quarta-feira, 10 de março de 2010

Abelardo da Hora

A casa do escultor Abelardo da Hora - Rua do Sossego, Recife - é um ambiente curioso para o recém-chegado à vida e obra de seu morador. Duas salas, separadas por um corredor de uns dez metros, abrigam dois estilos marcantes na carreira de 70 anos do artista. Na primeira, figuras esquálidas de retirantes. Na outra, peças de concreto polido ou bronze retratam nus femininos. Mulheres opulentas, renascentistas, em poses eróticas, estão a poucos metros da denúncia da fome e da miséria.

Esse contraste sempre marcou a carreira de Abelardo, mas o essencial, segundo os críticos, é que ele nunca se curvou aos modismos. Preferiu comover-se tanto ao retratar as condições subumanas da sociedade nordestina quanto corpos femininos que transmitem ao mesmo tempo sensualidade e recato. “Quando ele modela um braço de uma de suas deusas temos a sensação única de ser distinguido com o privilégio de assistir ao nascimento de Vênus, de Ceres, da beleza e da fecundidade, na hora em que Deus criou a carne”, observa o pintor e discípulo José Cláudio. “Sua arte, sensível aos valores plásticos e visuais do modernismo, não é episódica nem faz concessões”, acrescenta Mário Barata, um dos maiores conhecedores do conjunto de uma obra que inclui mais de mil trabalhos espalhados pelo mundo. Esculturas e desenhos de Abelardo estiveram ou estão em locais tão distantes quanto Ulan Bator, na Mongólia, no Seminário Metodista do Tenenesse (EUA), no Euro Museu da República Tcheca e no jardim do marchand Abelardo Rodrigues, no Cosme Velho, Rio. O Recife tornou-se seu museu a céu aberto, com figuras expostas em parques, praças e na entrada de edifícios. “Abelardo da Hora define sua arte não como finalidade hedonística e experimental, mas como linguagem-brado e como gesto de trincheira”, afirmou o crítico José Geraldo Vieira em artigo para a Folha de S. Paulo em junho de 1967.

Escultor, desenhista, gravador, gravurista e ceramista, Abelardo Germano da Hora é um dos raros expressionistas das artes plásticas brasileiras. Nascido em 1924, na Usina Tiuma, em São Lourenço da Mata, bem perto da capital pernambucana, chegou ainda criança ao Recife, em 1932. Desse período inicial na cidade grande, conheceu as brincadeiras de crianças pobres do bairro da Caxangá, que iriam influenciar parte de seu trabalho na vida adulta.
Mais tarde, num ambiente em que já brilhavam artistas do porte de Vicente do Rego Monteiro (1889-1970) e Cícero Dias (1907-2003), Abelardo cursou Artes Decorativas no Colégio Industrial Professor Agamenon Magalhães, estudou escultura na Escola de Belas Artes de Pernambuco e também concluiu o bacharelado na Faculdade de Direito de Olinda. Mas nunca exerceu a profissão de advogado. Mesmo porque a chance de virar artista bateu-lhe a porta em 1942 quando o industrial Ricardo Monteiro Brennand entusiasmou-se por seu trabalho. Resultado: entre 1943 e 1945, morou na casa dos Brennand e, nos espaços do Engenho de São João da Várzea, realizou vários trabalhos em cerâmica, jarros florais e pratos com motivos regionais em relevo e terracota.

Na casa, Abelardo ocupava o último quarto, ao lado de Francisco Brennand. Filho do patriarca. Na ala esquerda ficavam as duas irmãs dele. Uma delas, adolescente, foi a causa da saída do artista da residência de seu mecenas. “Fiz uma escultura - a torre dos meus sonhos - inspirado na menina. Abraçado com as pernas dela, havia um sujeito com a minha cara”, conta Abelardo. “Quando eu levei a estátua pra lá, ficou aquele silêncio e seu Ricardo não gostou”. Foi embora no dia seguinte, mas não perdeu a amizade da família, que conserva até hoje. Saiu, mais deixou um artista na casa: influenciado por Abelardo, Francisco também resolveu trocar o Direito pela escultura.

