sábado, 14 de junho de 2014

O mundo visto de baixo



Coisas sem valor ganham importância quando se está, como estou, numa situação de penúria, sem um tostão no bolso, mas com uma mala velha onde guardo latinhas,  jornais de ontem, pedaços de livros, garrafas PET, uma ponta de lápis. Minha principal atividade é a literatura; a outra é pedir esmolas. Nem por isso escrevo sobre miseráveis, meus pares da rua. Escrevo sobre sobre as pessoas que me dão moedas. Escrevo sobre os que passam em carros com tração nas quatro rodas, sobre aquela festa que brilha distante no casarão da esquina, sobre moças louras da Oscar Freire, onde faço ponto. Não tenho meios para publicar nem incentivos do setor público ou privado. Pouco importa. Escrevo por escrever. Minha verdadeira invenção é ser quem não sou, pois me incluo nas histórias, feito um Proust rastaquera, arrastando minhas asas decaídas para além dos restos da lixeira – pelo menos no ramo da imaginação.

Não esperem revolta ou inveja. Nem lições políticas nem crítica social. proximidade e dela tiro proveitoximidade e dela tiro proveiro para minha obra. Simplesmente gosto da crônica de costumes da alta roda, tão distante de mim quanto um prato à la carte. Neste ponto, no ponto em que me encontro, a vida dessas pessoas compõe quase um quadro de ficção fantástica, com deuses capazes de conquistar grifes sagradas e prazeres de outra dimensão; um universo de viagens a Avignon e Aspen, haras, comida contemporânea, jatinhos e bucetas cheirosas. Não ligo para a fidelidade aos fatos. Monto minha mitologia dos ricos sem critério, a partir de informações esparsas, e uso o cotoco do lápis, sobre papel de embrulho, para descrever os verdeiros escolhidos de Deus.

Sentado na rua, observo tudo de baixo para cima. Às vezes só vejo a marca dos sapatos, o cerzido perfeito das calças, o cãozinho tosado a quinhetos reais. Em pé, minha visão se amplia e os sentidos se aguçam. Posso supor o conteúdo das sacolas e dos livros de arte, a qualidade dos tecidos e dos adereços; e posso ainda ficar a dois metros de peles imaculadas e de coxas rígidas saídas da academia. Respirando fundo, sinto o aroma Lancôme na atmosfera. Nossa sociedade propocia essa proximidade e dela tiro proveito para minha obra.

Sou o contrário do que deveria ser, mais existo; existo entre o abrigo dos retirantes e as lojas com prtodutos de Milão. Só que não entro no paradoxo e não vivo de comparações. Fujo das análises, embora fosse capaz de fazê-las, ou pense que sim. Nas minhas leituras retalhadas ou vindas do passada não há Lima Barreto nem Dickens, não há nada dessa espécie. Ando pelos cômodos devastados da cidade, entre homens estranhos e mal vestidos e grosseiros, como o Rique de Anatole France, mas os excelentes produtos dessa categoria não me interessam. Prefiro especular sobre os grandes salões iluminados, os jardins impecáveis e as roupas de baile. Não vejo nisso qualquer contradição e tiver alguma ninguém vai notar. Estou longe do olhar crítico dos cadernos literários e de leitores mais atentos. Os jornais são mais úteis nas noites de frio.

Então sigo, cumprindo meu papel e meu destino, ou o acaso, tanto faz, porque uma força qualquer empurra minha narrativa na direção oposta da mendicância, que exerço sem culpas, remorsos ou comoção. Trato do que vejo à distância e um pouco de observação já serve para umas linhas e uns suspiros, eivado de certa satisfação estética. Muito foi perdido nos últimos anos, deixei por aí, no mundo, mas não lamento, não choro, não sofro. Estou fadado a contar o que se passa do outro lado, sem preocupações exageradas com verossimilhança. Nem sei se queria estar lá, de fato, entre os nobres; a cadência atual me satisfaz, como o vício em drogas baratas satisfaz meus amigos esmolés, cuja desgraça não me causa piedade nem indiferença. Eles apenas fazem parte da convivência diária, trato todos com cortesia e humildade, mas eles são descartáveis na hora da escrita.

Também não vejo nessa arte algum valor que sirva à posteridade, a uma ocasional descoberta, mesmo póstuma, e não há sinais de voyerismo puro e simples, uma vez que só que tais situações só me servem por escrito. Uma perda de tempo, é certo, mas o que não é perda de tempo neste ponto em que me encontro? É uma perda de tempo já perdido, se for o caso, mas o importante mesmo é que causa certa satisfação à pequena audiência.

Nos fins de tarde, mesmo no frio, junto os amigos da mendicância – analfabetos, mas sensíveis – e recito para eles meus contos de fadas. Ouvem com atenção e sonham com Morangos Arnaud, belas mulheres e cobertas de cashmere.



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