terça-feira, 10 de março de 2015

Máquina de escrever



Quando a máquina chegou, bastava qualquer um ditar sua história e ela traduzia para o estilo literário escolhido, forma e conteúdo equilibrados, sem erro de digitação, gramática ou lógica. A primeira versão trouxe opções de romance, conto e crônica. Era só o começo. O novo modelo, lançado no ano seguinte, pôs à disposição dos novos escritores aplicativos para poesia, ensaio e peças de teatro, cada um com um amplo cardápio de linhas a serem seguidas, incluindo a linha ideológica, além de termo de adesão a determinadas fontes do pensamento ocidental.

Caso o usuário esgote sua cota de personagens reais, a máquina oferece um banco de personagens: sujeitos de nariz adunco, mulheres de olhar macilento, gordas patuscas, pobres, ricos, párias da sociedade, enfim um estoque que inclui protagonistas, oponentes e figurantes de qualquer origem, todos embalados com suas falas e ações minuciosamente descritas. No mesmo site, é possível adquirir um pano de fundo histórico, como sua rua (ver pelo CEP) ou a Rússia do século 19.

A Máquina, cheia de sensores e censores, pode sugerir mudanças no final ou em todo o texto, caso o usuário tenha dificuldade de expressar abstrações ou tenha vida uma vida chata, ruim para biografia. Também pode achar a história sem graça e salvá-la com um upgrade na forma e no detalhe, salpicando aqui e acolá alguns penduricalhos proustianos.  
A novidade causou grande impacto, mas trouxe contradições. O que parecia uma questão restrita ao mundo literário e a seus poucos leitores, logo se transformou num grande problema, inclusive no mundo digital. Todo mundo queria escrever sua obra e escrevia, causando uma inflação de títulos na praça e na nuvem, e dessa forma países inteiros passaram a ter mais autores do que leitores. Ninguém se dá ao trabalho de comprar o livro do outro, pois prefere o seu próprio, para reler e guardar como recordação.


Os escritores mais antigos, acostumados a fazer esse trabalho sozinhos, preferiram aposentar-se da literatura. Houve tentativas periféricas de voltar aos métodos antigos, sem a máquina, mas naufragaram. Perdia-se muito tempo para escrever um livro. Mas ainda há uma livraria artesanal, com clássicos do período pré-Máquina. Fica ao lado de um antiquário. 

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