quarta-feira, 19 de junho de 2013

O conformista bairrista



Eu tenho certas ideias, mas não quero expô-las em público, pois não sei se estão corretas, não sou do tipo capaz de ir até o fim numa discussão, sempre cedo e, mesmo humilhado, dou por encerrada a conversa, mudo de assunto e no último caso corro para o banheiro. Com política, a situação se agrava, e se for num bar se agrava ainda mais, por causa do álcool, e nunca deixou de se agravar, desde ou antes das tavernas de Dostoiévski, e nesse ponto o escritor explica bem o caso ao lembrar que as pessoas não têm apenas o costume e o gosto de divulgar aquilo que pensam, mesmo as coisas mais sórdidas, os maiores absurdos; querem a imediata concordância.

Então eu penso que não adianta. Porque se não for assim, da maneira deles, os cheios de certezas entram em fúria e é possível que quebrem não só as tavernas de São Petersburgo, mas também a cara dos divergentes. Tamanha paixão pelas ideias não é novidade para nós. As brigas se repetem nos bares do meu bairro, todos os dias, por causa das próximas eleições e de vez em quando em relação à existência de Deus e à origem do homem a partir do macaco ou de Adão e Eva. Por isso apenas, bares são reduzidos a destroços, cadeiras voam nas madrugadas, o sangue escorre nas calçadas. É um bairro atípico, reconheço, e dadas as características do lugar o melhor que se faz é ficar calado ou juntar-se discretamente ao grupo majoritário. Na hora da briga, costumo fazer aquele movimento dos lutadores de boxe, estudando o adversário, mas só estudando, deixo a prática para quem se envolveu mais apaixonadamente na discussão. Por que não fico em casa? Ora, o pessoal é amigo, conheço desde criança, nasci aqui, embora reconheça o medo de perder alguma parte do corpo nessas escaramuças. Sou ligado a um lado, discretamente, mais por amizade, menos por alinhamento ideológico.

A luta envolve homens e mulheres, velhos e jovens e uma noite bem agitada é medida pela quantidade de feridos que dá entrada no pronto socorro. Não há armas, ainda bem, embora duas mortes tenham sido registradas no mês passado, mas ambas por enfarte; eram fumantes e conhecidos pelo palavreado em voga nos anos 50, como “a nação não pode suportar tamanha afronta”. Pois é, vivemos desse jeito, em eterna conflagração entre grupos de partidos políticos, uns contra o governo, outros a favor, além dos ateus x religiosos, mas à luz do sol todos se respeitam. Em nenhum outro bairro é assim. O mais grave é que os moradores acham natural, como uma tradição, une façon d'être, o espírito do nosso povo etc.

Tenho sobrevido sem arranhões nesse pedaço da cidade em guerra filosófica. Sim, os assuntos são tratados no mais alto nível, a princípio, e só depois desanda em esculambração generalizada. Aí, uma simples citação de Voltaire ou Renan Calheiros, até mesmo uma citação de Renan Calheiros, pode ser motivo de desavença e troca de socos. Ainda dizem, depois disso tudo, que somos politizados. Fico na minha, mudo, sem balançar a cabeça em qualquer sentido, mas na verdade acho tudo isso muito exagerado. Poderia ser igual ao bairro vizinho, onde dia de eleição parece dia normal, não tem gente de perna quebrada e sem dentes, como aqui teve, no último pleito.

Minha neutralidade é notada como covardia. Não ligo. Guardo minhas ideias, solto umas aprovações discretas para minha turma e seguro as coisas mais sombrias para meu próprio consumo. Nem digo que não vale a pena correr risco físico por causa de uma opinião porque já se trata de um posicionamento político, uma declaração de fuga do debate, e portanto sujeita a agressão.


Tenho todas as críticas possíveis a esse comportamento classicamente provinciano, mas no fundo da alma vem uma onda dizendo que, no fundo da alma, eu gosto daqui. Quem é do bairro tem isso no sangue, ninguém sabe explicar, e mesmo que eu tenha menos, sou apenas observador, vejo um mundo fervendo na minha frente, pessoas vivas e em movimento, paixões incontroláveis e cadeiras voando na madrugada.        

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