domingo, 6 de março de 2011

Galo da Madrugada, mito e apartheid social



Por Homero Fonseca


Na terça-feira passada, 1º de março, os jornais do Recife publicaram um Comunicado do Clube de Máscaras O Galo da Madrugada posicionando-se no sentido de “salvaguardar direitos e obrigações inerentes ao uso da marca Galo da Madrugada”.
Assinada pelo presidente da agremiação, a nota adverte: “a utilização de suas marcas em quaisquer meios de comunicação, propagandas, festas, camarotes, eventos e afins, em quaisquer de suas modalidades, escrita, imagem, falada ou reproduzida, de forma integral ou parcial, sem a prévia e expressa autorização do seu titular, constitui violação” à Constituição e à Lei de Propriedade Industrial. Vazada em autêntico juridiquês, a nota detalha as interdições ao uso comercial da valiosa marca. A parte aspeada sugere até uma inibição ao noticiário, coisa, além de absurda, inócua e que, se lograsse êxito, seria totalmente contraproducente, pois o que seria do Galo sem a mídia?

É um documento curioso, merecedor de análise e registro por historiadores, pesquisadores e instituições de pesquisa social.

Na realidade, escancara uma realidade sabida de todos: como o futebol, a música popular e qualquer atividade que reúna grandes massas, o Carnaval é movido a dinheiro. É inescapável. Sempre foi assim, isto é, desde que o Carnaval assumiu, entre nós, as feições atuais, a partir das primeiras décadas do século passado, convivendo, essa inserção no mercado, com iniciativas basicamente lúdicas, mas integradas, afinal, ao gigantesco sistema. O que mudou é a escala e a franqueza expostas no comunicado.

[Lembremo-nos de que, desde épocas recuadas, mesmo as chamadas agremiações populares sempre dependeram de subvenções governamentais para desfilar, o que veio a determinar um crescente dirigismo dos festejos pelas instâncias estatais, substituindo o cassetete pelas verbas e induzindo por completo a formatação da festa, especialmente a partir da década de 1930. Hoje o poder público, consciente do trunfo mercadológico em mãos, vai em busca de patrocínios privados, como as grandes cervejarias, por exemplo, repassando parte da receita às agremiações. Os meios de comunicação completam o circuito, dedicando espaços mais que generosos à folia, arrecadando os tubos em publicidade. É a roda da fortuna girando a todo vapor.]

Fundado em 1978, quando exatamente 75 foliões, devidamente fantasiados de almas penadas, sacolejaram ao ritmo do frevo pelas ruas estreitas dos bairros de São José e Santo Antônio, às primeiras horas do Sábado de Zé Pereira, o clube cresceu de uma maneira vertiginosa por uma série de fatores, espontâneos ou planejados à luz das ferramentas do marketing. Era realmente uma sacudida renovadora nos festejos de rua no Recife, à época definhando pelo abusivo controle policial-militar-ideológico imposto pelo regime de 1964.

Nos anos 80, o Galo, vitaminado pela adesão constante de mais e mais foliões, já se tornara robusto e se apresentava com várias orquestras em cima de caminhões. Dois anos depois – conforme o saite do clube – “já era impossível o som das orquestras alcançarem ‘naturalmente’ a multidão” e recorreu-se à fórmula dos trios elétricos.

E aí, salvo engano, ocorreu um fato que seria fundamental para a explosão dos números: competindo por espaços nos noticiários nacionais, os setores de jornalismo da Rede Globo da Bahia e de Pernambuco fizeram um curioso leilão de público, a cada ano aumentando delirantemente o tamanho da festa no Recife e em Salvador (isto rendia mais prestígio e faturamento para as emissoras locais). Obviamente que todos se beneficiavam dessa emulação: o próprio clube, as prefeituras, o patriotismo bairrista. Então, as coisas deixaram de ser espontâneas e viraram uma jazida explorada em todos os seus filões. E, em 1991, chegou-se ao número mágico: o Galo arrastara “mais de um milhão de foliões”! Daí para chegar ao Guinness Book, em 1994, foi moleza. E a marca consolidou-se definitivamente como “o maior bloco de Carnaval do planeta” (desconfio de que, se a corrida espacial houve avançado mais, chegaríamos às raias do sistema solar).

Nada contra. Assim caminha a humanidade. Apenas creio ser necessário “contar o caso como o caso foi”.

[Um adendo: em 1996 ou 97, quando eu chefiava a redação de um jornal recifense, comecei a desconfiar do coro da Maria-vai-com-as-outras, trombeteando, como já se fazia, que o colossal desfile já ultrapassava o número de um milhão e meio de pessoas. Ora, o Recife contava com pouco mais de um milhão e duzentos mil habitantes, ou seja, tinha mais gente no Galo do que a população da cidade! Tudo bem, vem o pessoal da região metropolitana e os turistas, mas também é preciso descontar quem não gosta de Carnaval, os evangélicos, os católicos que fazem retiro, as crianças de berço, os muitos velhos, os que fogem para as praias e as serras, os doidos internados, os doentes, os presos etc. Há ainda o problema do espaço físico. Estávamos no campo dos mitos. Chamei um engenheiro e pedi-lhe para, em cima de um mapa da região por onde o clube se espraiava, e levando em conta os parâmetros para cálculo de multidões, aferir o público do desfile. Ele fez um estudo preliminar cujo resultado apontava algo como 350 mil pessoas, no máximo 400 mil (o que é gente pra caramba). A disparidade era tão grande em relação ao número mítico (menos de um terço) que resolvi suspender a pesquisa. Não valia a pena entrar em choque com o “resto do mundo” (rssss) e virar um inimigo do povo. Mas fiz uma recomendação expressa à redação: nada de falar em milhões e que tais – a cobertura seria a mesma, com o mesmo destaque de sempre, mas registrando “a grande multidão”, sem dimensionar o número exato, que aliás ninguém conhece com certeza. Ir de encontro a mitos é um pouco como combater moinhos de vento e essa não era minha prioridade.]

O que me incomoda substantivamente é o ‘apartheid social’ evidenciado no Carnaval: as multidões embaixo, como coadjuvante, e a elite nos camarotes refrigerados tietando celebridades vazias e efêmeras. Claro que desde o entrudo, povo e elite nunca se misturaram completamente na festa, apesar do seu razoável caráter democrático e da oportunidade mais ou menos consentida de inversão de papéis sociais (e até sexuais, vejam as “Virgens”). Brinquei uma vez no Galo, em fins dos anos 80, lá embaixo, no asfalto, apenas evitando o corredor polonês da Rua da Concórdia, o que exigia mais saúde e menos juízo do que eu tenho. Foi bom, mas depois se tornou impraticável. Para quem tem disposição demais, certamente continua valendo a pena.

Mas fora isso, viva o Galo! E viva também “quem é de fato bom pernambucano espera um ano e se mete na brincadeira”, como não faço mais, por comodismo, velhice chegando ou porque, morando na praia de Barra Grande, talvez eu tenha virado alagoano. Bom Carnaval para todos.

EM TEMPO (06/03/11)
Leio nos jornais que o Bola Preta, do Rio, superou o Galo, ao levar para as ruas DOIS MILHÕES de foliões. O dado basea-se numa avaliação genérica da PM do Rio (hum!). Pelos mesmos motivos que desconfio dos números mágicos do Galo, também intuo que a "superação do recorde" pelo simpático Bola Preta, num crescimento ainda mais vertiginoso e espantoso, carece de comprovação científica e tudo indicar situar-se no vaporoso terreno do marketing.

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