quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Atolados no escuro


As luzes foram se apagando aos poucos, como o Big Rip, que é a teoria sobre a expansão do universo até o ponto em que todas as galáxias estarão isoladas umas das outras. Um astrônomo amador estava entre os perdidos nas trevas e disse isso apenas em termos comparativos porque havia a sensação de que, mesmo no escuro, as coisas iam se afastando – o próprio chão parecia se esticar como borracha e dai em diante as pessoas se apressaram em tatear entre os escombros da cidade, procurando alguma coisa para comer ou onde se abrigar, ou pelo menos encostar a cabeça em algo seguro. Mas paredes e muros duravam pouco em seu lugar e o próprio grupo, de mãos dadas, fazia um enorme esforço para manter-se unido.

O certo é que se passaram noites sem dias e a energia não voltava nem havia jeito de saber quando voltaria. Findaram as chamas das velas e isqueiros e o facho das lanternas.  Não se viam as estrelas, cobertas de nuvens, e começou a chover sem parar – chuva horizontal, estranha, vinda do Norte -, enlameando a caravana que seguia meio sem destino pela avenida principal interminável, pois prédios antes vizinhos agora estavam distanciados por quarteirões. Homens e mulheres de negócios, gente que teve bons empregos, inclusive na Bolsa de Valores, estavam agora na mistura de lama com escuro, uma substância pastosa e dispersa que não conseguia untar o que restava da cidade.

Seguiram no tato, ensopados, cuidando para não serem separados pelo tecido do chão em movimento, e a chuva lateral continuava, atrapalhando a busca. Seria preciso encontrar um teto, uma singularidade naquele estiramento, pois a enxurrada argilosa, com todos os cheiros da cidade parecia mais acelerada e a água já estava dos pés à cintura. Um homem foi jogado contra um carro, que também já se deslocava no lamaçal ralo, e mesmo com a dor da batida gritou que aconteceu uma coisa séria, e quando perguntaram se era uma enchente, ele respondeu que era muito pior.

- Tudo está se derretendo - disse ele - e o grupo ficou sem saber se era uma metáfora ou se era isso mesmo. Logo os sinais ficaram mais à vista, como o prédio adiante, que adquiriu a mesma consistência da lama e depois se misturou a ela, tornando líquidos apartamentos e salas comerciais.

- Siqueira, fudeu tudo! – gritou o último homem da corrente de mãos. Tentava segurar-se num poste com o braço solto, que também se distendia e se afastava e lá na frente se diluía. Ninguém conhecia Siqueira nem importava naquele momento.

Sob uma marquise, finalmente, encontram uma porta ainda sólida. Estava fechada à chave, com água barrenta até o meio, mas apresentou-se um mecânico com um pedaço de ferro e fez uma alavanca para tirar a porta da frente. Lá dentro não havia água nem lama, embora estivesse também escuro. Umas duas horas de procura, como cegos, e de repente uma luz clara, iluminando uma sala branca e impecável, sem decoração, apenas branca. No centro, um homem em pé, também de branco, perguntou como estava lá fora. Há dias estava trancado ali. Não ficou chateado com a presença dos estranhos. Pelo contrário, parecia alegre por ver gente.

- Acho a situação anti-intuitiva – disse o astrônomo amador.

- Tudo caminha para a desordem – respondeu o homem de branco.

- Eu sei, eu sei que é assim – retrucou o astrônomo amador – Só quero saber por que é especificamente assim, como agora?

- Porque pode ser de qualquer jeito -, respondeu de novo o homem de branco. O homem não sabia ao certo como estava o lado de fora, mas sabia o que era. Tranquilo em seu bunker, informou sobre o aparente colapso. Pelo visto vinha preparando aquele lugar há muito tempo. Não era santo nem profeta; era só um cara prevenido e bem informado. Além de encerrar as questões entrópicas do astrônomo, ele deu muitas referências sobre o estado da matéria e ainda cálculos precisos sobre a composição daquilo que envolvia a cidade e que, ao final, envolveria tudo.

Costas apoiadas nas paredes deixaram a sala suja de lama, mas o homem de branco não se incomodou. Disse apenas que não tinha como hospedar tanta gente porque o estoque de alimentos não daria para todos.

- Vamos ficar porque somos maioria – disse um advogado, exaltado, como num tribunal.

O homem de branco ouviu a proposta sem tomá-la como ofensa ou ameaça e apenas acrescentou que também ele teria que deixar o lugar em alguns dias.


- Talvez não seja o fim – disse ele. – Talvez continuemos a viver, dissolvidos, misturados à matéria viscosa. Talvez seja só uma mudança de estado.

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