domingo, 15 de dezembro de 2013

No meio da agonia



O homem morrendo, se estrebuchando, vendo cachorros latindo adiante e em seguida mais perto, até zunir no ouvido, causando dor e vontade de apressar as coisas. Mas, calma, ainda restam uns tremores e a falta de ar - buscando o ar que não existe, esperando a próxima reação. Dele, um urro; de cantos mais escondidos, uma confusão de ideias, conceitos e argumentos que o homem morrendo tentava resumir, no desespero, agarrando pedaços de explicações num momento cheio de mistério ou vazio, ninguém sabe. Suas últimas forças estavam voltadas para a sobrevivência de alguma frase redentora, uma pérola, um pequeno big bang para acertar as contas com este mundo. Corredores, macas, gritos, anestésicos compondo um espaço de espelhos e labirintos, como pedem os críticos. Morte literária e morte real num mesmo plano, ineditíssimo, mas agora possível, graças às novas tecnologias e à disposição exemplar do autor moribundo. 

O homem morrendo pensou em Malone Meurt*, já escrito e descartável; não era momento de influências nem citações. Queria traduzir o turbilhão, moldar o derradeiro acontecimento de uma forma mais clara e brilhante, pois ainda lhe restava vaidade, a força imensa e máxima da natureza humana. O projeto, no meio da agonia: deixar boa imagem, mesmo naquela situação, mesmo sentindo-se inferior e humilhado diante das preliminares da morte. Olhares piedosos eram piores do que deixar de existir. Depois, concluiu: o desfecho, no entanto, é igual. Tudo cessa para todos.

Estado difícil para elaborações, mas ele seguia assim mesmo, aproveitando intervalos das dores, intervalos mínimos, para dar-se à tarefa de elucidar e a tarefa de elucidar se sobrepunha até mesmo ao medo e à tristeza de ir-se. Iria morrer sem emoção, objeto confuso mergulhado no nada. Do lado de fora não havia mais esperança. Desligaram os aparelhos, mas o coração não parou de bater. A cabeça ainda estava envolvida nesses temas quando o médico voltou para replugar o homem que estava morrendo, e nesse instante nem tanto, porque ele se atracou ao último suspiro, transformando a pequena dose de ar numa espécie de brisa, depois num tornado entrando pela garganta e ventilando os pulmões.  Aos poucos, os corpos de branco foram ganhando corpo, uma luz fraca iluminou o quarto do hospital e o milagre estava feito.

De volta a casa, saudável, o homem sentou-se para escrever sua experiência. Passou ali alguns anos da sobrevida, empenhado na produção de um prelúdio para a morte, longe de amigos e parentes. Tentou de todas as formas e conteúdos, revirou o idioma, garimpou palavras certeiras, andou em volta de si para encontrar o esqueleto da história e não chegou aonde pretendia ou imaginava. Não houve tempo para resignação. Só havia a vontade de retornar àquele momento crítico para tentar novamente construir sua obra póstuma.



* Malone Morre (Samuel Beckett, 1951)

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