domingo, 29 de novembro de 2015

A breve eternidade


Doutor Carneiro informou ao paciente que ele tinha seis meses para escrever suas memórias. Médico e literato, doutor Carneiro lamentaria a grande perda, o fim da vida de um sábio de sua intensa predileção, além de bom amigo. Mas não havia o que fazer. A não ser, claro, a precária substituição da vida por boas histórias, memórias póstumas, conforme indicavam os exames. Nessas horas, há certa solenidade, uma procura por palavras exatas, a oferta de uma contrapartida. Você vai morrer, mas... O caso é que não havia entre eles uma alternativa ao evento da morte nas mãos de Deus. Só que o sábio recebeu a notícia com tranquilidade, um aborrecimento a ser levado em conta, porém sem a dramatização esperada. Ele queria mesmo escrever e tratou a sugestão como substituto da eternidade. Já tinha escrito dez livros.

Fosse começar o texto naquele momento – seria até aconselhável, dado o avanço da doença - o escritor talvez embarcasse numa viagem ao passado, em busca de si próprio sadio e jovem, ou iniciasse pelo fim, período que lhe transmite fortes ruminações sobre a vida e a morte. O problema, portanto, não era este. O livro teria que marcar sua existência, esticá-la à posteridade, pois ele não havia escrito até então uma obra-prima, aliás, nenhuma obra que merecesse o elogio da crítica – sequer uma resenha na imprensa. Só o doutor Carneiro parecia reconhecer o gênio. Se havia duas coisas que reconhecia num primeiro olhar eram um bom texto e um câncer. O sábio possuía ambos.

- A doença veio para emperrar ou empurrar o sábio à sua última tarefa? – refletia o médico, enquanto o sábio, em seu leito de hospital, já ardia em estruturas narrativas, conceitos e personagens da nova e definitiva obra. Poderia ser um livro de memórias, talvez memória romanceada, se achasse, naquelas condições, algumas lembranças válidas. Pensou num esquema de Nietzsche, baseado em aforismos, pílulas de sabedoria ou mesmo de desespero. O sábio, porém, não estava desesperado.

Como médico, doutor Carneiro tinha praticamente encerrado o serviço. Mas havia uma nova tarefa.

- Carneiro, vou escrever – prometeu, dias depois, o sábio - Faça uma leitura caprichada e se achar que não deu certo, suspenda a edição. Faça o mesmo que você com a quimioterapia.
 

Seis meses depois, como previsto, o sábio morreu. Entupido de morfina, não deve ter sentido muitas dores. Ao lado da cama, deixou os originais do livro. Doutor Carneiro passou uma semana em cima do texto, lendo, relendo, anotando, cortando aqui e acolá exageros retóricos comuns a moribundos, segundo ele achava. No final, a obra estava pronta. Poucas páginas, justificadas pela situação, mas suficientes para manter em pé um livrinho interessante, cheio de impressões tragicômicas sobre a morte e alguma saudade da vida. O sábio não teve lugar na posteridade, não se tornou um nome da literatura nacional, mas ganhou uma pequena sobrevida além dos poderes da medicina.  Finalmente algumas notas nos jornais, lançamento, coquetel, palavras elogiosas e notinhas no Facebook. Depois disso, o sábio nos deixou para sempre. 

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Globo


No espaço curvo onde me encontro as perguntas não têm respostas. Não basta a falta de um canto para encostar e estirar as pernas, não basta o desconforto de estar arqueado no oco, não basta o tempo passado num lugar sem referências, e ainda me vêm com indagações sobre meu próprio estado e o que devo fazer para sair dele, se for o caso. Há uma voz dentro do globo, ou fora dele, permanentemente empenhada em lembrar que estou trancado num ambiente sem portas e aqui devo ficar até encontrar a saída. A geometria é inadequada para meu corpo e tem sido assim desde que nasci, há não sei quantos anos. Conjecturo que é um universo particular e um local de castigo. Sigo os ensinamentos que a voz também passa, em horas alternadas, sobre outras dimensões, espaços externos bem mais amplos, onde as pessoas circulam de outra forma, sem necessidade de contorcionismos, e conseguem percorrer longas distâncias, encontrar uma às outras, levar uma vida sem conhecimento deste globo. 

