quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Resenha




As gêmeas Adélia e Amélia escreveram um romance curioso em parceria. A primeira partiu do início; a outra partiu da última página. No meio do livro, as duas histórias se encontraram e se fundiram em uma só. Editado pelas próprias autoras, a obra não tem título e, conforme o lúdico release das meninas, é desde já o melhor texto de ficção escrito por duas pessoas nascidas da mesma gravidez. Amélia demorou a chegar à página cem, o meio-fim, mas quando avistou sua irmã se aproximando tratou de enviar personagens para o lado de lá, enquanto recebia outros, plenamente informados sobre os novos interlocutores. Finalmente, todos estavam enredados no desenlace de uma trama muito bem amarrada.

As duas irmãs são diferentes, em jeito de pensar e comportamento, daí não serem confundidas, apesar de praticamente iguais na aparência. Tiveram vidas separadas até os vinte e poucos anos, quando se descobriram como dupla multi-arte, capazes de transitar em todos os ramos da cultura, desde a preparação de projetos para as leis de incentivo a saraus spinozanos. Também fizeram malabares. Agora, elas estão na literatura, nessa inusitada experiência, construindo um túnel, numa tarefa em que o meio justifica o fim, segundo explicou Adélia, em entrevista recente, cheia de trocadilhos. Em algum momento, as jovens escritoras chegaram a temer pelo acoplamento das duas histórias, mas neste caso nem tudo estaria perdido; teriam dois livros.

O certo é que as meninas carregaram seu fardo direitinho até chegar às últimas linhas, em sincronia, como nadadoras do Fluminense, embora o fardo seja leve e, talvez por isso, seja bem mais gracioso do que um romance-tratado sobre nosso século ou coisa parecida. Elas apenas contam como veem o mundo, seus divertimentos e pequenos infortúnios. As tristezas e alegrias do sexo, por exemplo, estão lá, mas sem apelos à culpa quando o rendimento não é satisfatório. Quase tudo é autobiográfico; daí o interesse pela obra. 

Adélia guarda certo niilismo e se enxerga no futuro como mulher sem grandes impulsos, tal e qual agora. Quando começou a escrever, sem uma ideia prévia, logo se lembrou de um imenso jardim calorento, sem árvores, apenas grama rala, separando a casa do mar. Ainda menina ela ficava na varanda, deitada na rede, assombrada com a alegria dos primos na praia, sem entender o frenesi dos adultos por causa de um fim de semana, sem entender a ansiedade de todos com os preparativos para o churrasco e, mais tarde, o churrasco em si, decepcionante por causa da carne dura; problemas assim eram relevados em nome do que eles chamavam de divertimento.  Então, Adélia se pergunta, na página sessenta: por que a exposição exagerada ao sol, os pulinhos na hora de tomar banho de mangueira e o ar de satisfação com jogos de tabuleiro depois do jantar?  Ela pensava essas coisas naquele momento, na varanda, e “ainda pensa agora, discorrendo sobre seus verões no litoral”, afirma Adélia, na página doze, fazendo-se de cinquentona.

A história continua nesse ritmo de aparente indiferença, empurrando a personagem para um lugar imaginário, meio limbo, meio guarita, e dali ela observa a vida, a sua e a dos outros, numa tentativa de descobrir a razão da alegria humana. Não é depressão ou descaso porque, em suas linhas, ela se mantém atenta a tudo aquilo. A prova é que escreveu um livro. Talvez ela não seja alegre, talvez o universo seja triste, mas essas dúvidas não são tremendas ou assustadoras. Não se sente nem mal nem bem – na vida e no romance; e isso basta. Ela quer a normalidade, “o pequeno e baixo preenchendo todos os recantos do mundo” (Adélia, pelo telefone, citando Nietzsche).

Do fim do livro vem Amélia, feliz como um animal.  Conta o sumiço de vinte mil caracteres de suas anotações de adolescência. Distraída por causa de um baseado, esqueceu-se de salvar uma parte da história e agora dá um salto imenso para alcançar sua irmã deitada na rede. Vem disposta, agitando o corpo saudável em diversas plataformas, teoria e prática de mãos dadas, alegria, alegria, e de repente ela está vendo o sol se pôr em Jeriquaquara. No texto, animação com tudo e todos, algum sexo, várias drogas e ideias básicas para transformar o mundo. Bem diferente da irmã, como se vê.

No miolo do livro, quando acaba a história, duas senhoras gêmeas continuam a frequentar a casa de sempre, de jardim calorento, e Adélia vai junto com Amélia, mesmo sem achar nada especial naquele movimento provavelmente desnecessário.  O que achou desses passeios, repetidos ao longo de décadas ainda é motivo de divagações, pois Adélia gosta de divagações, prefere pensar, só isso, enquanto Amélia é capaz de subir numa prancha, enfrentar o mar e gritar “uhuuu!”. Há ainda um vento de aragem, brando e fresco, e Amélia sonha em correr nua pela praia.  Adélia, pensa sobre as desvantagens da história, a vida em outros planetas e a vã literatura a quatro mãos gêmeas.

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