do rio, e em dias chuvosos a embarcação se perdia entre os pingos, esfumaçando-se sob o vapor da água, por assim dizer. Mas ninguém nas pequenas cidades das margens se espantava com o sumiço da Falsa Sereia e o povo tratava aquilo sem apreensão. O que emergia era um sentimento melancólico causado por chuvas fora de época e pelo isolamento no meio daquelas montanhas. Na hora da balsa, nos dias de chuva, as pessoas se davam a pensar sobre a inexistência da cidade do outro lado e como seria a vida caso a Falsa Sereia não voltasse nunca mais.

Para sentir de forma mais densa o rastro dessa tristeza peculiar era preciso ter estado em duas situações: olhando a balsa sumir lentamente, até mesmo do quintal de casa, e estar dentro dela, na mancha escura que se instalava quando a chuva caía com tudo. Todos passaram por isso e dentro da vagarosa Falsa Sereia iam as criaturas que, nesses dias de chuva, experimentavam a mais pura sensação de não existir nada além do rio.

Os recolhidos

Aos poucos, enquanto surgem novas levas de gente, os já gastos se recolhem, quase se escondem da luz, porque a natureza é assim, sempre foi injusta, sempre tira de ação as idades avançadas e mata antes da morte. Mas debaixo do cobertor, sob recordações nem tão antigas, comparadas com os anos das coisas, eu me insurjo contra o criador ou mesmo contra o nada, pois nem mesmo nesse espaço do tempo nos é dado o direito à verdade. Ninguém diz com certeza a razão de certas ocorrências serem do jeito que são. Há um silêncio enorme aqui dentro e lá fora tudo continua a girar como antes, sem a mínima participação do meu corpo. Eu apenas penso e de nada adianta pensar.

Por sorte encontrei Mileva, vinda de tão longe, também uma recolhida. Nas nossas conversas ela só quer saber se Deus existe. Nada de sexo, pois nos perdíamos em modelos matemáticos, especulações, filosofias. Mileza queria uma resposta rápida, antes de partir, uma vez que estava a ponto disto, doente, embora animada, certa de que tínhamos uma pista, um raio de luz ou uma barreira, seja como for, uma solução.

Remédios

Nada de sustos, ouça uma música calma, aconselhou a médica, e eu expliquei que música calma me emociona e perco a calma, e termino com palpitações, e ela, é só você ouvir música que não emocione, então; então eu prefiro não ouvir nada, eu disse e ela: eu sei, eu sei e logo adiante pediu para esquecer essa história de musica e receitou repouso. Só que não quero ficar parado, expliquei, pois sou muito ansioso, e ela acrescentou que tinha pílulas para ansiedade, amostras grátis, veja só, basta tomar uma na hora de dormir. Só que não quero dormir, eu respondi, enquanto ela ia ficando mais impaciente, mais nervosa, mais parecida comigo. 

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