Deus 1, Deus 2


No primeiro instante do universo, quando o Deus 1 disse "faça-se a luz", uma voz surgida do nada, como tudo naquele momento, reclamou em forma de estrondo: "epa, essa ideia é minha". No debate autoral que se seguiu, Deus 1, também vindo do nada, a princípio entrou em luta com seu oponente, Deus 2, jogando partículas em sua cara, mas esses senhores recém-chegados ao processo de expansão do Cosmo viram que a coisa continuava sem a participação deles e resolveram chegar a um acordo.  O universo já estava lá adiante, cheio de gás, quando os dois deuses decidiram que um cuidaria do espaço e o outro do tempo. Mas logo viram que eram a mesma coisa, espaço-tempo, e o debate continuou até o surgimento da Terra, em que resolveram aportar por causa da boa localização e do clima relativamente ameno. "Eu vou ficar por aqui", contou o Deus 1. O outro foi embora, para ver onde aquilo ia dar. 

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Atlas



Quando eu era criança, pedi a meu pai para comprar um atlas pelo correio. Demorou quase um mês para chegar porque nos anos sessenta tudo demorava a chegar. Quando vi o carteiro pela janela do quarto, corri apressado para pegar a encomenda e abri o pacote antes de dizer qualquer coisa - nem disse bom dia nem oi - e abri o atlas na página do Brasil. Em seguida, já estava no meu pequeno estado, mas caí na mais profunda tristeza ao descobrir que a cidade onde nasci não estava no mapa. Aquilo resumia minha infância a nada.

Não estamos no mapa, disse à minha mãe, que preparava o almoço. Ela não deu a devida importância e respondeu apenas que um dia a cidade estaria no mapa, era só uma questão de tempo, bastava aumentar a população, e talvez o novo prefeito tivesse influência suficiente para corrigir aquela pequena injustiça. À noite, quase não dormi, pensando como é melancólico e solitário morar num lugar em que nem o atlas sabe onde fica e muito menos as outras pessoas do mundo. Eu era uma criança bairrista.

Pelos livros, sabia que alguns lugares sumiram do mapa, destruídos ou abandonados por seus moradores, cidades reais e imaginárias, mas nunca ter estado no mapa era um baque maior, como se alguém dissesse, com toda a certeza: você não existe nem existiu. Nem sua família nem a agência dos correios nem o grupo escolar nem a sorveteria de Dona Nazinha. No dia seguinte à chegada do atlas, olhei para as ruas vazias, perdidas no sertão, cercadas de mato, e comecei a chorar.

Desde então tudo perdeu importância, até a escola, pois quando a professora começava falar sobre as datas mais importantes do município, eu ficava pensando se adiantava ter história se não tínhamos geografia. Clarinha, a menina mais bonita da escola, pelo menos a mais engraçada, também não estava no mapa, como não estava no mapa a fábrica de gelo do avô.

Lembro-me do calor de quarenta graus lá fora e os dedos gelados de tanto esfregar as mãos nas barras geladas, encomendas da sorveteria e do açougue. Era o melhor lugar da cidade e eu ficava por lá nas horas vagas, que eram quase todas.

O certo é que a cidade era pequena em proporção ao tamanho da fábrica de gelo do meu avô e gerava muita curiosidade no município porque as pessoas estavam naturalmente intrigadas sobre o surgimento de tanta coisa fria numa terra tão quente. Faz muito tempo, mas naquela época não entrava na cabeça de ninguém o fato de que um motor a diesel, um negócio mais abrasador do que a cidade, servisse para esfriar fosse o que fosse. Mas esfriava e muito.

Enquanto a rua pegava fogo lá fora, meio dia o dia inteiro, a fábrica mantinha-se num clima austríaco, conforme escreveu o único jornalista da cidade, José Onofre, editor, diretor e distribuidor do semanário A Razão. Ou seja, mesmo os espíritos mais abertos a novidades estavam perplexos e buscavam explicações. No entanto, apesar de seu motor e o gelo, mesmo com o jeitinho engraçado de Clarinha, mesmo assim, a cidade não estava no mapa.

Quando completei dezoito anos fui embora estudar na capital e depois segui para São Paulo, transferido pela firma. Com o passar dos anos, a cidade, que já não estava no mapa, foi se apagando da minha memória. Morreram todos – avós, tias e os homens que faziam gelo. Morreu Zé Onofre e Razão deixou de circular. Morreu dona Nazinha da sorveteria e morreram o prefeito e seu sucessor, que não moveu uma palha para colocar a cidade no Atlas.