Atelier Coletivo

A partir daí o trabalho de Abelardo da Hora começou a marcar a toda uma geração de artistas e intelectuais de Pernambuco. Tanto em estética quanto em política, teve forte influência nas carreiras de artistas plásticos que desenvolveram trajetórias brilhantes em todo o País. Nesse time estão o amigo de infância Francisco Brennand, além de Wellington Virgolino, Corbiniano, Ionaldo, Gilvan Samico, José Cláudio e João Câmara.

Ao mesmo tempo em estudava arte na Escola de Belas Artes - onde teve aulas de desenho figurado com a professora Fédora do Rego Monteiro, irmã do pintor Vicente do Rego Monteiro - Abelardo desenvolvia o gosto pela política. A opção pelo comunismo marcaria toda a vida do artista. Integrante do Comitê Estadual do Partido Comunista Brasileiro - PCB, o escultor chegou a ser preso mais de 70 vezes e só escapou de ser morto, como todos os seus companheiros porque desde 1948 é casado com Margarida, irmã do ex-prefeito Augusto Lucena (1916-1995), que mantinha boas relações com os militares e pertencia ao partido do governo, a Arena.

Em 1945, no entanto, Abelardo tinha a vida de escultor como prioridade, embora fosse leitor freqüente do jornal comunista Classe Operária. Nesse ano, embarcou para o Rio de Janeiro para construir uma carreira na então capital federal. Instalado numa pensão do centro, conseguiu seu primeiro trabalho como modelador de esculturas para os túmulos do cemitério São João Batista.

O segundo emprego foi na Fábrica de Manequins Santa Cruz. Conhecia pouca gente na cidade até ser apresentado aos irmãos Augusto e Abelardo Rodrigues, também pernambucanos, que ofereceram uma garagem no Cosme Velho para que ele pudesse trabalhar. Do lado político, um de seus contatos mais freqüentes, quase sempre nas mesas do bar Vermelhinho, eram o poeta Rossini Camargo Guarnieri, militante do PC do B, e Carlos Alberto, irmão de Abelardo Rodrigues. A idéia de Abelardo, em 1946, era participar do Salão Nacional de Belas Artes e para isso esculpiu “A Família”, um de seus trabalhos mais marcantes. Mas o presidente Eurico Gaspar Dutra cancelou o evento. Desencantado, o escultor voltou ao Recife. “A Família” ficou no Jardim de Abelardo Rodrigues e hoje seu destino é ignorado.

A volta a Pernambuco deu início a uma trajetória venturosa. Em abril de 1948, depois de um ano de trabalho duro, realizou a primeira exposição de esculturas do Recife na Associação dos Empregados do Comércio, sob o patrocínio da Prefeitura do Recife. Depois do sucesso da exposição, criou com o artista plástico Hélio Feijó (1913-1991) a Sociedade de Arte Moderna do Recife (SAMR). Em 1952, fundou o Atelier Coletivo, grupo que iria influir profundamente na produção cultural de Pernambuco.

A idéia era ousada. No livro “Memória do Atelier Coletivo”, o autor José Cláudio, um dos integrantes do movimento, descreve a abrangência do projeto:
“Otavio Morais [jornalista] era amigo de Barbosa Lima Sobrinho e influiu para que o governador aderisse à velha ideia abelardiana de um movimento artístico unificado, juntando numa casa a Sociedade de Arte Moderna do Recife, o Teatro do Estudante, a Sociedade Brasileira de Escritores e a Associação Brasileira de Escritores (ABDE), a Orquestra Sinfônica do Recife, todas as entidades culturais de Pernambuco”.

O Atelier Coletivo, como se vê, não trataria apenas de artes plásticas. De seus quadros faziam parte, por exemplo, os escritores Aderbal Jurema (1912-1986) e Hermilo Borba Filho (1917-1976) e o teatrólogo Luiz Mendonça. Mas foi com quadros e esculturas que o movimento cresceu, com a promoção de salões de arte em Pernambuco e participação em outros espaços do País, como o Clube da Gravura de Porto Alegre, dirigido por Carlos Scliar. Da capital gaúcha, a exposição ganhou o mundo. Percorreu todos os países da Europa, a União Soviética, China, Israel e Mongólia.

