segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Em movimento 3

Tantos avisos desnecessários e o principal não veio – a comida. Disseram que os caminhões chegariam dentro de duas semanas, mas até agora só informes públicos sobre “a situação”. Afixaram cartazes anunciando que não há novidades sobre a volta da moeda e do fornecimento de energia. O comércio fica fechado até segunda ordem. Coisas que já sabíamos.

Ando pela cidade. Passei na Feira de Trocas e na tenda da Cruz Vermelha.  Consegui três ovos por um celular sem sinal, que serve de relógio, embora poucos se preocupem com a passagem do tempo. Existe uma variada oferta de produtos, incluindo destilados de fabricação caseira, remédios vencidos e roupas usadas.  

O ideal é sair de casa cedo e só voltar à noite, para dormir, pois moro no 17º andar e os elevadores estão parados. Leio durante o dia nos bancos de praça. Muitos leem nesses lugares. Ontem, na Feira, troquei uma lata de sardinha por dois exemplares da coleção “Grandes Mestres da Literatura”, ainda na ortografia antiga, cheio de “êles” e tremas. Nunca se leu tanto.

Alguns e se estabeleceram ali para fazer negócios - adquirir carros, por exemplo. Carros perderam o valor porque não há gasolina. Mas têm partes úteis para outras aplicações, como as baterias e os assentos. Na semana passada, uma notícia da AFP, captada por rádio – a internet deixou de funcionar – mostrava a Feira de Trocas quase como atração turística, e talvez fosse, caso houvesse voos regulares para cá. Tinha um por semana; agora só os militares e fretados.

Por enquanto, tudo é incerto, embora as autoridades estejam empenhadas em restabelecer o adequado funcionamento do país e em manter a ordem pública, conforme dizem os informes oficiais. Mas as autoridades ainda não sabem o que fazer. Encontrei o ministro da Economia sentado no meio-fio, chupando uma manga, alheio ao movimento das ruas.

Muitos foram embora atrás de oportunidades e empregos em países vizinhos. Os que ficaram se tornaram iguais. Os pobres e os que tinham bons postos no serviço público e na iniciativa privada passam por iguais problemas, ou seja, restou apenas uma classe, carente dos mesmos produtos da Feira de Trocas e dos caminhões de comida, que sempre atrasam e um dia deixarão de vir.


Mas há calma, muita paciência e um vaivém pacífico nos escombros da avenida principal. As pessoas se adaptam. Parece que sempre foi assim. 

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

A última ceia



- O que temos pra hoje?  - perguntou ele, com voz de apetite, enquanto uma única panela esquentava no fogão com três batatas. Eram as últimas batatas. Eram três batatas pequenas. Os olhares em torno do fogo baixo reprovaram o jovem faminto, seu alheamento da realidade, porque esta seria a última ceia. A partir dali a família estaria oficialmente desfeita.  Nem casa nem comida nem roupa lavada.  Cada um trataria de si.

Solução prática. Alimentar todos, todos os dias, estava se tornando uma logística difícil. Ninguém tinha emprego. Ninguém tinha dinheiro. Só o jovem, filho do meio, se comportava como se ainda houvesse galinha ensopada na mesa e até frutas da estação da feira que não existe mais.  

Combinaram que alguns laços familiares seriam mantidos, dentro do possível, mas eventuais ganhos de seus membros, em trabalhos cada vez mais escassos, só para quem trabalhou. Caberia algum agrado em relação aos mais novos e idosos. Ninguém, no entanto, estava obrigado a uma contribuição regular e estabelecida.

Separar para sobreviver foi a forma escolhida pelos pais e o filho do meio achava o contrário, que era apenas uma fase; não o encerramento de um jeito de levar a vida. Na cidade, as pessoas já comiam em cochos da caridade, sem talheres ou modos. De vez quando, um cachorro era chutado para longe da refeição humana.