Há uns dias, décadas e décadas depois, olhei por curiosidade o mapa do Google e minha cidade estava lá. Não só o nome, em letras grandes, mas as casas e ruas, becos e a igreja, e o velho prédio do grupo escolar, ampliados, quase realidade, e as ruínas da fábrica de gelo e a sorveteria de Nazinha, que virou minimercado, e a casa onde morou Clarinha, agora um salão de beleza. Mas aí não importava mais. Eu queria ter visto no Atlas.


quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Looping com link



Todo mundo preocupado com o dia de amanhã e Amélia preocupada com o passado. Quer outra utilidade para o que já se foi, além de servir apenas à memória; quer sentir as mesmas sensações de um único ano, 1979, nem que seja para reviver em looping seus melhores momentos, mesmo como simulacro de vida em repetição infinita ou até cansar. Fosse possível, ela toparia, em troca deste agora insatisfatório e oco, uma viagem circular à mais feliz temporada de sua existência. Eis o problema que estraga o presente e o futuro de Amélia e perturba sua carreira de escritora de livros de autoajuda.

Ninguém sabe o que decorre na cabeça dessa mulher, cuja foto às vezes surge numa livraria de aeroporto.  Crê, pelo que escreve, que a imaginam prospera e resolvida, independente e digna de todos os amores do mundo. Vende a seus leitores a beleza do pensamento positivo, o siga em frente, a força da vontade, enquanto fora do papel impresso é um case de pessimismo. Todos desconhecem, por exemplo, o desprezo de Amélia por seu ofício, o horror primordial pelos livros de que escreve.

Não se sabe ainda do que deriva a aparente falta de lógica em seu estranho desejo de percorrer 1979, de forma incessante, rodando em cenas passadas, abraçando pessoas antigas, algumas já mortas, perdidas em estações da lembrança. Tirou essas idéias em coisas que leu, em livros obscuros e científicos, pois ler ainda a diverte e abre espaços para imaginar fendas ou buracos onde possa entrar e sair rodopiando em 1979, para revisitar cenas de seu agrado. Não quer mudar a história; só experimentá-la de novo.

Permanece, no entanto, em suas predições e conselhos, faça isso e aquilo, o mundo pode ser melhor desse ou daquele jeito, assim ou assado, mas em seu interior reina um vazio, um nada consta de pouco interesse para seu publico ávido por bem-estar e segurança no dia a dia e na empresa, nos relacionamentos e, em alguns casos, na paz do senhor. Enfim, tudo se conforta em sua fatia de mercado, enquanto ela esta cada vez pior e mais absolutamente infeliz com seu ganha pão e a vida em geral, especialmente com o fato de não pode rebrotar boas horas da vida já vividas antes de começar a mentir por escrito, no comecinho de 1980.

Para variar um pouco, poderia não voltar aos mesmos lugares daquele ano, mas só a situações, reprisadas com cenários e materiais de hoje, em que ela pudesse sentir, do modo que sentia na juventude, a mesma ânsia de viver e o mesmo vigor para o que desse e viesse. Ela própria seria uma estupenda criatura atual, de pernas rijas, mente processando novidades, sensações girando no volume maximo e desejos correspondidos. Hoje é quase nada. Vende o que não tem: esperança e sucesso.

Pessoas que leem aquilo atentamente e ficam ricas e satisfeitas, segundo diz a orelha de seu último livro, mas não há referência às que caem em profunda desgraça neste mundo movido a probabilidades. Ou seja. tudo continua como sempre foi e ela vive disso, escrevendo justamente o contrário de sua existência.

De modo que alguém também lê um livro de Amélia com um olhar também oposto ao da autora. Paga para acreditar. Ninguém compraria um livro se não houvesse a promessa inconsciente de se levar em conta o seu conteúdo como lenitivo para a vida, quando não um vade mecum para inúmeras ocasiões. Assim acreditam seus seguidores. Não veem a Bíblia? o livro mais discutido no mundo cristão não apenas passa informação a seus leitores; de algum jeito também os pega pelas tripas e nessa agonia deixa de ser livro e torna-se um lugar aonde milhões de pessoas entram sem pestanejar – algumas, desgraçadamente, para o resto da vida.

São coisas que passam pela cabeça de Amélia e que um dia ela pretende contar, e isto, sim, lhe causa duvida porque ao revelar os bastidores de sua alma perderia a maior parte de seus leitores. Uns poucos, porém, adentrariam no mundo sombrio da autora e ficariam contentes, pelo menos aliviados, em não estarem mais sendo enganados.

De alguma forma, Amélia vai terminar no mergulhar em emoções extemporâneas, talvez vetadas pelas leis da ciência, e talvez a vontade de trazer 1979 de volta, às vezes com nova embalagem, seja apenas exercício literário apartado de sua produção de autoajuda. Um jeito de ressurreição ou de loucura. Tanto faz. Fosse possível, seria um grande presente que daria a si e aos leitores que lhe restassem. Caso restasse algum.