sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

A volta do menino-prodígio

Desde a escola era assim, cético e cínico, sem ilusões sobre o futuro, embora preparado para enfrentá-lo com armas racionais. Era uma criança fora do padrão e mesmo sem influência doméstica pregava contra a crença dos colegas em Deus e Papai Noel. Tinha 14 anos quando rompeu com o partido por causa da invasão da Tchecoslováquia, em 1968. Os comunistas locais souberam da dissidência, por meio de um pequeno panfleto divulgado pelo garoto, mas se calaram sobre o assombro de ver alguém tão jovem transformado em teórico da esquerda anti-stalinista. A partir daí, ele tornou-se ainda mais descrente em modelos prontos de sociedade. Uma professora leu uma de suas redações e, assustada, terminou ela própria influenciada pelo pensamento do aluno.

Hoje, no entanto, ele sentia o peso da idade e das decepções. Não era mais o menino- prodígio. Era um velho rabugento diante da morte do melhor amigo.

Nessas horas, ateus perdem espaço. O arsenal de frases é drasticamente reduzido porque não podem pronunciar – muito menos escrever – pensamentos compensadores, do tipo “onde ele estiver estará bem”. Não, não está. Simplesmente o amigo deixou de existir em determinado momento e também chegaria sua hora de embarcar em direção ao nada. Restava-lhe a literatura, mas só a dos outros. Vingou como professor universitário, criou filhos, deu palestras no exterior e ficou por ai. O livro planejado durante toda uma vida não saiu. Saíram algumas páginas pretensiosas. Foram jogadas no lixo por excesso de autocrítica e porque, em boa medida, eram mesmo pretensiosas.

Outro desassossego era a província. Sempre sonhou em deixar sua cidade e enfrentar a metrópole. Mas sabe como é. Havia os amigos de infância, a fama regional e a adulação de seus pares acadêmicos. Quando chegou ao ponto não dava mais tempo. Teria que refazer amizades e inimizades e refazer-se em uma arquitetura indiferente à sua existência. Sentia-se, enfim, isolado na intimidade de seu Estado natal. Com as mesmas pessoas, as mesmas conversas e os mesmos rancores. Poderia ser confortável, até aconchegante, mas não passava disso. Ao final, o enterro no mesmíssimo solo de seu amigo, uma chamada no jornal e ponto. Surgiu então a idéia de escrever as memórias.

Estava na 65ª página do testamento literário quando soube da morte do amigo, sua principal referência naquele lugar. Ambos compartilhavam o gosto por poetas ingleses e, juntos, sentiam-se em Oxford. Discutiam política internacional, enquanto a galera do mesmo bar estava empenhada em adivinhar quem seria o candidato a prefeito. Liam W.H Auden e The Atlantic Montly. Eram “os cosmopolitas”, conforme citação de um jornalista da terra em sua coluna semanal de letras.

A morte do amigo interrompeu a autobiografia. Só mais tarde passou a revisar os escritos e novos tormentos vieram à tona. Queria inserir-se em seu tempo com comentários sobre o mundo, mas ele quase só viveu ali, entre oradores parnasianos e bajuladores de políticos. As páginas iniciais, “Adolescência”, eram basicamente um colóquio entre ele e o amigo agora morto. Desprezavam completamente a cidade e sua paisagem. Nas 65 páginas tinha mais Paris e Psicanálise do que ocorrências locais. A própria universidade ficou em segundo plano diante de uma descrição enorme sobre a viagem que fizeram a Londres, num daqueles programas de intercâmbio. O professor delirou demais e parecia que a temporada londrina dera intimidades com a cúpula do Partido Trabalhista e a intelectualidade chique da cidade. Já era conhecido pelo ego gigante – chegou a usar suspensórios e a fumar charutos - e aquelas linhas provocariam a explosão de suas vaidades. No final das contas, seria lido basicamente pelos conterrâneos e haveria um público suficiente ferino para tratar aquilo como deslumbramento de gente metida à besta.