Para Abelardo, o atelier tinha um significado político forte. Era um projeto em que se procurava uma identidade nacional a partir da democratização do ensino da arte e da pesquisa da cultura popular. Em seu ideário estava a perspectiva de reunir, num mesmo propósito, artistas, intelectuais, governo e povo. Em que pese sua inclinação socialista, o movimento não impôs vetos a seus artistas, como já ocorria na União Soviética. O saldo mais importante do Atelier Coletivo: ainda hoje a nata das artes plásticas de Pernambuco é formada por alguns de ex-integrantes. “Tínhamos uma tendência não acadêmica, com tempero do modernismo, mas nossas maiores afinidades eram com a arte mexicana, especialmente o muralismo de Diego Rivera”, afirma Abelardo. Alguns de seus trabalhos, como o mural “Nabuco e a Abolição”, deixam clara essa influência.

Da fase do Atelier Coletivo, as praças do Recife mostram vários trabalhos de Abelardo. A maior parte surgiu durante a gestão do prefeito José do Rego Maciel - pai do senador Marco Maciel -, que patrocinou o projeto de erguer esculturas em locais públicos. São figuras de tipos populares, como “Os Cantadores”, “O Vendedor de Caldo de Cana” e o “Sertanejo”, exposta na Praça Euclides da Cunha, no bairro do Derby. “Todas foram feitas no atelier, com a turma vendo e aprendendo”, diz o escultor.

O atelier não foi o único movimento artístico que Abelardo criou ou ajudou a criar. É o caso do Movimento de Cultura Popular (MCP), quando ele era chefe da Divisão de Parques e Jardins da Prefeitura do Recife na administração de Miguel Arraes, entre 1960 e 1962. O MCP também refletia um sentido altamente engajado e seu objetivo era “ampliar a politização das massas, despertando-as para a luta social”, conforme preconizavam seus participantes. O movimento tinha vários pilares além das artes plásticas, com destaque para a literatura, por meio da participação de escritores, jornalistas e poetas como Ariano Suassuna, Carlos Pena Filho, Aloísio Falcão e Hermilo Borba Filho. Havia até mesmo um trabalho de alfabetização, comandado pelo jovem educador Paulo Freire (1921-1997), e entusiastas no Brasil inteiro - Darcy Ribeiro, o mais exaltado desses admiradores à distância, chegou a prescrever a idéia para todo o País. Mas ai veio o golpe de 1964 e a festa do MCP acabou.

No auge do Movimento de Cultura Popular, em 1962, Abelardo criaria um de seus trabalhos mais pungentes: a série de 22 desenhos de bico-de-pena “Meninos do Recife”, que foi lançada em álbum como nota de apresentação de Miguel Arraes. Um desses desenhos ilustra a edição francesa do livro “Geografia da Fome”, a pedido de seu autor, o médico e professor Josué de Castro (1908-1973). Os desenhos mostram a miséria das crianças de rua, com seus pés descalços na lama, pernas e braços finos, barrigas inchadas, rostos angulosos e magros e vestimentas de molambo. Nos olhares, tristeza e desespero. Poeta bissexto, Abelardo assim definiu em versos sua coleção:

São habitantes anônimos
Dessa cidade alagada,
De limo e pedra formada
Sob marés
Submersa
Em lodo inconsistente,
Consubstanciada
Vasto poço de afogados,
Habitação de mitos e fantasmas,
Imenso pasto de pestes,
Cidade desabrigada.
Habitantes desse pântano
Sem escrituras, sem títulos
Submetidos ao ócio
Que gera a fome e o vício
e um calendário implacável
de miséria e imprevistos.
São apenas habitantes
dessa cidade alagada.
Atirados sobre a lama.
Sobre as marés da desgraça.

Depois de 1964, quando seus “Meninos do Recife” foram apreendidos pelos militares - e parte da coleção queimada em frente ao jornal Diário de Pernambuco, junto com exemplares da cartilha de Alfabetização do MCP - Abelardo, já fora do PCB, teve duas outras incursões fora de seu Estado natal: São Paulo e Paris. Nos dois casos, teve que deixar a família no Recife. Na capital paulista foi acolhido pela amiga arquiteta Lina Bo Bardi e seu marido, Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo (MASP). O escultor conhecera Lina, no início dos anos 1960, quando ela dirigia o Museu Solar do Unhão, em Salvador. Com ajuda do casal, ele conseguiu emprego como cenógrafo na antiga TV Tupi. Ao mesmo tempo trabalhava na instalação do Museu Lasar Segall, que seria inaugurado em 1969, e na série de desenhos “Danças Brasileiras de Carnaval”. A pedido de Bardi, também participou com novos desenhos da mostra que abriu a Galeria Mirante das Artes, em 1967, e organizou uma exposição de artistas pernambucanos no Museu de Arte Contemporânea da USP, dirigido por Walter Zanini. A mostra era basicamente um reencontro de Abelardo com alguns seus antigos discípulos - Samico, Maria Carmen, Anchises Azevedo e Wellington Virgolino.

