quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Formato cético para o sobrenatural




Se de repente ele se visse confrontado com explicações diferentes dos seus conceitos, com todas as evidências, mudaria de lado na mesma hora, mas constrangido e a contragosto. Seria o caso de lhe provarem a existência de um determinismo, um propósito em todos os atos humanos e no movimento dos astros. Ele, um cético, cederia. Imediatamente iria atrás de um modelito teórico, agora de cunho religioso, para enquadrar o problema do seu jeito. O autor entraria em nova fase intelectual, sempre do lado da verdade, e acima de tudo porque se uma coisa é assim, não há por que dizer que não é.

Então, diante de um acontecimento transcendental, ele tentará uma adaptação a tudo aquilo, sem perder o principal, a razão. Apela à razão para explicar a irracionalidade, não sabe se é possível, pois se lhe aparece um fantasma, por exemplo, a própria memória, construída a partir de conceitos racionais, perderá o sentido. Uma aporrinhação, sem dúvida. Toda bibliografia irá embora e será substituída por situações que ele não domina. Cederia para viver, mas viveria em posição secundária diante de pessoas que sempre acreditaram nessas coisas.

A salvação viria pelo amor à forma e descreveria o Paraíso recém-apresentado de um jeitinho seco, poucas palavras, comparações capazes de resumir um parágrafo de paisagismos. Seria econômico na forma, desprezando aquele conteúdo implausível, e cheio de clichês religiosos. Sim, porque todos os delírios da religião estariam ao dispor, incluindo o Paraíso, a vida eterna e o inferno, mas em seu texto sairia com outra sonoridade e ritmo, sem enfeites, como se uma montanha cheia de cataratas fosse apenas uma pedra molhada. Talvez convencesse os donos desses absurdos transformados em realidade, ou coisa que o valha, que estava certo de seu modelo formal, embora eles, os donos da verdade, sejam absolutos em conteúdo. O mundo, enfim, não era como ele pensava. Está ali Deus, sentadinho em seu trono, para atestar que tudo é exatamente igual à descrição dos livros sagrados, assim como também existe vida depois da morte, no Éden ou nas fornalhas do Diabo.

Nunca acreditou nisso, e ainda conta com a possibilidade de um sonho ou alucinação. Seria uma peça pregada pelo inconsciente? Supondo um acontecimento de tal majestade, suas certezas serão pó, ultrapassadas, e dessa maneira passará à Eternidade como um equívoco. Nesse canavial metafísico, encontrará velhos amigos católicos, com cara solene e grave, sempre repetindo “eu não disse?” Ainda aturdido, ele verá os anjos, e adiante, antigas certezas a escorrer pelo Jordão ou outro curso d’água sagrado.

Chego aqui, com minhas explicações circulares, certo de não ter sido claro sobre o personagem em questão. Recapitulo, pois, alguns pontos acima, ou tento resumir, iniciativas pouco aceitáveis neste mundo da escrita, ainda com risco de provocar a interrupção da leitura. Adiante. As conjecturas de um cético confrontado com o sobrenatural poderiam dar um romance católico. O autor, recém convertido por forca de evidências, passa a descrever sua nova situação sob a linguagem típica de um cético cínico, como o Ivan Lessa reportando uma viagem ao Reino dos Céus. Ele permanece cético, de algum modo, cético na forma. Mesmo espantado, não quer um texto derramado, laudatório, exclamativo. Não, basta a conversão, já deu, agora é levar a vida diante de Deus, bem pertinho dele, como se estivesse com um novo roomate.

Tudo que pensou e pensava se refere ao ato de escrever, disse ele, em voz alta, diante do Senhor, e pouco importava se estava errado, antes, se conseguisse reproduzir seus anos de erro de forma atraente para o leitor. Ficção é ficção, não precisa se contentar com a nova ordem provocada pela prova inelutável da existência de Deus. Usaria a realidade como fantasia e seus tempos de incréu como realidade, e vice-versa, enveredando pela literatura fantástica, mas com armas da boa prosa.

Ocorre que o novo mundo não trouxe grandes surpresas. Com o tempo, passou a conviver com males terrenos, a indisposição física junto à impaciência, cansaço e ansiedade, remédios de laboratórios, quando poderia reivindicar um milagre.

O mundo revelado virou transtorno, e ali, na frente do Senhor, ele entregou os pontos, embora tudo fosse ainda uma hipótese.


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