O rapaz não perdia o jeito de antigamente, da extinta classe média. Mesmo quando as batatas foram postas, repartidas, e só lhe restou um pequeno pedaço, ele comeu com gosto, elogiou “a entradinha” e foi pegar uma praia. 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Viagens


1 - O precipício é enorme. Ninguém sabe a profundidade. Alguns acham que não tem fundo. Há pessoas que pularam há anos e estão caindo até hoje, diz o guia de turismo, orgulhoso daquela maravilha. Surgiu ali do nada. De repente havia o buraco e logo as histórias sobre curiosos e suicidas que, em pleno mergulho, conseguiram conversar com a família, por seus celulares. Informaram que estava tudo bem, por enquanto. Uns se arrependeram; outros se divertiam.

2 - Dois homens na plataforma abandonada acenam para um trem que não vem mais. Ficam ou ficavam o dia inteiro na antiga estação sem trilhos à espera de ninguém. O município convivia naturalmente com o fato. Os dois tentam consertar a paisagem e encenam a chegada de amigos e parentes, carregam malas imaginárias e, enfim, à noite, tomam o último vagão para casa.  

3 - O voo vai atrasar duas horas, anuncia o serviço de som. Ouve-se um murmúrio de lamento, como se ouve na hora de um pênalti perdido. Alguns faltarão a reuniões de trabalho; outros não chegarão a tempo para a festa. Nesses momentos, o destino não é só a cidade para a qual o passageiro pretende se deslocar; o destino aparece em sua amplitude cósmica. Tudo contido, naturalmente, porque a vida tem que continuar, caso contrário os negócios fracassam.  Há uma tensão sutil, mas detectável em muitos passageiros: o medo da morte. Nos aeroportos esse pavor aflora, ou irrompe, quando se pensa na batalha a enfrentar lá em cima contra forças terríveis da natureza, entre elas a da gravidade.


4 - Ao completar sessenta anos, fez cálculos. Dentro de uma ou duas décadas estaria morto, considerando as extravagâncias da vida e ordem natural das coisas. Sentiu-se condenado à morte e só lhe restava a crença em outra existência, talvez menos efêmera, talvez eterna. Nenhuma certeza. Também podia ser nada, como dormir e não acordar mais nunca. Enfim, lances que passam pela cabeça de alguém quando pensa na morte; e todos pensam, algumas vezes. Só que ele pensava o tempo inteiro. Pensa até hoje, aos 94 anos, esquecido das previsões, mas certo da iminência do fim.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Em movimento 2

De repente voltamos a viajar de navio. Muita gente sem condições de pagar uma passagem aérea, então eles fretam navios, enchem de gente e soltam pelos portos do mundo. Assim, fomos nos diluindo. Fiquei por cansaço e falta de dinheiro.

Um monte de avenidas vazias. Ruas inteiras partiram. O mato cresce em bairros desabitados e o comercio registra queda todos os meses. Empregadores e empregados enfim chegaram a um acordo: não tem jeito. Por isso não achei estranho quando vi meu antigo patrão embarcando no navio. Só o cais ainda tem algum movimento. O transporte para o outro lado do mundo é o único negócio lucrativo.

Acordo cedo para arrumar comida, mas as filas são tumultuadas em frente aos caminhões da caridade. Não dá para todo mundo. Às vezes, uma pessoa gasta uma refeição no esforço de consegui-la. É uma luta até chegar perto, enfiar a mão entre muitas outras e dar o bote na cesta básica. Sempre desisto e volto ao meu pequeno estoque de enlatados – sardinhas e salsichas. Houvesse pão, faria sanduíches.

Agora é esperar por uma solução vinda de não sei onde. A informação ficou precária e nesse ramo ninguém confia em ninguém. Dai a dificuldade para entender o que se passa, por que chegamos a isso e aonde iremos parar. Muita gente daqui se enfadou de pensar no assunto. Os que partiram sonham com uma pátria que não existe mais. Os que ficaram só pensam em comer. 

