sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Amore

Vamos, acorde, agora, é hora, pare de apertar o botão de soneca.
Passou do meio dia, faz sol, vou abrir a janela. Um, dois, três.
Tanto tempo na cama – isso e TV ligada. Abre os olhos só para
escolher voltar a dormir e quando levanta para ir ao banheiro
sai cambaleando como se não conhecesse a casa.

Ainda não abri a janela porque seu corpo está imóvel. O remédio
ainda não bateu – são quinze dias -, mas você poderia cooperar,
apelando para uma daquelas suas qualidades. Nessas horas,
serve até espírito crítico. Pense na aporrinhação das pessoas
preocupadas com seu estado; pense na sua imagem, amore.
Hoje em dia estão de olho em você, o tempo todo, observando
algum sinal de anormalidade. Você não pode, amore, continuar
assim, variando, ora desatenta, ora irritada. Quando não é isso,
está dormindo. Como agora, e não acorda. Acorda, amore.

Fosse no  meu tempo iriam confundir com preguiça. Pagava mal;
agora é depressão, eu sei, sabemos. O problema é que o povo não
sabe, é preciso disfarçar, manter a linha, segurar a onda. Não
beba, não conte histórias longas, fale baixo. Mas primeiro você
precisa acordar.  Tome banho, vista uma roupa, vamos embora.

Porra, amore.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Autópsia de um Bípede

Dia 27, às 19h, na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37 – Bela Vista – São Paulo), lançamento do livro “Autópsia de um Bípede”, do meu amigo Marco Polo. 

“Embora há anos atrás tenha escrito uma plaquete com 18 textos a que intitulei Narrativas, considero este meu primeiro livro de contos. Ele está dividido em sete partes. Após um prólogo, na primeira parte estão narrativas curtas sobre um mesmo personagem, num clima lírico. Na segunda estão dois textos híbridos, contando mais uma situação do que uma história. A terceira parte é composta de minicontos. A quarta tem o formato de argumentos para curtas-metragens. A quinta tem um cunho humorístico. A sexta se curva sob um toque de tragédia. Há um interlúdio e por fim o personagem inicial é retomado em dois relatos.
Apesar dos tons diferenciados e da forma variada, alguns elementos garantem a unidade do livro. Primeiro, a recorrência de alguns personagens. Depois, a constante aparição dos temas amor e morte, infância e juventude. Também é constante a linguagem despojada. Finalmente, em todos os textos há a preocupação de contar bem uma boa história, sem grandes digressões. Mesmo os contos mais, digamos, difusos, têm um caráter narrativo. Na verdade, narrativas diferenciadas, uma vez que meus temas não são o cotidiano normal, mas justamente o que quebra a normalidade. O próprio título do livro já indica algo assim.
Por fim, há uma frequência do que chamo de conto com dobras. Contos que se desdobram em uma variação do mesmo tema. Contos que falam de gêmeos (duplos?). Contos que se desenvolvem por etapas ou que contam de modo diferente a mesma história”. (Marco Polo)

domingo, 3 de novembro de 2013

O tiozinho envelhece


De repente, o sujeito para e conclui não estar entendendo nada. Entende a seu jeito, baseado no passado, mas não há valia para predileções fora de época. Isso passou; já era. Parece que foi ontem, mas não foi, acabou a festa.

Durante anos, já na meia idade, ele tentou acompanhar os modos e costumes em voga, a nova coreografia e o comportamento dos mais jovens. Desistiu antes de a velhice chegar inteira e agora pergunta o que resta.

O personagem já esteve aqui, em outra história. Era enturmado com jovens, frequentava suas festas e conhecia algumas intimidades, especialmente das meninas. Nada demais – só retórica -, pois no dia em que tentou acesso a prazeres juvenis, via uma ex-aluna, sentiu que estava vencido pelo tempo. A moça queria uma pessoa da idade dela, também da turma, e revelou sua opção com cuidado para não ferir a alma do velho professor.

Então, ele recolheu-se. Gasta seus últimos anos com literatura, sem entusiasmo para mulheres de sua idade. O vigor das jovens, mesmo sob a inocência, ainda é a razão da vida, mesmo sem o contato direto. Agora, enquanto recusa polidamente apelos das contemporâneas, o velho só observa de longe a passagem do tempo e a passagem daqueles corpos viçosos em qualquer lugar público ou privado. Trocou laços de afetos, alguns sinceros, pelo prazer de olhar as meninas.

Aliás, a vida só não é incômoda por isso, embora traga culpa, pois não é um hobby, talvez seja um vício ou doença. Talvez apenas uma maneira de ver o mundo – ele não tem respostas, segue o fluxo. Aproveita o fato de ser quase invisível e filma discretamente suas meninas em cenários estratégicos: banheiros, academias de ginástica, motéis e bares.


À noite, ele revê as imagens com nostalgia e comportamento respeitoso.