domingo, 12 de janeiro de 2014

E-mails

Dolores,

Nem sei começar.  Nesses anos de separação ocorreu um monte de coisas fora do meu controle. Quase morri, estive à beira de vários precipícios e num deles pulei, um voo, no início, e logo a queda livre, duas pernas quebradas e aquela sensação de suicida fracassado: alívio de curta duração e em seguida o medo do ridículo, olhares de reprovação, mesmo dos amigos, agora afastados, por causa disso. Entrei na lista dos desequilibrados ou farsantes e uns disseram as maldades de sempre, “queria chamar a atenção”; outros foram mais cruéis, aceitando o diagnóstico de doido, dado por um médico especialista em transtornos, e ele perguntou se eu já havia tentado outras vezes e eu respondi que sim, há cinco anos, quando você foi embora. Besteira contar a verdade, pois certos segredos não devem ser repartidos com psiquiatras porque eles vão formando uma imagem negativa do paciente e despacham receitas cheias de substâncias que transformam a gente em outra pessoa. Virei outra pessoa e ao parar o tratamento, por contra própria, já não sabia quem eu era antes, esqueci. Fiquei com a mesma personalidade farmacêutica, mesmo sem os remédios, num mundo que não fede nem cheira, indiferente ao fato de você ter ido embora, Dolores, sem mais nem menos.

É o pior que pode acontecer. Quando voltei para casa naquele dia, ansioso para cair em seus braços, chorando minha demissão, deparei com uma mulher decepcionada, meu cargo era bom, por que perdi? Era a segunda vez em poucas horas, duas humilhações, o chefe e você, ambos me dispensaram. Numa circunstância dessas, um homem sai para beber, foi o que fiz, e só parei para me atirar lá de cima, daquele prédio grande em frente do mercado, e depois vieram os remédios, quase todos os males catalogados pela DSM, o 'Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais', livro conhecido como a "bíblia da psiquiatria", segundo li na Veja. Lia a Veja porque toda semana a revista anuncia a cura de uma doença a partir de um remédio revolucionário, inventado nos Estados Unidos, com lançamento previsto para o Brasil daqui a dois meses, pois já foi testado em humanos, com excelentes resultados. Mas o assunto não é este, Dolores, escrevo porque de repente passei a me sentir como antigamente, carente de sua presença, e pergunto se você vai voltar.

Paulo,

O tempo passou para todos, Paulo. Casei, tive um filho e meu marido é médico bem sucedido. Família padrão, sem sobressaltos, contas fechadas no final do mês, carrinhos de supermercado, plano de saúde, escola privada, férias no Guarujá. Tenho sogra, churrascos em família e até a possibilidade herança - o pai dele tem dois apartamentos e um pequeno sítio e está com 86 anos, idade razoável para morrer. Então é assim, a vida segue, tranquila, nem preciso trabalhar. É tranquilidade demais. Passo o dia tentando ler alguma coisa, mas sempre perco a atenção, me disperso no nada, passo um tempão fora de mim, outra pessoa, igual a você se sente. A tarde é mais entediante. Vejo TV e me transporto para programas sem graça, só para não ficar aqui, esperando o marido, todo dia, numa eterna repetição.  A cena é parecida, pergunto como foi o dia e ele conta, em detalhes, quando minha intenção era receber apenas um “tudo bem” ou “difícil”, sem aquele enredo comprido sobre patologias, tratamentos, e os que “foram a óbito”. Ele usa essa expressão, “foi a óbito”, é insuportável, Paulo, não aguento mais. Pelo menos você variava, às vezes não voltava pra casa, e quando voltava era bom. Com ele é funcional, previsível, burocrático, parece consulta com hora marcada.







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