Portanto não confio nas informes públicos, divulgados semanalmente. Não confio nas vagas esperanças de uns poucos. Falo o que vejo: bares vazios, filas para diversas providências de embarque, crianças procurando por seus pais. O frenesi do porto e o lixo sob a chuva

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Em movimento


Sem informes públicos, eles chegaram de manhã e levaram as coisas que restavam. As minhas e as de outros. Colchões de palha, garrafas PET, papéis velhos, três pães de ontem e um rádio; nada de valor.  Fiquei sem sabonete, que guardava para um dia especial, e uma caixa de papelão com os documentos.  Não queríamos sair e eles vão nos deixar sem nada. Já derramaram um copo d’água quando o mais velho ia beber. Não juntem porcarias, eles avisaram, e disseram que iam voltar.

Tem sido assim há muito tempo. Quase todo mundo vagando por ai porque ninguém pode ficar parado num lugar. Eles chegam, confiscam os pertences, separam o grupo, soltam as pessoas em lugares ermos, mas elas terminam se encontrando de novo e tudo recomeça. Não há raiva aparente nos homens da brigada; cumprem expediente. Não fosse a gente estariam desempregados, como a maioria da população.  Por isso, são calmos, levam as coisas, mas não se irritam quando alguém esperneia. Só fazem o que mandaram. Mandaram circular.

Dinheiro é proibido. Levam também. Drogas estão sob severa vigilância porque podem causar indolência e indolentes não se movem, não circulam. Mesmo assim nos encontramos. Queremos rever amigos, discutir a presente situação, dar um jeito de negociar com a brigada. Não sabemos mais quem está no comando. Ocorreu um grande problema sem solução à vista e do qual muitos já esqueceram. Critérios deles lá, nem sei mais de onde se extraem essas ordens.

Incomoda mais a fome e a dor nas pernas. Há dias sem parar num canto mais discreto, longe da brigada, e quando resolvi acampar naquele ajuntamento eles vieram em dois dias. Não deu tempo de descansar nem arrumar comida, que vinha nas caçambas de restos.  Há uma semana não passam por lá.


O último informe público mostra que eles querem distância da gente, embora sejamos muitos. Tudo é dito de forma muito técnica, termos de limpeza urbana, tecnocracias variadas - “uma nova adequação social”, baseada em “avaliações minuciosas”.  Entendi que em médio prazo não estaremos mais aqui e a questão enfim se resolve para os que ficarem. Enquanto isso, circulamos. 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Memórias do centenário




Os cochilos dados lá fora me encheram de cansaço; durmo e acordo mal. Dores pelo corpo. Mesmo assim é bom. Desde início do século passado observo o tempo passando e luzes apagadas no começo da manhã, barulhos da cidade, o Sol sob a névoa nos primeiros passos do dia. Só isso é muito melhor do que nada. Ainda tem o almoço e os analgésicos; mais tarde o tempo vai mudar. A chuva diverte mais do que o cinema.

Não sei o que estou procurando, mas sei o que não quero. Não quero ir. Hora após hora e logo um ano, mais outro, uma década, duas, três, quatro e já são dez. Passei da idade em que naturalmente se morre para tornar-me motivo de curiosidade. Muitos se foram antes de mim, quase todos. O importante agora é puxar pela memória e dar-me alguma nostalgia. Não sou um homem deste século, mas observo-o de longe, do meu mundo sumindo; mudanças épicas e talvez inúteis. Ainda gosto de novidades e das pessoas, mesmo à distância. Quão animadas ficam; ou confusas e espantadas. Mas, enfim, sentem-se dentro do mundo, movendo-se como o mundo. Não é o meu caso. Estou dando uma olhada, quem sabe a última.

Festejo mais a faculdade de olhar do que o objeto olhado. Poucas pessoas aparecem, mais perto, mesmo assim é bom. Na minha idade ninguém consegue ver muita coisa. Às vezes nem lembrar-se. A memória de um único amigo, morto há dez anos, sumiu de repente e ficamos sem assunto. Eu ia visitá-lo nos primeiros meses, mas ele deixou de ser ele. Perdeu a capacidade de guardar o passado, mesmo um passado de dois minutos. Foi ficando estranho e despedi-me de vez, só por desencargo de consciência. O pequeno animal careca ficou para trás, babando, tristonho sem saber por que.

