quarta-feira, 30 de abril de 2014

Primeiro, comer



Quando Roberto veio propor aquele negócio eu tive medo de me tornar outra pessoa.  O negócio era legal, no sentido jurídico,  eu acho, mas se opunha às minhas convicções de vinte e dois anos. Envolvia o recebimento de comissões e  por isso já era suficiente para despertar minhas desconfianças. Na época, eu ainda era honesto. Resultado: recusei esta e outras propostas e fui ficando cada vez pobre enquanto meus amigos ficavam cada vez mais ricos.

Eu considerava a ética a base de tudo,  o summum bonum, a finalidade suprema, como propôs Aristóteles. Minha máxima virtude veio dos meus pais e de leituras juvenis, entre clássicos gregos e russos e especialmente Berthold  Brecht; menos por seu teatro, mais por suas inclinações políticas. “Pergunte sempre a cada ideia: a quem serves?”, eu recitava, a cada tentação, como um crente recita versículos da Bíblia.

Só pelos quarenta anos a ficha caiu. Uma ficha enorme e pesada. Estava sendo injusto comigo mesmo. Se há só uma vida, tenho que retirar dela o máximo possível, inclusive  dinheiro, garantia de conforto, pelo menos, pois eu andava meio solto por ai, sem emprego fixo, morando num quarto e sala.  Mas aí fiz outra descoberta:  ninguém queria mais corromper um pobre coitado,  ainda mais se ele for conhecido como incorruptível, igual a mim. Perdi a chance, eu pensei.

Mesmo assim, resolvi procurar Roberto.  Encontrei Roberto num restaurante chique, pagando a conta de uns três sujeitos de paletó e gravata e pedindo nota fiscal em nome da empresa. Ele marcou para “depois” do almoço e por isso não almocei naquele dia. Ficamos no bar de sofazinhos encostados na parede e Roberto explicou que a conversa era privada, sobre negócios, e talvez os caras não ficassem à vontade. Tudo bem, entendi. Fui direto ao assunto, ainda assim ambíguo, imitando o Nelson Rodrigues porque achei a pergunta a cara de personagem dele: “Roberto, o que faço para me corromper? ”

Roberto se fez de desentendido,  pensando como reagir e de seu rosto de espanto saiu uma gargalhada.  Era o jeito dele quando não queria responder diretamente uma pergunta, fazendo de conta que nada lhe foi perguntado.  Por uns instantes pensei em recuar, aderir  à risada,  pesei o pós e o contra, e voltei ao assunto por outros meios. Deixei clara a minha situação no momento, minhas dificuldades, os cinquenta anos apontando adiante e  eu sem um tostão no bolso. Roberto, meu único amigo, enfim me levou a sério, cheio de teorias

— Os tempos são outros, meu caro, a nomenclatura mudou – disse Roberto. — Os negócios não crescem sem certa heterodoxia, pequenos ajustes razoavelmente legais,  arranjos socialmente aceitos em nosso meio.  Com todas as amarras da legislação,  os impostos e a burocracia não conseguiríamos crescer como empresários.  Se não  crescemos,  não ofertamos empregos, o País não cresce.  Dai, a necessidade de sermos mais proativos, meu caro.  Seu problema é ter chegado com duas décadas de atraso aos novos procedimentos.  Não acompanhou as revoluções do mercado.

Ouvi de cabeça baixa, concordando com ele, disposto a pegar alguma migalha do paraíso. Roberto não tinha muito a oferecer a um neófito, mas não saí de lá de mãos vazias. Restou-me a tarefa subalterna de trazer e levar maletas de dinheiro a parceiros, como se referem hoje em dia a alguns intermediários em negociações de toda espécie. Roberto tranquilizou-me: é apenas uma relocação de capital por uma via mais expressa, querendo dizer que depositar aquela grana no banco traria algum problema com o fisco, apenas. Comportamento padrão nesses casos, acrescentou Roberto, acrescentando ainda que dessa forma a moeda circularia de maneira mais rápida, dando dinamismo às operações em curso e, por tabela, economizando papel, resultando  em comportamento ecologicamente correto.  O momento me fez acreditar nele,  precisava, e  suas palavras saíam num tom muito sério e discursivo; parecia um pregador.


Depois, fui à luta, perdi alguns sentimentos, entre os quais a vergonha, mas carregava maletas de dinheiro junto a culpas contraditórias. Estava num processo claramente imoral, longe, bem longe do jovem ético que fui um dia.  Havia também, de outro lado, as necessidades do homem maduro que vendeu a alma na bacia das almas por falta de coragem e despreparo. Se era para entrar no esquema, qual a razão que me impediu de aceitar a proposta de Roberto, feita há 20 anos? Sem respostas, segui em frente, no mesmo cotidiano das maletas, sem fazer mais  perguntas e tentando conforto numa interpretação torta da  frase de Brecht que li na adolescência: "Primeiro comer, a moral, depois".   

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