quarta-feira, 21 de novembro de 2012

O professor volta para morrer





Debruçado em um tratado sobre a classe média, o professor esquecia-se de tomar seus remédios conforme a bula. Uma dúzia de comprimidos por dia, cada um num horário, todos essenciais à sobrevivência. O professor foi atingido por um conjunto de doenças e fosse religioso perguntaria a Deus por que chegava ao fim da vida com dores em cada centímetro do corpo. Não havia a quem reclamar, enfim, e a concentração no trabalho regia tudo e parecia exercer sobre ele um efeito terapêutico, a ponto de fazê-lo aguentar pontadas terríveis enquanto descrevia a afinidades entre poder aquisitivo e ética nas relações sociais.

O acadêmico é um personagem recorrente, em alguns escritos perdidos, sempre botando banca, e agora volta para morrer de forma asséptica e elegante, diante do magnífico reitor, o corpo docente e os corpos indecentes das alunas da graduação. Gostava de casos com elas e se martirizava mais por questões estatutárias da pontifícia universidade do que pelos sentimentos - dele ou delas. De qualquer forma, nenhuma regra tinha sentido naqueles momentos derradeiros da existência e da conclusão do tratado sobre a classe média. Coisas bastante entrelaçadas, sem dúvida. A vaidade seria satisfeita, mesmo de forma póstuma. Para um ateu, restava antecipar as glórias, imaginá-las, tê-las em perspectiva, com frases de discurso, comentários de seus pares, os parágrafos graciosos dos obituários. Sem contar o choro escondido de algumas orientandas.

Primeira preocupação é não ser piegas. Continua a levar uma vida normal para o público externo – todas as pessoas deste mundo – e a publicar artigos em que trata a enfermidade de forma concreta, narrando procedimentos médicos, aos moldes de Christopher Hitchens (1949-2011, câncer do esôfago), cujo livro de despedida é sempre descrito como ácido e sarcástico, mas sem sentimentalismos. Para o professor, a vida é apenas uma aventura intelectual. O ponto final em seu último ensaio. 




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