O livro ficou ali, à espera de novo auto-parecer, e ele virou um diálogo interior com o amigo. Numa passagem, conta que passara bem num teste difícil de superar – o fato de seu companheiro ter deixado algo mais ou menos significativo e que, diante disso, ele chegara a se moer de inveja durante anos. O amigo escrevera um romance fartamente elogiado na província e citado na imprensa nacional. O livro ia e voltava no tempo, sem muito cuidado, e esse era o defeito e o charme da narrativa. Uma parte da crítica adorava o vai e vem frenético do enredo, mas teve gente que achava aquilo uma bagunça sem muito nexo. O professor superou o sentimento desagradável com uma crítica para uma revista literária da capital. Talvez tenha sido este seu melhor texto. Foi bastante convincente ao extrair lógica de personagens batendo cabeças no espaço-tempo e quando chamou a obra de “nervosinha” conseguiu fazê-lo num contexto de elogio.

Mas agora o amigo estava morto e enterrado. O que fazer numa cidade sem ninguém de seu porte e preferências¿ Nesse ponto, finalmente ele decide sair de lá, num período de licença universitária, para tardiamente irradiar suas idéias em um lugar mais amplo e arejado. Viajou para a Cosmópolis, em busca do sucesso nacional como ensaísta numa revista literária, mas chegou numa fase especialmente ruim para o jornalismo de cultura. Terminou no ambiente mais vergonhoso para suas ambições – um blog de literatura. Suas preocupações, porém, ainda estavam na província. O que os conterrâneos iriam pensar? Qual o sentido em mudar de cidade para escrever um blog? Poderia fazê-lo em qualquer lugar, ou melhor, nem precisaria sair de sua terra. Aos poucos, as postagens do blog foram minguando até sumirem.

Ele também sumiu, saiu de evidência. Desintelectualizou-se a ponto de apressar esta narrativa. A família arrumou-se como pôde e o salário da universidade garantia algum conforto. Mas o professor já havia perdido o gosto pelas livrarias, cinemas e teatros. Passou a beber mais do que a média e transformou-se num marido previsível, sentado diante da TV. Agora, o inconformismo que sempre pregara virou-se contra ele. A mulher, mais jovem, quarenta e poucos, resolveu tomar um rumo diferente até deixar a casa com os filhos, já criados.

Ele ficou só, perdido entre conhecidos recentes, tragado pelo cotidiano de algumas traduções de romances populares, daqueles vendidos em bancas de revistas e feitos com papel jornal. Durante um tempo navegou perigosamente entre os mundos dos ricos e dos pobres, pois se numa semana estava na cobertura de um conterrâneo bem de vida, na outra se via obrigado ao vale transporte. Tentou por cima, não deu, passou a tentar por baixo. Escreveu num jornal de bairro, onde até incorreu na poesia (“só porque passou, o momento não perde o seu valor”). Arrependia dos escritos, novos e antigos, e depois simplesmente parou de escrever. Vivia apenas com o salário da universidade, menos pensão alimentícia, e estava infeliz.

A vida na metrópole durou menos de uma década. Um dia, sem mais nem menos, começou a planejar a volta. Perdera o contato com os amigos da província, mas a nova morada não lhe dera nada, a não ser um ar mais velho e cansado. Vagabundeava por ai, enquanto todos trabalhavam. Bebia em padarias, deixou de comprar jornais e freqüentar os conterrâneos bem-sucedidos por inveja e falta de novidades para contar. Voltou.

A cidade natal não o recebeu de braços abertos. Tudo havia mudado, outras pessoas ditavam a vida cultural e o amigo morto agora era nome de rua. Quanto a ele, nada. Retornou à estaca zero, mas desta vez não detestou sua terra, embora não se sentisse mais em casa. Não se sentiria em casa em qualquer lugar do mundo. Mesmo assim, todos os dias procurava sinais de si próprio, tentando encaixar lembranças numa paisagem transfigurada por novas avenidas e pessoas estranhas.

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