quinta-feira, 20 de abril de 2017

Nove mentiras


  1. 1)   Já não tomamos sustos a cada dia. Virou um susto único, compacto, desde que desabamos neste poço sem fundo. Há ocorrências cotidianas, todas espetaculares, mas incapazes de destacar-se do susto inicial. A partir da queda, houve um estiramento da primeira impressão - o dantesco "caos impiedosamente ordenado”. A volta ao passado numa viagem que deixou de ser viagem. Virou um estado.

    2)    Não se iluda; nada é real. Hoje, cidades projetadas são assim – uma miragem. Projeta-se de um ponto bidimensional e aqui está ela, em três dimensões, ou quatro, incluindo o tempo. Não podemos pegar na cidade, sentir seu cheiro e ouvir seus gritos. Não podemos tocar em seus muros porque a mão atravessa a falsa matéria como se atravessasse o vácuo. Não é palpável, mas funciona.

    3)    Dois homens na plataforma abandonada acenam para um trem que não vem mais. Fazem isso porque são os dois doidos da cidade, sempre juntos. Ficam ou ficavam o dia inteiro na antiga estação sem trilhos à espera de ninguém. O município convivia naturalmente com o fato. Os dois doidos tentam consertar a paisagem e encenam a chegada de amigos e parentes, carregam malas imaginárias e, enfim, à noite, tomam o último vagão para casa.

    4)    Nunca me acostumei com espelhos. Olho, parece outra pessoa, nunca eu mesmo diante do espelho, mas alguém se passando por mim do outro lado, imitando meus gestos, cheio de sincronia e truques. O pior é a sensação de que alguém já escreveu isso.

    5)    Não havia plano B e o A era fraquinho. A ideia era comprar guarda-chuvas e vendê-los na Avenida Paulista em dias de temporão, na saída do metrô. Comprei. Investi o que restava na mercadoria e desde então não choveu. Todo dia eu olhava a previsão do tempo. Nada. 0 mm. Em casa, o estoque de comida estava no fim e numa tarde, antes de cortarem a luz, vi na TV que o Estado enfrentaria uma seca, talvez a maior de todos os tempos, consequência do El Niño, ventos alísios soprando no sentido oeste, através do Oceano Pacífico tropical, com imensa repercussão em minha vida. Tudo ocorre por acaso, mas o acaso beneficia mais uns do que outros, aleatoriamente, sem sentindo, e é isso que chamam de azar - as repetições desastrosas em uma lista de repetições infinitas, como se a roleta só parasse no 1, eternamente, porque também é uma possibilidade.

    6)    Vamos promover uma rifa. Promover é a palavra certa. Uma rifa profissional, adequada às nossas condições, enfim uma rifa insubstancial, de algo em que não se pode pegar. Não é geladeira, TV, essas coisas. A rifa é de uma viagem. Alguém que comprou o bilhete pode querer ver o objeto, ao vivo. O mesmo não se pode dizer de quem comprou a possibilidade de uma viagem, uma vez que só o viajante – no caso o vencedor do sorteio – pode mostrar alguma coisa nesse sentido: uma foto, umas histórias, pelo menos, mas só depois. Tudo juridicamente assentado, eu acho. Se o comprador quiser ver a passagem diremos, meu amigo, se não confia em nossa iniciativa, tudo bem. Não precisa comprar o bilhete. Disséssemos isso em relação a uma geladeira, e não houvesse geladeira, estaríamos encrencados.

    7)    Quando a olho, ela se desfaz. Está ou esteve em algum canto da sala e no quarto, quando a luz é apagada. É possível que exista em qualquer espaço – até mesmo em dois lugares ao mesmo tempo -, mas some quase no momento em que aparece. Por isso tem que ser vista em partes. Primeiro, seus olhos, que fornecem à memória o primeiro sinal de desejo. Depois, outras frações do corpo, até formá-la inteira, como quem produz uma teoria.

    8)    Enquanto recebia o soro nas veias fracas, a mãe segurou seu pulso, até quando ele começou a melhorar, a sentir as pernas, olhando em volta e já guardando na memória aquele gesto materno, a eterna proteção, e dali em diante seria este seu melhor pensamento da primeira infância. Os fatos advindos são extensões daquele momento.

    9)    Voltei, depois de muitos anos, para continuar o jogo.  Estou destreinado para a agressiva sinceridade de Amélia, que hoje banca meu final de vida, deixa trocados em cima da mesa, compra os remédios, passa o cartão de crédito no supermercado. Há um preço alto. Diante de todos, ela revela minha situação de pobre coitado, não tem onde cair morto, diz, com risinho de vingança. Os outros ficam sérios por fora, mas riem por dentro. Não sei por que a vingança, se não fiz nada. Talvez seja apenas a necessidade de Amélia em ter alguém por perto para suster e esmagar, morder e assoprar – e mesmo longe, estive por perto, levando sermões pelo telefone. Sempre saía reduzido a nada, como ocorre agora, todos os dias, desde a minha volta.

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