De volta ao Recife, em 1968, Abelardo mudou radicalmente de vida e foi trabalhar na empresa de pesca de seu irmão Luciano. Diante das perseguições promovidas pelo regime, não tinha condições de sobreviver de arte. Mesmo porque as pessoas receavam ter em casa uma obra assinada por Abelardo da Hora. Para tirar a família da penúria, o escultor começou adaptar-se ao novo trabalho. Pouco tempo depois de entrar na empresa resolveu comprar seu próprio barco e, mais tarde, um segundo, formando uma pequena frota para atuar por conta própria no ascendente comércio de pescado. A experiência marítima durou três anos. Quando a repressão baixou um pouco de tom, Abelardo retomou a atividade artística em sua casa-atelier na Rua do Sossego e ali produziu uma sequência de esculturas de corpos femininos deitados, que balizaria o “outro lado” de sua obra - o toque da sensualidade em cimento e bronze. “Mulher, objeto de Repouso” foi a primeira dessa série.

São Paulo e Paris

Próxima parada, Paris. O escultor saiu do Recife em 1977, para uma temporada na casa da filha Sara, casada com o francês Jean Louis. Seu endereço era o 15e arrondissement, num espaço de um atelier cedido por amigo. Ali modelou algumas esculturas - uma delas retratando Sara e o genro - e tomou contato com a cena das artes plásticas parisiense, que tanto admirava desde os tempos da oficina dos Brennand, na Várzea. A temporada na capital francesa rendeu bons frutos.

Em 1986, onze anos depois do regresso ao Recife, Abelardo recebeu convite para realizar uma exposição individual no Centro Internacional de Arte Contemporânea. Numa prova de que suas amizades não requeriam atestado ideológico de esquerda, ele teve especial ajuda do então ministro Cultura, o amigo e admirador Marco Maciel. Com o País já democratizado, Abelardo levou a Paris a parte da obra que tanto irritava o antigo regime. Entre as peças maiores estavam “Flagelo”, “A Fome e o Brado”, “Hiroshima”, “Mãe doente”, “Estela para Crianças abandonadas”, “Estela para Crianças e Mulheres Abandonadas”, “Menino de Mocambo” e “Desamparados”.

2009. Em sua casa na Rua do Sossego, o artista mantém um admirável ritmo de trabalho. O burburinho de ajudantes é grande. O escultor vai sempre ao terreno contíguo, de 1.500m², que abrigará o Instituto Abelardo da Hora. Quer ver o andamento de novos trabalhos já modelados. Entre as novidades, a estátua do amigo Miguel Arraes, em bronze, e algumas das peças que fazem parte da Exposição “Amor e Solidariedade”. Vasculha a memória e abre um parêntese (em 1962, viajou com Arraes ao sertão do Araripe, fronteira de Pernambuco com o Ceará. Ali fez uma descoberta ao olhar para algumas pedras no chão. “É gipsita, gesso”, disse a Arraes. Era, na verdade, uma enorme reserva do mineral. Atualmente, o Estado é responsável pela produção de cerca de 1,45 milhão de toneladas de gipsita - 89% da produção brasileira.

Abelardo percorre novamente a casa e para diante de uma de suas musas. É a representação em bronze da artista plástica Mariane Peretti - nascida em Paris e radicada em Olinda. “Ela era linda”, diz, sobre a amiga, que está com 82 anos. Na mesma sala, está o contraste - uma gravura da série “Meninos do Recife”, que lhe rendeu prestígio e prisões. Nesse ponto, tenta resumir sua obra: “Minha arte é feita de amor e solidariedade. O amor eu dedico às mulheres e a solidariedade ao povo”.

@_Lulafalcao


(texto publicado no catálogo da exposição Amor e Solidariedade)

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