Até o ano passado eu saia às ruas, vagaroso, vestido à antiga. Restaram duas janelas, uma para o pátio interno, outra para a rua. Fico na cadeira, olhando pequenos acontecimentos: a vida da vizinha, sempre ocupada, andando pelo apartamento de ponta a ponta, recolhendo brinquedos de crianças, espanando moveis e quando para diante da TV é só por segundos; desliga desinteressada, e volta ao vaivém doméstico. Ou então, o mundo menor, formigas em linha até o buraco no canto da varanda, talvez meio milhão de formigas, cumprindo a mesma sina de ir, vir e morrer o tempo todo sem que a fila se desfaça.


Penso muito. Já não me preocupo com a qualidade moral dos meus pensamentos. Eis a vantagem imensa de estar vivo e só. Posso alinhar o mundo de acordo com minha vontade, passar por cima das regras, ensimesmar-me sem medidas. São vaidades sem valia no mundo real, mas importa muito nessa idade, mesmo na despedida, enquanto se pode. Mais tarde haverá um mundo sem janelas. 

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Cinema secreto


No tempo do serviço secreto adorava quando me mandavam abortar a operação. Com muito gosto eu voltava ao hotel, arrumava a mala e tirava as balas da minha Walther PPK. Para alguns colegas, senão todos, eu era um fracasso. Nunca pensei desse lado. Acho que uma boa operação não precisa ser posta em prática, pode até ser guardada para outros fins, o cinema, por exemplo. Na agência, todos sabiam que eu levava uma rotina de operações abortadas, mas não sabiam dos meus lucros no mercado negro, vendendo planos secretos para Hollywood.

Muitos eram abortados porque já estavam vendidos. Eu dizia que recebi sinais sobre um vazamento em nosso escritório central e o coronel determinava o fim da operação. Uma dessas foi sucesso de bilheteria e rendeu-me um apartamento em Los Angeles. Não sou tão contraditório. Amo meu país e, se às vezes pratico a traição, é apenas para vivê-lo mais intensamente. Coisas são vendidas e preciso comprá-las.

O principal, no entanto, é que nunca considerei a possibilidade de morrer, mesmo num trabalho dessa natureza, cheio de intrigas e tiroteios. Mantive distância disso, deixei prá lá, nunca fiquei imaginando como seria se o plano fosse executado. Sempre vejo como filmes e o coronel não liga, pois se aborto a operação, outros farão o serviço, de outro modo, e o coronel aparece a seus chefes como sujeito cauteloso porque viu o risco à sua frente e só atacou na hora certa.

Carmen

Antes de entrar no elevador verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar. Na maioria das vezes estão. Minha prima Carmem só traduzia para “verifique se tem alguma coisa aí porque se não tiver é um buraco”.  Tinha essa mania, já conhecida do prédio; implicava demais com avisos e ditos populares e frases em geral. Reclamava, por exemplo: por que Deus dá o frio conforme o cobertor? Não é mais prático dar o cobertor conforme o frio?  Carmen levava tudo ao pé da letra. Mas eu sempre me convencia de que ela estava certa.


Éramos muito amigos numa época em que parecia estranho um cara sair todo dia com a mesma menina e não acontecer nada, mesmo que fosse uma prima. As distrações eram outras, o universo e suas histórias, teorias mal ajambradas sobre tudo e a recorrente marcação de Carmen em cima de aberrações aceitas pela maioria.    Quem dá aos pobres empresta a Deus, pense nisso, ela disse, enquanto emendava certa indignação pelo Fato de o Todo poderoso aceitar negócios com um agiota. Deus chegou ao ponto de pedir dinheiro? Eu repetia: calma, é só uma maneira de dizer.