segunda-feira, 21 de abril de 2014

Preciosa e a morte



Veja, Preciosa, eis o morto. Morrem em muitos lugares, muitos jeitos, mas ele teve sorte, faleceu, como se diz de forma macia, e não ocorreu violência nem dor, pois estava em casa, dormindo, seu Antônio, quase cem anos, idade boa para findar, alívio na família, embora aquela mulher chore sem parar;  a sobrinha, eu acho. Passei aqui só para mostrar como é que acaba e a pessoa fica. Olha o nariz, Preciosa, tampado com algodão, sabe por que? Para estancar a saída dos lo enterrarem logo começa a inchar, os gases começam a saireuando a flor murcha. Expliquei, Preciosa, voco enterrarem logo começa a inchar, os gases começam a saireuando a flor murcha. Expliquei, Preciosa, vocíquidos, saem por todos os buracos, até do olho e do olho do cu. Tudo tamponado e se não enterrarem logo começa a inchar, os gases também querem ascender, sulfeto de hidrogênio e metano, se não me falha a memória. Deve ser o que chamam de alma.

Disseram que você  não pode ver essas coisas, é muito nova etc;  e além disso não tem importância didática mostrar a uma menina na flor da idade o que acontece quando a flor murcha. Expliquei, Preciosa, você é diferente, gosta disso, pensava em apreciar um morto e chegou a hora, a sua e a dele, e não me espanto com sua curiosidade; pode chegar mais perto; seu Antônio não morde.

A morte, Preciosa, é uma merda. Todo mundo tem medo dela, até os padres. Contam que os ateus, nos últimos minutos, clamam por Deus, se convertem rapidamente, rezam o Pai Nosso. Os crentes podem sofrer ainda mais porque alguns entram na crise da dúvida sobre a vida eterna. De qualquer forma, a morte é feia, cheia de secreções fedorentas, e há o cheiro das flores, Preciosa; não combina com a podridão.

Mas não é só ver o morto, não, Preciosa; agora também é o momento para saber como a gente convive com isso. Tem vários jeitos e o melhor é não pensar no assunto. Há gente que é o contrário, não tem outra preocupação mais branda, e fica sempre lembrando do dia que chegará, ao pó voltaremos, e finalmente pobres e ricos estarão sob a mesma terra e sob os mesmos vermes e de outras coisas que você vai ouvir falar durante a vida.


E tem o nosso caso, Preciosa. Também pensamos o tempo inteiro no absurdo do fim, mas tentamos extrair dele alguma diversão e arte; um sentido, uma ideia, um dístico, um rondó, um haikai. Por falar nisso, este ano é o centenário da morte de Augusto dos Anjos, aquele poeta macabro da Paraíba. “Na podridão daquele embrulho hediondo/Reconheço assombrado o meu Destino!” é a nossa cara, não é, Preciosa? Parece agora, com seu Antônio morto, no meio da sala.

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